SOBRE A ESCATOLOGIA ( PARTE I )

 ESCATOLOGIA: A REFLEXÃO CRISTÃ ACERCA DO DESTINO HUMANO

Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, o princípio e o fim” (Ap 22,13). O evento Cristo, - que inclui não somente sua Encarnação e o Mistério Pascal, mas também a sua vinda na glória (cf. Credo niceno-constantinopolitano) - é último e definitivo. Jesus se torna o ‘resumo’ de todas as ‘coisas últimas’ e a chave de interpretação das ‘tensões’ da escatologia cristã: eschaton e eschata; presente e futuro da salvação; escatologia final e escatologia intermediária.

A história do termo (tá eschata = as coisas últimas) talvez mostre um pouco as implicâncias contidas neste tratado da teologia: O termo teológico geralmente se vê como derivado de Eclo 7,36: “Em todas as tuas ações lembra-te do teu fim e jamais pecarás”. Este “do teu fim” é uma tradução do grego “tá eschata” (as últimas coisas), que foi traduzido pela vulgata como “novissima tua”. Daí a disciplina “Escatologia” ter-se chamado nos manuais neo-escolásticos de “De Novissimis” (ou De Extremis). Este nome “Os Novíssimos“ encontra-se ainda em alguns catecismos e tratados de teologia mais antigos.

 A frase do Eclesiástico lembra também uma impostação que deu o tom a grande parte da reflexão escatológica: o fim (a morte) visto em seu aspecto individual e sua relação com o pecado. Com a esperança messiânica (a esperança de um irromper do divino na história, um irromper escatológico) também já presente no Antigo Testamento, mas sobretudo com Jesus, identificado como Messias, houve uma virada na compreensão de escatologia: com o surgimento de Jesus Cristo já se iniciaram os últimos dias (“Agora, nos últimos dias, falou-nos pelo Filho que constituiu herdeiro de tudo, por quem criou também o mundo”, Hb 1,2; cf. tb. 1Pd 1,20).

A expressão que foi usada para designar o que hoje se faz sob o nome de Escatologia também revela diversos acentos que foram dados ao assunto. O conceito Escatologia é do século XVII, usado pela primeira vez na teologia por A. Calov (Systema locorum theologicorum). No capítulo intitulado “Eschatologia sacra” ele aborda a morte, a ressurreição, o juízo e a definitiva consumação do mundo (Mysal 12). Somente com Schleiermacher é que o termo se fixou definitivamente. Alguns outros nomes usados em tratados de teologia para os assuntos “escatológicos” foram: ‘De fine saeculi’ ou ‘De statu futuri saeculi’ (Hugo de São Vitor), ‘De ressurrectione’ (Tomás de Aquino), ‘De statu finalis iudicii’ (Boaventura). Nos séculos XIX-XX havia sido usado mais o termo “De novissimis” ou “De glorificatione”. Nas últimas décadas impôs-se o termo “Escatologia”. Os termos usados demostram qual era o ponto central da preocupação teológica: o fim dos séculos, a ressurreição, o século futuro, o juízo final.

A reflexão dos temas ditos “escatológicos” é marcada em sua história por algumas tensões não resolvidas: a tensão entre o destino individual e o coletivo; o destino do humano e o do universo como um todo; a tensão entre o sentido cristão de destino final e o sentido secular de destino último (a ressurreição, p. ex.).

Algumas observações iniciais, antes de se entrar no tema da Escatologia propriamente dito:

- O discurso escatológico abrangeu e abrange o fim pensado no sentido temporal, histórico, cronológico, mas também, e sobretudo, o fim no sentido kairológico (Kairós: o tempo na ordem da graça), de destino, de finalidade, de integralidade, de realização ou de sentido último, definitivo.

- Do ponto de vista cristão, a pergunta que impulsiona a escatologia é: A que somos destinados? A criação tem um fim definitivo? Deus nos chamou a quê?

- A partir de quê se pode falar do definitivo? A partir de nossa esperança de fé. E nossa esperança de fé “é a absoluta e radical realização de tudo o que é verdadeiramente humano, dentro de Deus”. (L. BOFF, 1973)

- O discurso escatológico está, pois, numa tensão entre o definitivo (sobre o qual se reflete ou se quer refletir) e o provisório (a forma com que se fala), pois a fala é sempre uma fala a partir do presente em que nos encontramos e este presente é marcado pela provisoriedade. Esta provisoriedade não diz respeito apenas à relação (à forma) que temos. com o “conteúdo” sobre o qual se fala, mas também diz respeito à nossa própria condição nesta fala: a condição de provisoriedade.

- Em termos de experiência humana, estamos dentro da mesma tensão: as experiências da provisoriedade humana e experiência da definitividade. Desde que a espécie humana tomou consciência de si, tomou também consciência da experiência da definitividade no fenômeno da morte. Esse fenômeno é um dos fatores, se não o principal fator, da questão escatológica: a consciência sobre a morte e o fim individual. Sabemos da definitividade da experiência da morte em nossa vida, mas ninguém pode falar a partir da experiência da morte. Do ponto de vista da experiência antropológica não se pode dizer nada sobre o que sucede à morte. É terreno da fé e da esperança. E como estas estão

presentes já agora, elas lançam seus raios sobre a nossa realidade. E sobre isto é que se fundamenta o discurso escatológico. Esta é a legitimação da Escatologia. A legitimação da Escatologia não se dá, pois no além, mas no aquém. Ou seja, o discurso escatológico não é pertinente pelo fato de falar do fim, do definitivo, mas sua pertinência vem do fato da implicância do definitivo sobre o provisório.

- Ligada à questão da morte está na tradição judeu-cristã, a questão do céu e do inferno. Um como promessa, outro como ameaça. E esta promessa e ameaça tiveram um papel importante tanto na linguagem eclesial como, sobretudo, no imaginário popular. A promessa e a ameaça tiveram, sobretudo, uma função controladora, castradora e reguladora (especialmente no que diz respeito ao comportamento emocional-afetivo). A renúncia teve aqui um forte papel.

- Há todo um imaginário popular sobre estas questões escatológicas, do fim último, do destino do humano, em que a genuína esperança cristã da vida e da realização definitiva se vê misturada com algumas ideias religiosas vindas de outras culturas e um bocado de imaginação e fantasia.

- A história sempre conheceu muitos movimentos de cunho escatológico, movimentos de “fim de mundo”. Exemplos típicos de tais movimentos – no Brasil – foram os ocorridos em Canudos e a questão do Contestado. É interessante notar que especialmente estes dois movimentos – como também outros nesta linha – têm um forte componente que é a opressão do sistema social e o movimento é então um movimento contestatório, libertador, messiânico.

ESCATOLOGIA do grego éschaton que significa “último”. É o tratado teológico relativo às realidades últimas, aquelas que dizem respeito ao destino seja do ser humano, seja de toda a criação. As que se referem ao ser humano individual: a morte, o juízo particular, o purgatório, o céu e o inferno. Já as realidades coletivas últimas são: o embate final, a segunda vinda de Cristo, a ressurreição dos mortos, o juízo universal, fim e renovação do mundo e a vida eterna. Na tradição clássica levam o nome de “novíssimos”, superlativo que em latim significa as coisas “mais recentes” e, por isso, “últimas”. (BOFF, 2012, p. 11).

- A Bíblia (com exceções, como por exemplo a literatura apocalíptica) é muito sóbria ao tratar destes temas. Veremos mais adiante algumas linhas mestras da Bíblia sobre o tema.

- Na história da reflexão sobre a escatologia há dois pólos distintos que dominaram a discussão: a pergunta pelo destino último individual (a que me destino eu como sujeito), ligada à história individual e a pergunta pelo destino do “mundo” (algo um tanto complexo de ser “localizado”, pois pode ser o mundo pensado tanto no sentido do conjunto da humanidade, como no sentido de vida, ampliando de vida humana para vida no sentido amplo de seres viventes, ou então de planeta terra com tudo o que nele há de existência ou ainda, no extremo, de universo: tem o universo um destino?).

Destarte há tratados da escatologia que fazem a distinção entre “escatologia coletiva” e “escatologia individual”. Essa distinção é sem dúvida didática, pois não há como imaginar um “fim” individual que não seja dentro do todo e nem um todo que não seja o acolhimento do individual. Não se trata, pois, de pensar “fins” distintos. Mas a questão central aqui envolvida é, sobretudo, a diferença que há na colocação da problemática: a escatologia individual é por um lado o questionamento (dramático) pessoal, o questionamento que cada qual se faz sobre seu destino e pelo seu modo de ser. Qual modo de ser leva a um destino “melhor”, “de recompensa” e qual modo de ser leva a um destino “trágico”, “de castigo” e “de sofrimento”. Os grandes questionamentos da escatologia individual estão ligados, de certa maneira, a questionamentos éticos e ao destino de “si-mesmo”. Já o questionamento da escatologia coletiva (do mundo, do planeta, do universo) não está tanto ligado ao drama do indivíduo, mas ao questionamento mais filosófico/teológico sobre se há um “fim” a que todo o universo se destina. “Para onde caminha o todo?” E o destino deste todo certamente não depende da atitude ética do indivíduo. A pergunta pelo destino do universo é um questionamento muito mais de cunho teológico (no sentido de cosmologia teológica), que um questionamento do humano como indivíduo. Na tradição teológica, é neste questionamento que está a reflexão sobre a parusia (volta de Cristo), o juízo final, a ressurreição dos mortos.

Tanto a reflexão sobre a escatologia coletiva quanto a individual estão ligadas às preocupações de cada tempo. Assim, por exemplo, se a pergunta pelo pós-morte tempos atrás estava muito mais ligada a “garantir” sua permanência religiosa, noutros tempos a pergunta pelo pós-morte está muito mais ligada ao “comportamento” individual e aos critérios que se podem fazer sobre o mesmo.

A escatologia é uma reflexão sobre o fim último do ser humano e da criação, mas não como uma descrição de como vai ser a morte, o céu, o inferno, o purgatório, o Juízo Final, a ressurreição, a volta de Jesus ou o fim dos tempos. Os temas da escatologia estão intimamente ligados com a nossa situação atual. Pensar escatologia é pensar que implicância tem para nossa vida a esperança última em Deus. É pensar a implicância entre presente, futuro histórico e futuro definitivo e – sobretudo do ponto de vista teológico – é pensar a que veio a revelação de Deus na história humana, a que ela chama o humano.

Do mesmo modo as afirmações escatológicas, sejam as feitas na Bíblia, sejam as afirmações dogmáticas ou feitas pelo magistério, sejam as afirmações da teologia sistemática, não podem ser tidas como pré-informações dos acontecimentos que se sucederão além do tempo e do espaço. Estas afirmações só podem ser compreendidas a partir da revelação de Deus e da Revelação Definitiva, Jesus Cristo, sua encarnação, vida, morte e ressurreição.

A realização final é a realização plena do que vivemos agora de forma deficiente. Rahner vê a questão escatológica estreitamente amarrada com a antropologia e cristologia dogmáticas. Ou seja, algo de dogmático na escatologia não pode ser dito a partir de si mesmo, mas sim a partir da Cristologia e da Antropologia dogmáticas. Ou, dito de outra maneira, não podemos afirmar da escatologia em termos absolutos, sempre em termos relativos (relativos à nossa compreensão de fé).

No chamado “Credo Apostólico” rezamos: “Creio na ressurreição da carne e na vida eterna”. Dito em outras palavras, cremos na ressurreição após a morte e na recompensa do céu para os justos. Por muitos séculos o céu foi visto como um consolo para aqueles que nesta vida não tinham a melhor sorte: irão ser felizes na vida eterna e por isso não precisam de felicidade nesta vida. Por outro lado, ameaçava-se os que não viviam conforme as normas da Igreja com o inferno, a infelicidade eterna, com as mais horrendas descrições desta situação. Com isto apontamos claramente que dizer que a escatologia trata das “últimas coisas”, de forma alguma é dizer que não trata das coisas atuais. Na verdade, ao pensar a escatologia, ocorre o chamado “efeito espelho”: ao olharmos o fim, vemos a situação atual. E como no espelho nos olhamos para “arrumar” ou pelo menos “conferir” nossa situação atual, assim olhar para a esperança escatológica é, na verdade, olhar para a nossa própria realidade e nela interferir.

A criação e a escatologia 

O problema escatológico de toda a Criação não se restringe à ideia apocalíptica do fim de todas as coisas, mas ao contrário, a questão em si deve ser considerada pela ideia de sua plenificação. Toda a Criação em seu percurso histórico caminha para sua coroação. Deus é a plenitude de todas as coisas, neste sentido a Criação não caminha para o fim, mas sim para um novo começo, no qual, como afirma o célebre anacoluto paulino: Deus será tudo em todos (1 Cor 15,28-29). Se, compreendemos bem tal aferição teológica, torna-se evidente a afirmação de Moltmann (2003): “no fim – o começo”. Para o referido teólogo, a escatologia cristã nada tem a ver com “soluções finais” apocalípticas, pois o seu tema não é o “ fim”, e sim, antes, a nova Criação de todas as coisas.

Esta enunciação conduz a Teologia Contemporânea e, consequentemente, à pregação kerigmática (Querigma: primeiro anúncio) das coisas últimas a um grau em que a leitura resolutamente cristocêntrica da escatologia é o seu centro. Cristo é a plenitude de todas as coisas. Ele é a cabeça do seu corpo que é toda a criação. Daí a importância de se acentuar que é Ele quem recapitula todas as coisas conduzindo-as, como o seu corpo, a um desdobramento histórico que desemboca no Novo inventivo de Deus. Cristo é a cabeça do universo novo, esperança de toda a Criação.

Se Cristo recapitula todas as coisas, como nos ensina o Apóstolo Paulo, é porque Deus em sua bondade e sabedoria incriada, tem imprimido na carne da história a Sua marca de Unidade. É Cristo que une definitivamente a Criação e a comunhão pericorética (comunhão interna relacional das Três Pessoas da Trindade: co-habitação) de Deus. Ele introduz toda a Criação pedagogicamente ao Novo começo querido por Deus. Daí a importância de se ressaltar, como afirma Jurgen Moltmann: “Em todas as dimensões pessoais, históricas e cósmicas, a escatologia cristã segue o padrão cristológico: no fim – o começo”.

Desde o Concílio Vaticano II, que em sua Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” marcou um notável giro para a história e para o mundo dos homens, a nossa reflexão teológica na atualidade, não pode ignorar o desígnio salvífico de Deus em toda a sua significação. Não só o homem como sujeito histórico é o destinatário da salvação, mas toda a sua história como o seu dinâmico desdobramento.

A reflexão teológica na atualidade deve, efetivamente, remeter ao horizonte epistemológico de sua sistematização, a dimensão histórica e cosmológica do futuro esperado de nossa consumação, futuro tecido pela história pessoal de cada pessoa humana e, concomitantemente, história comunitária e universal e, enfim, cosmológica porque afeta toda a Criação no seu percurso dinâmico de desdobramento que desemboca na concretude definitiva do Reino de Deus. Pensar o futuro escatológico da criação é aferir que toda a nossa história com todas as suas curvaturas e atalhos é de per si, história da salvação e que essa salvação envolve toda dinamicidade da nossa história. Torna-se relevante afirmar teologicamente que falar sobre a Criação sob o prisma do seu processo escatológico significa inferir que a futuralidade escatológica de tudo aquilo que Deus criou insere-se na inteligibilidade da salvação da história. Neste sentido, compreende-se que Deus que atua permanentemente na história vai realizando pedagogicamente, dentro do quadro do seu desígnio econômico de amor, a recapitulação de todas as coisas criadas em seu Filho Jesus Cristo.

Em sua economia salvífica, Deus, em seu poder ordenador, vai chamando e orquestrando todas as coisas a uma grande sinfonia. A sinfonia de Deus é a maneira como Ele se dá a conhecer, como atua na história dos homens e como a salva. O Deus que entra na aventura humana é o Deus que assume as condições viscerais da nossa existência. Esta é a lógica da inteligência da sua ação ordenadora, pois é Ele quem harmoniza todas as coisas recapitulando-as em Cristo.

A sua ação harmonizante é o que determina o processo de mutação ao Novo de toda a Criação. Do caos, das experiências-limite, Deus, expressão-limite, chama aos cosmos; da morte, condição radical do existir, Ele chama à vida; do Seu ato criador reordena tudo o que tem criado à sua consumação. Disso decorre a inteligibilidade de que da protologia se vai à consumação, dinâmica própria da ação histórica e pedagógica de Deus configurada como futuro escatológico de toda a Criação. Então torna-se pertinente afirmar teologicamente que se trata efetivamente da questão da salvação da história, uma vez que, a vontade salvífica de Deus atinge toda a Criação.

Esta é a nossa esperança, esperar contra toda desesperança. Esperar que a reconciliação universal da história e da criação não seja apenas um sonho, mas se realize verdadeiramente na consumação definitiva do Reino de Deus. Então Deus será tudo em todos. O dia escatológico de Deus inaugurado pela ressurreição de Cristo é a garantia da sua governabilidade. De fato, a Criação compreendida no quadro do processo escatológico realizado por Deus, nos lança de cheio na dinâmica inventiva do Criador onde o fim corresponde com o começo. Nas palavras de Tomás de Aquino: O fim das coisas corresponde ao princípio, pois Deus é o princípio e o fim das coisas. Logo, o começo das coisas no princípio também corresponde à restauração das coisas no fim. Daí a importância de se acentuar a questão teológica de Cristo como cabeça de toda a Criação. É ele quem recapitula todas as coisas.

A escatologia e a história

É no âmbito de um discurso escatológico que podemos situar a temática de uma «Teologia da História». É a história um “lugar teológico”? A partir desta perspectiva podemos afirmar que “a Teologia da História é uma forma de pensamento desenvolvida pela tradição cristã que pensa toda a história humana à luz da Revelação. Ao longo da história, nas diversas culturas, sempre houve um esforço de compreensão do sentido da presença humana na Terra. Acompanhando esse esforço, sempre esteve presente a confluência entre as habilidades intelectuais e os exercícios espirituais. Contudo, não há nenhum outro sistema de pensamento que tenha se desenvolvido no interior de uma religião que procurou explicar a fundação do mundo, a criação do homem e o seu destino futuro, levando em conta o fato de que Deus tenha se feito Homem, habitado a Terra e se sacrificado em prol da salvação do próprio homem. O cristianismo é a única, em toda a história humana, que concebe isso.

Com base nessa perspectiva, teólogos e historiadores cristãos procuram articular as compreensões sobre a totalidade dos eventos históricos no advento da pessoa de Cristo. Cristo exerce uma centralidade na história, para a tradição de pensadores cristãos, por uma razão simples, mas nem sempre fácil de ser entendida: Cristo é concebido como o Verbo encarnado, o logos divino, a inteligência divina que tudo revela, tanto sobre o passado quanto sobre o futuro.

Para a teologia da história, é na vida, na morte e na ressurreição de Jesus Cristo que estão os mistérios e a fonte de sabedoria para o entendimento da própria história da humanidade. O fato de Deus, em Cristo, ter se tornado um ser histórico, um homem, estabelece um cruzamento entre a eternidade e o tempo. Desde as origens do cristianismo, na era dos apóstolos, há uma tentativa de sistematização dessa concepção. São Paulo, o apóstolo que expandiu consideravelmente o cristianismo ao pregar a mensagem dos evangelhos nos domínios de cultura helenística e romana, foi o grande catalisador da compreensão histórica da religião cristã.

Os “pais da Igreja” procuraram dar prosseguimento a essas reflexões. Porém, essa não é uma característica apenas de pensadores da Idade Média. No século XX (e ainda hoje), muitos intelectuais se puseram a pensar essas implicações. Um dos mais destacados é o historiador francês Henri Marrou, que diz:

[…] se após a vida terrestre do Verbo encarnado que constitui o centro como o seu núcleo, a história humana continua a se desenrolar, é porque o tempo é ainda necessário para permitir o pleno crescimento do Corpo místico de Cristo, a construção até o seu acabamento da Cidade de Deus – cabe a São Paulo fazer a síntese das duas imagens e dizer 'para a construção do Corpo de Cristo'. A história alcançará seu termo quando a obra começada na Encarnação estiver plenamente realizada, e, assim, plenamente terminado este mistério da vontade benevolente de Deus, isto é […], reunir, recapitular todas as coisas em Cristo.” “[...] o Corpo Místico de Cristo é o verdadeiro sujeito da história, assim como o acabamento de seu crescimento é a razão de ser e a medida do tempo que ainda corre. (MARROU, 1989).

O “Corpo místico de Cristo”, isto é, a comunidade dos homens em Cristo, a “Ecclesiae”, a Igreja, continua a história, segundo os teólogos da história, enquanto história da Salvação, e não como uma mera história, sem sentido aparente3.

1.4 Fundamentos antropológicos da escatologia

Em verdade, a escatologia não é uma questão meramente conjuntural; é, antes, uma questão profundamente humana e, por isso, permanente. Ela diz respeito às perguntas mais desafiadoras e decisivas que os seres humanos podem fazer: Qual é o nosso destino? Para onde vamos? Que podemos esperar em definitivo? Para que vivemos, finalmente?

Ora, somente o fim dá o sentido último a qualquer realidade. Uma frase só se entende bem quando leva o ponto final. Uma música só é apreciada no seu fluxo e só se desvela totalmente no acorde derradeiro. Um drama qualquer ou qualquer história só se torna compreensível depois de seu desfecho. Assim é com cada coisa: ela só se entende bem quando chegou ao termo. Só então está completa e pode ser bem compreendida. O consumado é também o revelado. Daí que a escatologia é a chave para entender a vida e seu sentido. Ela diz para onde vamos e, por consequência, qual é o rumo que devemos imprimir à nossa vida para chegarmos lá.

A vida do homem, como qualquer relato, só tem sentido à luz de seu fim. Ela é como o caminho tortuoso que vai em direção ao cume de uma montanha: só se veem bem as voltas que ele dá, não em seu percurso, mas apenas a partir do alto, depois que se chega ao topo. Dizer que o homem é um ser “escatológico” é dizer que é um ser que tem um fim, que busca um fim.

Mas qual é seu fim? Seu fim depende do que ele é. Ora, para falar tudo de uma vez, o homem é um ser espiritual, aberto ao transcendente. Logo, seu fim só pode ser o infinito. Sua felicidade absoluta só pode se achar no Absoluto: Deus. Pois, só nele descansa o coração humano – como viu Santo Agostinho: “Senhor, tu nos fizeste para ti, e inquieto está o nosso coração até que não se aquiete em ti” (BOFF, 2012, p.15).

Sem uma antropologia correta não haverá uma escatologia correta. Seremos na base do que somos. De fato, o fim depende da identidade: tu serás em função do que és. Assim, a pergunta sobre o sentido remete à pergunta sobre a identidade. Mas, em vez de falar simplesmente da identidade do homem como tal (quem é o homem?), discutamos sobre sua constituição (como é feito o homem?), porque é a partir da pergunta de como se compõe o ser humano que se podem entender corretamente as realidades escatológicas, especialmente a morte. Quanto a isso, digamos que o ser humano não é, como Deus, uma realidade simples, mas, sim, uma realidade complexa. O Vaticano II ensina: o homem é “corpo e alma, mas realmente uno” (GS 14). É, pois, uma realidade uni-dual. Dizemos aí dual, não dualista, pois, corpo e alma não são duas coisas à parte, mas, antes, dois princípios, constituindo, juntos, uma realidade substancialmente unitária.

Cristo: fundamento e norma da escatologia cristã

A chave de leitura de toda a escatologia não pode ser outra coisa que Cristo mesmo. Isso para sermos coerentes com uma série de afirmações do Novo Testamento. Não tem sentido considerar as “coisas últimas” senão desde a perspectiva do “Último”, ou melhor, de Jesus como “O Último”, depois do qual não podemos esperar outro (cf. Mt 11,3; 1Cor 15,45). Em Jesus está a salvação e a plenitude dos homens porque Nele o mundo e a história recebem seu sentido e orientação definitivos. Jesus é o acontecimento escatológico à luz do qual se devem considerar todos os conteúdos da esperança cristã.

Cristo é o acontecimento escatológico enquanto é o Revelador do Pai e o Único Mediador que nos leva a Ele. A esperança cristã não possui outro objeto que Deus mesmo, o futuro absoluto e definitivo do homem. Por isso, a escatologia cristã não tem como objeto nenhum futuro intra-mundano e nenhum acontecimento que possa colocar-se dentro da história. Somente Deus revelado em Cristo é o conteúdo da Escatologia e, ainda mais, de cada uma das coisas últimas que nos espera.

Nessa linha, segundo a interpretação de Von Balthasar, o conteúdo da escatologia não são os eventos últimos (ta eschata) mas a última pessoa (ho escatós): Jesus mesmo.

O conteúdo teológico e cristológico da escatologia cristã sublinhados por estas afirmações determinam as características fundamentais da escatologia. Antes de tudo não trata de uma descrição do mundo futuro e nem dos acontecimentos finais da história. A escatologia não pode querer fazer “profecias sobre o futuro”, interpretando textos escatológicos e reduzindo estas realidades em seu sentido teológico. Uma sã hermenêutica escatológica nos impede de querer explicar o mundo futuro, pois corremos o risco de, explicando o motivo de nossa esperança com nossas pobres palavras, reduzir o conteúdo da mensagem e limitar o eterno no contingente.

É preciso fazer uma distinção entre os conteúdos da escatologia cristã e os modos de expressão dos mesmos, inclusive na Sagrada Escritura, fortemente influenciados pela apocalíptica. Isso não significa desconhecer o valor e a função irrenunciável das imagens na transmissão dos conteúdos escatológicos, mas quer antes de tudo sublinhar sua condição de imagens e, portanto, a necessidade de evitar a confusão com a realidade mesma que ela quer significar. A manifestação de Deus em sua plenitude vai muito além daquilo que alguém pode ver ou ouvir (cf. 1Cor 2,9). A própria tentativa de descobrir o que esperamos pode significar destruir nossa esperança cristã e reduzir ao âmbito do mundano aquilo que, por essência, o ultrapassa.

A escatologia cristã, pondo Cristo como centro, é uma mensagem salvífica. Anuncia-nos a realização plena da salvação que aconteceu em Jesus Cristo. Se todo o acontecimento Cristo é salvífico, a sua manifestação definitiva não pode não sê-lo. A escatologia cristã é, portanto, uma dimensão irrenunciável da boa nova, do “Evangelho”. Sabemos que a fé cristã afirma a possibilidade da condenação do homem porque somente assim se assegura sua autêntica liberdade e consequentemente o caráter plenamente humano de sua adesão a Deus. Mas é igualmente claro que isso não constitui o centro da mensagem de Jesus.

Não existe mais que um caminho para a história e para o homem: a vitória de Cristo está garantida, ainda que não possamos garantir da mesma forma a participação de cada homem na mesma. Em outras palavras: Salvação e condenação não são duas estradas totalmente “em igualdade”. Se a escatologia é mensagem cristã, não pode ser senão de salvação porque a vitória de Cristo sobre o pecado e sobre a morte é algo certo, o que não suprime a liberdade do homem, que o leva a aceitá-la ou rejeitá-la.

A plenitude que esperamos é uma plenitude já possuída, ao menos em primícias, mas verdadeiramente possuída. Não podemos, de modo algum, esperar aquilo do qual não temos nenhuma ideia. Mas a salvação de Cristo é já conhecida por nós e vivida e experimentada na fé, nas diversas manifestações da vida da Igreja, especialmente na Eucaristia. Karl Rahner (1964) insistiu na escatologia como a transposição do presente à sua plena realização.O senhorio de Cristo sobre todas as coisas é real e eficaz a partir de sua ressurreição, mas ainda não se manifestou completamente em nós. A partir disso entendemos a tensão entre o presente e o futuro, típica da escatologia cristã conhecida a partir do Novo Testamento, que apresenta Cristo como o “último Adão”, nele o homem descobre sua vocação (o porquê do seu existir).

Estes dois polos – o antropológico e o cristológico – se implicam profundamente: por um lado o humano como ser chamado ao sentido – a sua vocação transcendental e escatológica – que tem dentro de si o impulso ao sentido, a superação do absurdo. Por outro lado, o divino como resposta aos anseios humanos de sentido e de realização na fé cristã. Este destino último aproximou-se já do humano, tornou-se um humano, de modo que nele já se manifestou o que seremos. De fato,

[...] a ressurreição de Jesus não pode ser entendida como uma reanimação de cadáver, mas como a total e exaustiva realização das possibilidades latentes no homem (humano), possibilidade de união íntima e hipostática com Deus, comunhão cósmica com todos os seres, superação de todos os liames e alienações que estigmatizam nossa existência terrestre no processo de gestação... Em Jesus Cristo ressuscitado se auto-comunicou o absoluto Futuro. O Futuro absoluto nos veio ao encontro e começou a realizar a plenitude derradeira e definitiva. Jesus Cristo é o primeiro dentre muitos irmãos (Rm 8,29; 1Cor 15,20; Col 1,18) (L. BOFF, 1973).

A ressurreição de Jesus, assim entenderam os cristãos, não é um acontecimento privado/particular da pessoa de Jesus. Nele acontece algo com sentido para toda a história. Com isso dizemos que o futuro absoluto para o cristão não é o incerto, a dúvida. Ele já tomou lugar na história. Por isso a antropologia cristã só pode ser pensada a partir da cristologia. O destino de Jesus Cristo é o paradigma para a escatologia cristã. “Cristo é nossa esperança da glória”, diz Paulo aos Colossenses (cf. Col 1,27). Ou como diz o teólogo Santo Agostinho: “Cristo realizou aquilo que para nós é ainda esperança. Não vemos o que esperamos. Mas somos o corpo daquela Cabeça na qual se concretizou aquilo que esperamos” (Sermones 157,3).

Sem este paradigma (Jesus Cristo), a escatologia está entregue a um vasto campo de especulações e fantasias, o que sem dúvida ocorreu e ocorre na história. Por isso temos que afirmar: se sabemos algo de nosso destino final, só o sabemos e o podemos afirmar a partir de Jesus Cristo. Não temos uma escatologia absoluta, sempre relacional.

O horizonte escatológico na visão do Antigo Testamento

A ideia de que haveria um Dia do Senhor já existia desde o Antigo Testamento:

Do Antigo ao Novo Testamento, o Povo de Deus vive incessantemente voltado para o futuro. É mesmo uma das características que o distingue dos povos que o rodeiam. Enquanto esses povos vivem num mundo fechado, submetido ao perpétuo recomeço dos ciclos naturistas, Israel vive na tensão da salvação que vem; e vê a sua garantia nas intervenções de Deus ao longo do seu passado: a história santa (GEORGE, 1969, p.9).

O povo de Israel sempre soube que o seu Deus era o Senhor dos tempos, Deus que age na história humana, levando o seu povo para um futuro sempre melhor e cheio de esperança. “…segundo a Bíblia, a base da expectativa escatológica do futuro é a certeza, na fé, de uma relação real e atual com Deus. Esta relação real com o Deus da aliança, que torna o passado de novo presente, não se deve sacrificar ao primado do futuro. (...) A base da nossa esperança é, por conseguinte, a nossa fé em Javé, que tanto no passado como no futuro se revela como o Deus vivo da comunidade (SCHILLEBEECKX, 1969, p. 42).

Se observarmos bem os textos do Antigo Testamento, aparece claro que Deus sempre está prometendo ao seu povo um futuro de bênção e felicidade: ele é o Deus da Promessa, o Deus que nunca fica parado no presente, o Deus que sempre faz o povo caminhar ao encontro de um futuro sempre melhor, futuro de vida. Por isso aparece tanto nos profetas aquelas expressões: “eis que virá um tempo”, “eis que virão dias”, “naqueles dias”, “acontecerá no fim dos dias”... Assim, enquanto para os pagãos, o tempo nunca mudava e tudo que já tinha acontecido ia continuar sempre acontecendo e o mundo não tinha jeito mesmo, para o povo de Deus a história do mundo e a história do povo de Israel caminham para um destino, uma finalidade, uma plenitude, que o próprio Deus prometeu e preparou! Bastava que o povo não se fechasse para Deus, que aceitasse caminhar com o Senhor. Isto é muito importante, pois fica claro que não existe destino: o homem é chamado a construir seu destino dizendo sim a Deus e caminhando para o futuro que ele lhe preparou. Cada pessoa é livre: pode dizer sim ou não ao convite de Deus!

É assim que Israel vai tendo cada vez mais certeza de que Deus age na história, conduzindo todos os acontecimentos. O povo da Bíblia sabe que pode se confiar nas mãos do Senhor e esperar num futuro no qual Deus vai agir de modo pleno, com uma intervenção fulgurante, mudando toda tristeza do seu povo em alegria, toda opressão em liberdade, todo pranto em sorriso, toda morte em vida. Todo sofrimento do povo de Israel, todas as suas humilhações terão fim e Deus vai consolar para sempre o seu povo, numa nova situação, em que não haverá mais dor, opressão, pecado nem morte. Este futuro é conhecido, no Antigo Testamento, com o nome de “Dia do Senhor”. Será um Dia de Julgamento e de derrota para todo o pecado do mundo, para todo o mal praticado na história humana e um Dia de salvação e vitória para todos os amigos de Deus, particularmente para o povo de Israel. Por exemplo: “Os olhos orgulhosos do homem serão humilhados, e será abatida a arrogância humana; naquele Dia só o Senhor será exaltado. Porque é o Dia do Senhor Todo-poderoso contra tudo que é orgulhoso e arrogante, contra tudo que se exalta e que será humilhado (...); só o Senhor será exaltado naquele dia. Os ídolos desaparecerão completamente...” (Is 2,11s.18s). É importante observar que quando o Antigo Testamento fala desse Dia do Senhor usa comparações, imagens, figuras, metáforas, para ensinar que será um Dia solene e decisivo, Dia da verdade, Dia de julgamento, Dia que envolverá não somente a humanidade, mas toda a criação: “Tocai a trombeta em Sião, dai alarme em minha montanha santa! Tremam todos os habitantes do país, porque está chegando o Dia do Senhor! Sim, está próximo! É um Dia de trevas e escuridão, um Dia de nuvens e obscuridade”! (Jl 2,1s); “Colocarei sinais no céu e na terra, sangue, fogo e colunas de fumaça! O sol se transformará em trevas, a lua em sangue, antes que chegue o Dia do Senhor, grande e terrível”! (Jl 3,3s); “Eis que vem o Dia, que queima como um forno. Todos os arrogantes e os que praticam o mal serão como palha; o Dia que vem os queimará de modo que não lhes restará raiz nem ramo. Mas para vós que temeis o meu nome, brilhará o sol de justiça, que traz a cura em seus raios” (Ml 3,19s).

Nestes textos, a imagem da trombeta significa solenidade, julgamento (pois os julgamentos e as entradas dos personagens solenes eram sempre anunciadas com o toque da trombeta), os sinais no céu e na terra são imagens para mostrar que esse Dia do Senhor terá importância para toda criação e o fogo recorda que o Senhor purificará sua criação de todo pecado e maldade. Trata-se de um tipo de linguagem chamado de linguagem apocalíptica, que descreve as coisas de modo bem estonteante, vivo, exagerado, em que o importante não são os detalhes, mas a ideia que as imagens querem transmitir!

Mais uma coisa: aos poucos, os profetas vão descobrindo que este Dia do Senhor estará ligado à chegada de um personagem misterioso, chamado de Messias (= o Ungido de Deus) e, às vezes, de Filho do Homem: “Continuei a prestar atenção às visões noturnas, eis senão quando, com as nuvens do céu, vinha vindo um como filho de homem; ele avançou até junto do Ancião e foi conduzido à sua presença. Foram-lhe dados domínio, glória e realeza, e todos os povos, nações e línguas o serviam. Seu domínio é eterno e não acabará, seu reino jamais será destruído” (Dn 7,13-14). Esse Filho do Homem viria de junto de Deus (representado aqui pela imagem do Ancião, recordando a sua eternidade). Quando a profecia diz que ele vem sobre as nuvens, quer dizer que ele vem do mundo divino, que é alguém mais que um simples ser humano. Ele vem para estabelecer um reino eterno, reino de Deus, o Dia do Senhor! Assim, na esperança do povo de Deus, o Senhor mandaria Alguém, chamado de Messias ou Filho do Homem, um personagem misterioso, que traria consigo o Dia do Senhor.

 A irrupção escatológica no Novo Testamento: Jesus e o Reino

Com efeito, já nos Sinóticos nos encontramos com as palavras de Jesus sobre o Reino de Deus que já chegou ao lado das declarações sobre a vinda do Filho do Homem. Jesus é o Reino. Tanto o presente como o futuro (e esse é o ponto essencial) estão ligados em sua pessoa. Jesus não fala de um futuro distinto dele mesmo. No evangelho de São João, ainda que não se possa dizer que a dimensão de futuro seja totalmente ausente, acentua-se muito frequentemente o presente da salvação. É somente a partir do presente da salvação em Cristo que tem sentido a dimensão de futuro. Mas, por outro lado, a plena participação na glória do Senhor pressupõe a participação em sua morte. Todos temos que nos submeter ao juízo da cruz do Senhor. O paradoxo da salvação presente e da realização que ainda esperamos não se resolve com a afirmação de um aspecto contra o outro, mas com a afirmação dos dois juntos.

De maneira semelhante deve-se colocar a questão da continuidade e da ruptura entre a vida presente e aquela futura. Por uma parte é certo que a morte de Jesus na cruz nos mostra claramente uma cisão entre sua vida terrena e sua vida gloriosa; por outra parte, Jesus ressuscitado aparece trazendo as marcas da paixão. Se a vida futura não é como que uma simples continuação da vida presente, não podemos esquecer que, no entanto, depende dela. É neste mundo transitório onde se decide a nossa sorte eterna: por isso, nosso esforço no mundo que passa adquire um valor transcendente. Assim, ruptura e continuidade devem ser afirmadas ao mesmo tempo.

A escatologia é o tratado sobre a esperança cristã. O que se chama de escatologia bíblica, na verdade é o resultado de um processo histórico, confluência de pequenas experiências vividas na fé em Deus. A dinâmica da promessa perpassa o Antigo e o Novo Testamento, ocorrendo neste último o encontro com Jesus de Nazaré. A ação salvífica de Deus delineia o horizonte escatológico do Novo Testamento, ápice de todo processo de salvação.

A escatologia é o anúncio da fé no que se refere ao futuro definitivo do homem, de sua história e do mundo. A esperança permanece radicada na vitória do Cristo, e, portanto, uma vitória que já pode ser experimentada na perspectiva da produção de sentido para a vida humana, recuperando a fonte mais genuína em Cristo capaz de englobar toda a vida humana.

Cada indivíduo humano é criado segundo a imagem de Deus, e faz seu caminho através da história humana, no sentido de uma perfeita comunhão ainda a ser plenamente realizada. Nesse sentido os seres humanos compartilham a solidariedade de uma unidade que tanto já existe, quanto ainda está para ser alcançada. Divididos pelo pecado, aguardam a vitoriosa vinda de Cristo.

“Com efeito, sabemos que toda a criação, até o presente, está gemendo como que em dores de parto, e não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos em nosso íntimo, esperando a condição filial, a redenção de nosso corpo. Pois é na esperança que fomos salvos. Ora, aquilo que se tem diante dos olhos não é objeto de esperança: como pode alguém esperar o que está vendo? Mas se esperamos o que não vemos, é porque o aguardamos com perseverança” (Rm 8,22-25).

A unidade da família humana ainda está para ser realizada. A missão dos homens é realizar progressivamente a unidade querida por Deus em Cristo. A temática da morte representa um momento de esperança na medida em que o homem toma posicionamento diante de Deus, e de questionamento da própria vida com seus anseios em relação ao futuro. A escatologia cristã busca de algum modo colocar a resposta da fé no meio do fluxo das forças que se movimentam no mundo. Cada homem traz em si um desejo de transcendência e plenitude.

Somente em Cristo se realiza a esperança da salvação cristã. A reflexão cristã não está destinada unicamente às realidades da alma, indiferentes à vida do homem. A teologia tem a função de tornar o dado revelado compreensível para todos os homens. Guiada pelo Espírito, e reconhecendo o valor das realidades históricas, não compreende a realidade do homem desligada do mistério salvífico de Deus.

FONTE: BENTO XVI. Spe salvi. São Paulo, Paulinas 2007.

BLANK, R. J. Escatologia da pessoa. Vida, morte e ressurreição. São Paulo, Paulus 2000.

BLANK, R. J. Escatologia do mundo. O projeto cósmico de Deus. São Paulo, Paulus 2001.

BOFF, C. M. Escatologia: breve tratado teológico-pastoral. São Paulo: Ave-Maria 2012.

BOFF, L. Vida para além da morte. Petrópolis: Vozes 1973.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 6 ed. São Paulo: Vozes, 1993. GEORGE, A. O juízo de Deus. Esboço de interpretação de um tema escatológico. Concilium 1969/1. MARROU, H-I, Teologia da história. O sentido da caminhada da humanidade através da temporalidade. Petrópolis: Vozes 1989. RUIZ DE LA PEÑA, J. L. La Pascua de la Creacion. Escatología. 3. ed. Madri: BAC, 2000. SCHILLEBEECKX, E. Algumas reflexões acerca da interpretação da escatologia. Concilium 1969/1.


                                                                                                                 Fernando Vanini de Maria


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