A AÇÃO DA IGREJA NO TEMA DA ESCRAVIDÃO.

 


Infelizmente nosso sistema educacional prima mais por uma formação ideológica velada que pela objetividade ou por uma tomada clara de posição. A Igreja é sempre alvo de distorções.
Ora, isto não é verdade, pelo que mostraremos adiante.

A escravidão é tão antiga quanto o ser humano. Em princípio, estava associado às guerras em quase todos os povos; os vencidos eram feitos escravos, na Grécia, em Roma, mas também entre os incas e astecas do México antigo. O guerreiro vencido ser tornava propriedade do vencedor. Entre muitos povos também se tornava escravo do credor quem não poderia pagar suas dívidas, vendia a sua pessoa ou seus filhos e familiares ao credor. Na Grécia praticava-se o rapto, especialmente para crianças, e as crianças abandonadas pelos pais podiam ser levadas como escravos. No período áureo de Atenas, houve na Grécia 15% de homens livres e 85% de escravos. Na Mesopotâmia havia escravos de certo nível cultural, eram prisioneiros de guerra, como muitos analisadores deportados para a Babilônia no ano 570 aC. No Império Romano, os escravos fazem trabalhos domésticos,

Em alguns lugares os escravos podem trabalhar por conta própria, pagando ao patrão uma parte do que ganha e juntando algum dinheiro para comprar sua liberdade. Nos séculos II-I aC em Roma a escravatura atingiu o auge. Todas as atividades como agricultura, indústria, comércio, construção civil e outras atividades da civilização antiga dependiam da escravatura; sem isso nem a vida pública nem a doméstica se sustentar no Império Romano, pode-se dizer que a sociedade romana se baseava sobre o trabalho escravo. Querer abolir a escravidão na Antiguidade equivaleria a querer acabar com o trabalho assalariado de nossos dias; a sociedade pararia de funcionar.

Isto explica porque o Cristianismo, embora ensine a igualdade de todos os homens (cf. Gl 3,28; Rm 10, 12; Cl 3,11; 1Cor 12, 13), não ter podido e conseguido acabar de imediato com a escravatura no Império Romano. É bom lembrar que a própria Bíblia no Antigo Testamento, dentro do contexto da moral do tempo, reconhecia a escravidão de estrangeiros (cf. Lv 25, 44-55).

Tudo isso constitui uma mentalidade de peso, um forte traço da cultura da época. Note que entre certos povos a escravidão existem até o século XX; por exemplo, somente em 1962 foi oficialmente abolida na Arábia Saudita. Um relatório apresentado em 1955 em sessão da ONU asseverava a existência de indícios de escravidão e similaridades ainda em determinadas regiões, como a península arábica, o Sudeste asiático, a África e a América do Sul. Recentemente espalharam-se notícias de que o Sísião (África) tem plena vigência a escravatura. 

O Apóstolo São Paulo dava instruções a senhores e escravos a fim de que convivessem em harmonia. (cf; Ef 6, 5-9; Cl 3, 22-41; 1Cor 7, 21-23; Tt 2,9s); o escravo Onésimo, fugitivo do seu senhor Filemon, e depois batizado por São Paulo, foi devolvido por Apóstolo a seu patrão com uma Carta, que pedia um tratamento fraterno para o cristão escravo. Nas palavras de São Paulo a Filemon se vê com facilidade que ele amava o escravo como um ser humano, e não como alguém que não tinha alma; e isso já por volta do ano 50.

O Concílio de Nicéia (ano 325), a Igreja afirma que escravos foram admitidos ao sacerdócio.

O Papa S. Calisto, do ano 217, por exemplo, foi um escravo liberto. Ora, como a Igreja poderia ter acreditado, então, que o escravo não tinha alma? Muitos fatos históricos mostram que a Igreja sempre defendeu e protege os escravos, exatamente por ver os filhos de Deus dotados de alma imortal.

Existia na Igreja a Ordem da SS. Trindade, desde 1198, e a dos Mercedários ou Nolascos desde 1222, destinadas a redimir os cativos detidos pelos Sários. (cf. História de Portugal, vol. IV , Damião Peres (Dir.) Barcellos, Portucalense Editora 1932, p. 565).

Por acaso S. Benedito (1526-1589), o santo negro, o Mouro, não foi descendente de escravos? Como a Igreja poderia canonizar um santo negro se não acreditasse que ele tem alma? 

Em uma Carta do Papa João VIII, datada de setembro de 873 e dirigida aos Príncipes da Sardenha, ele diz:

"Há uma coisa a respeito do qual desejamos admoestar-vos em tom paterno; se não vos emendardes, cometereis grande pecado, e, em vez do lucro que esperais, vereis multiplicadas como vossas desgraças. Com efeito; por instituição dos gregos, muitos homens feitos cativos pelos pagãos são vendidos nas vossas terras e comprados por vossos cidadãos, que os mantêm em servidão. Ora consta ser piedoso e santo, como convém a cristãos, que, uma vez comprados, esses escravos são postos em liberdade por amor a Cristo; a quem assim proceda, a recompensa não será dada pelos homens, mas pelo mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo. Por isto exortamo-vos e com paterno amor vos mandamos que comprei os pagãos alguns cativos e os deixeis partir para o bem de vossas almas" (Denzinger-Schönmetzer, Enquirídio dos Símbolos e Definições nº 668).

O Papa Pio II, em 7 de outubro de 1462, condenou o comércio de escravos como magnum scelus (grande crime).

O Papa Pio VII (1800-1823) inveja uma Carta ao Imperador Napoleão Bonaparte da França, em protesto contra os maus tratos aos homens vendidos como animais, onde dizia:

"Proibimos todo eclesiástico ou leigo apoiar como legítimo, sob qualquer pretexto, este comércio de negros ou pregar ou pregar ou em ensinar público ou em particular, de qualquer forma, algo contrário a esta Carta Apostólica" (citado por L. Conti, "A Igreja Católica e o Tráfico Negreiro", em 'O Tráfico dos Escravos Negros nos séculos XV-XIX". Lisboa 1979, p. 337).

O mesmo Sumo Pontífice se dirigiu a D. João VI de Portugal nos seguintes termos:

"Dirigimos este ofício paterno à Vossa Majestade, cuja boa vontade nos é plenamente conhecido, e de coração a exortamos e solicitamos no Senhor, para que, conforme o conselho de sua prudência, não poupe esforços para que... o comércio de negros será extirpado para o bem da religião e do gênero humano".

Pio VII também muito se empenhou para que no Congresso Internacional de Viena (1814-15) a instituição da escravatura fosse condenada e abolida. 

O atrevimento dos maus e a burrice imensa que se estendeu sobre o mundo é que permite tolices como essa de que se julgar que os índios não tinham alma.

    Ora, em geral, quem diz essa calúnia contra a Igreja são historiadores marxistas, ou filo materialistas, que negam a existência da alma em qualquer homem, e não só nos índios.

    Se eles negam que o homem tenha alma, por que se fingem de escandalizados dizendo que os espanhóis negavam que os índios tinham alma?   

     Ao mesmo tempo em que esses "historiadores" caluniadores dizem que se considerava que os índios não tinham alma, eles afirmam que os espanhóis impunham aos selvagens a religião católica à força. Ora, se os colonizadores julgassem que os índios não tinham alma, para que quereriam lhes impor a religião católica?

    Como se pode ter a ousadia de escrever tais tolices, sabendo-se que os jesuítas vinham exatamente catequizar e ensinar a religião aos índios?

    Se os jesuítas julgassem que os índios não tinham alma, jamais os teriam catequizado e batizado.

    A Igreja sempre condenou a escravidão e sempre defendeu os índios e negros como seres humanos.
    Já na carta de Pero Vaz de Caminha se diz que a maior riqueza da terra descoberta "eram as almas dos índios a converter". E a Igreja sempre fez missões com os índios e negros, para convertê-los a fé, e batizá-los. Ora, só podia fazer isso por afirmar que eles eram seres humanos dotados de alma imortal.

    O Papa Paulo III (1534-1549) na Bula Sublimis Deus, exigiu respeito aos índios e às suas propriedades. 

No início do século XVI o dominicano Domingos de Minaja viajou da América Espanhola a Roma, a fim de relatar ao Papa Paulo III (1534-1549) os abusos ocorrentes com relação aos índios. Em consequência, o Pontífice escreveu a Bula “Veritas Ipsa” (1537), onde condena a escravidão:

“O comum inimigo do gênero humano, que sempre se opõe as boas obras para que pereçam, inventou um modo, nunca dantes ouvido, para estorvar que a Palavra de Deus não se pregasse as gentes, nem elas se salvassem. Para isso moveu alguns ministros seus que, desejosos de satisfazer as suas cobiças, presumem afirmar a cada passo que os índios das partes ocidentais e meridionais e as mais gentes que nestes nossos tempos tem chegado à nossa notícia, hão de ser tratados e reduzidos a nosso serviço como animais brutos, a título de que são inábeis para a Fé católica, e, com pretexto de que são incapazes de recebe-la, os põem em dura servidão em que têm suas bestas, apenas é tão grande como aquela com que afligem a esta gente. Pelo teor das presentes determinamos e declaramos que os ditos índios a todas as mais gentes que aqui em diante vierem a noticia dos cristãos, ainda que estejam fora da fé cristã, não estão privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, e não devem ser reduzidos a servidão”.

Neste texto merece atenção especial a menção de índios e “das mais gentes”, que são os africanos. A uns e outros Paulo III quer defender. Por isto acrescenta:

“Pelo teor das presentes determinamos e declaramos que os ditos índios e todas as mais gentes que daqui em diante vierem à notícia dos cristãos, ainda que estejam fora da fé cristã, não estão privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, e não devem ser reduzidos à servidão”.

Essa Bula de Paulo III teve grande efeito, tanto assim que a 30 de julho de 1609 El-Rey promulgou lei que abolia por completo a escravidão indígena: “Declaro todos os gentios daquelas partes do Brasil por livres, conforme o direito e seu nascimento natural, assim os que já foram batizados e reduzidos a nossa Santa fé católica, como os que ainda servirem como gentios, conforme a pessoas livres como são”.

Aos 24.4.1639 o Papa Urbano VIII (1623-1644) publicou o Breve “Commissum Nobis”, incutindo a liberdade dos índios da América. No seu Breve, o Papa ordenava, sob pena de excomunhão reservada ao Pontífice, que ninguém prendesse, vendesse, trocasse, doasse ou tratasse como cativos os índios da terra. Dispunha ainda que a ninguém seria lícito ensinar ou apregoar o aprisionamento dos mesmos. Por causa disso, revoltaram-se os colonos no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Santos e no Maranhão. Os Jesuítas foram perseguidos, sendo expulsos de São Paulo, Santos e do Maranhão, para onde só puderam voltar tempos depois.

Esta mentira contada não só para a nossa vocacionada mas, inculcada na cabeça de centenas de pessoas tem origem na história do famoso bispo de Chiapa, na América, Frei Bartolomeu de las Casas (1474-1566), que segundo a fontes duvidosas levantou-se em defesa dos índios contra sua escravidão.  o que ninguém conta é que este Frade dominicano, depois Bispo de Chiapas, Frei Bartolomé de Las Casas, o qual todos os inimigos da Igreja o louvam e apresentam seus escritos como prova da maldade e dos crimes da colonização, considerando-o como o grande defensor dos índios e inimigo da escravidão.

    Não dizem, porém, que Las Casas tinha escravos índios e negros, e que foi ele um dos propulsores da escravidão dos negros na América.     Já Frei Motolinia, um dos grandes missionários do México após a Conquista, venerado pelos índios diz de Las Casas que ele "não aprendeu a língua indígena, nem se aplicou a ensinar aos índios" (Frei Motolinia, Carta ao Imperador Carlos V, apud Joaquin Jareño Alarcón e Miguel A. Garcia Olmo, Humanidades para un Siglo Incierto, Quaderna Editorial, Múrcia , 2.003, p.56).

    Las Casas foi um homem agitado e de tal modo exagerado em suas afirmações que houve historiadores que o tiveram como louco.

    Salvador de Madariaga, em sua obra Cosas Y Gentes afirma, citando Montesinos que Las Casas jamais ensinou religião aos índios, e que ele era tão só contraditório e exagerado que "Las Casas era um doente mental que lutava com a paranóia" S. Madariaga, Cosas y Gentes, Espasa Calpe, Madrid , 1960, apud Joaquin Jareño Alarcón e Miguel A. Garcia Olmo, Humanidades para un Siglo Incierto, Quaderna Editorial, Múrcia , 2.003, p.55).

    Um outro historiador, escreveu:

    "(Las Casas) era sumamente inquieto e tinha tendência à exasperação e a considerar-se uma espécie de enviado de Deus. Não faltaram estudiosos que puseram em dúvida seu equilíbrio mental, entre eles destaca-se Menéndez Pidal que chega a considerá-lo paranóico na sua obra El  Padre Las CASAS, su doble personalidad (1963)" (Joaquin Jareño Alarcón e Miguel A. Garcia Olmo, Humanidades para un Siglo Incierto, Quaderna Editorial, Múrcia , 2.003, p.55). 

Por outro lado, o segundo bispo do Brasil, D. Pedro Leitão (1559-1573), assinou aos 30.7.1566 na Bahia, com o Governador Mem de Sá e o Ouvidor Dr. Brás Fragoso, uma junta em defesa dos índios; defendia-os contra os abusos dos brancos e dava maior apoio aos aldeamentos instaurados pelos jesuítas.

O famoso Pe. Antônio Vieira (1608-1697), por vezes considerado como aliado dos senhores da terra contra os escravos, na verdade assumiu posição de censura aberta aos patrões. Disse ele:

“Saibam as pretos, e não duvidem, que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua… porque num mesmo Espírito fomos batizados todos nós para sermos um mesmo corpo, ou sejamos judeus ou gentis, ou servos ou livres” (Sermão XIV).

“Nas outras terras, do que aram os homens e do que fiam e tecem mulheres se fazem os comércios: naquela (na África) o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e compra. Oh! trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh! mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias e as riscos são das próprias! ” (Sermão XXVII).

“Os senhores poucos, e os escravos muitos, os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome, os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros, os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses. /…/ Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com a sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram com a mesmo ar? Não os cobre o mesmo. céu? Não os aguenta o mesmo sol? Que estrela é logo aquela que as domina, tão cruel?”. (Sermão XXVII sobre o Rosário, in Sermões, vol 12, Porto, 1951, p.333-371)

Na Bula “Immensa Pastorum”, de 1741, o Papa Bento XIV (1740-1758) condenou a escravidão.

O Papa Gregório XVI (1831-1846) em 3.12.1839 disse: “Admoestamos os fiéis para que se abstenham do desumano tráfico dos negros ou de quaisquer outros homens que sejam “.

O Papa Leão XIII (1878-1903), disse na Carta “In Plurimis”, em 5.5.1888 aos bispos do Brasil:

“E profundamente deplorável a miséria da escravidão a que desde muitos séculos está sujeita uma parte tão pequena da família humana”.

O papel da Igreja frente à escravatura preparou a libertação dos escravos, assinada finalmente em 13/05/1888 pela Regente, Princesa Isabel. A fim de comemorar este evento, o Papa Leão XIII enviou à Princesa a Rosa de Ouro, sinal de distinção e benevolência de Sua Santidade.

O que a Igreja fez em favor dos escravos

Antes de mais nada, não se julgue que a Igreja realizou de repente a organização social. As grandes revoluções têm de ser precedidas por uma evolução lenta das idéias, pois a opinião pública dificilmente abandona os costumes inveterados. A transformação duma sociedade requer, portanto, uma ação continuada, um trabalho preparatório de grande envergadura. Foi o que a Igreja empreendeu pela sua doutrina, pela sua legislação e pela sua ação.

a) Pela doutrina

Desde o começo a Igreja começou a luta contra a escravatura. O primeiro e mais eloqüente intérprete da sua doutrina foi São Paulo. O Apóstolo das Gentes, com habilidade e arte, estabeleceu os grandes princípios da igualdade (essencial, não acidental) e fraternidade, fundamentos da liberdade individual.

Perante os senhores orgulhosos do Império romano proclamou que todos os homens têm a mesma origem, que foram remidos pelo mesmo sangue, destinados à mesma felicidade e, por conseguinte, iguais ontologicamente, irmãos. Escreveu ele:

Já não há diferença entre judeu e grego, escravo e livre, homem e mulher. Sois todos um, em Cristo Jesus. (Gálatas III, 28)

Quando, porém, enuncia os princípios que deverão pouco a pouco abolir a escravatura, evita cuidadosamente a agressão ostensiva contra os senhores, a luta de classes e a revolução demasiado rápida, que comprometeria o bom êxito da sua obra. Julga mais prudente, por então, recordar a uns e outros os deveres recíprocos: aos escravos, a obediência; aos senhores, a bondade (Efésios VI, 5-6).

O ponto fundamental é que o Cristianismo, ao abraçar a máxima do “ama o próximo como a ti mesmo, plantou no Ocidente as condições para que pudesse existir a igualdade jurídica entre as pessoas  numa palavra, a liberdade fundamento último de todo o sistema jurídico, político e econômico construído ao longo dos últimos dois mil anos. Sem a mensagem salvadora de Cristo ainda estaríamos vivendo formas imperiais e/ou tribais de organização social.

No caso de nosso país, o Pe. Antônio Vieira exortou:

“Saibam os pretos, e não duvidem, que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua…, porque num mesmo Espírito fomos batizados todos nós para sermos um mesmo corpo, ou sejamos judeus ou gentios, ou servos ou livres.” (Sermão XIV)

“Nas outras terras, do que aram os homens e do que fiam e tecem mulheres se fazem os comércios: naquela (na África) o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e compra. Oh! trato desumano, em que a mercância são homens! Oh! mercância diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias e os ricos são das próprias!” (Sermão XXVII)

Em 1707, na cidade do Salvador teve lugar o Primeiro Sínodo Diocesano do Brasil, que promulgou as “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, que estiveram em vigor nas demais dioceses do país durante os séculos XVIII e XIX. Esse documento dedicou vinte e três tópicos à situação dos escravos.

Entre outras, merece atenção a exortação a que os senhores proporcionassem aos escravos comida, roupa e o descanso dos domingos e dos dias santos:

“Não é menos para estranhar o desumano e cruel abuso e corruptela muito prejudicial ao serviço de Deus e bem das almas, que muitos senhores de escravos têm introduzido: porque, aproveitando-se toda a semana dos miseráveis escravos, sem lhes darem coisa alguma para o seu sustento nem vestido com que se cubram, não lhes satisfazem esta dívida, fundada em direito natural, como lhes deixarem livres os domingos e dias santos, para que neles ganhem o sustento e vestido necessário. Donde nasce que os miseráveis servos não ouvem Missa nem guardam o preceito da Lei de Deus, que proíbe trabalhar em tais dias. Pelo que, para desterrar tão pernicioso abuso contra Deus e contra o homem, exortamos nossos súditos e lhes pedimos, pelas chagas de Cristo Nosso Senhor e Redentor; que daqui em diante acudam com o necessário aos seus escravos, para que possam observar os ditos preceitos e viver como cristãos”.

Nesta passagem é significativa a menção de abuso contra o homem (não apenas contra Deus), menção que revela a consciência de que todo ser humano, mesmo nas condições da escravatura (que era um traço inerente aos costumes daquela época), merecia respeito.

Gilberto Freyre nos ensina que uma das primeiras coisas que se fazia quando um escravo chegava da África era batizá-lo, isso demonstra a crença na alma e, portanto, da identidade essencial entre todos os homens.

b)Pela sua legislação

Sob influência da Igreja os imperadores convertidos ao cristianismo promulgaram leis tendentes a melhorar a condição do escravo. Para não citar senão alguns exemplos:

1-Constantino, proibiu que se marcassem os condenados e os escravos no rosto “onde reside a imagem da beleza divina” e declarou réus de homicídio os senhores que pelos maus tratos ocasionassem a morte dos escravos.

2-Teodósio, pôs em liberdade todos os filhos vendidos pelos pais.

3-Justiniano, promulgou uma lei, segundo a qual o rapto das escravas se devia castigar com as mesmas penas que o das mulheres livres.

As invasões dos bárbaros no século V foram nefastas para a causa dos escravos. Mas a Igreja, por meio de numerosos concílios regionais continuou a trabalhar contra a escravatura. O concílio de Auxerre, por exemplo, proibiu o trabalho dos escravos aos domingos. Os concílios do século VIII reconheceram a validez do casamento contraído, com conhecimento de causa, entre livres e escravos.

Além disso, o escravo foi admitido pela Igreja ao sacerdócio e à profissão monástica, contanto que obtivesse prévio consentimento do senhor ou carta de alforria.

No caso do Brasil, poucos decênios após o Primeiro Sínodo Diocesano do Brasil, o Papa Bento XIV, lançou a Bula lmmensa Pastorum, redigida aos Bispos do Brasil e de outras partes da América, a fim de que tentassem obter melhores condições de vida para os escravos.

O documento lembra, de início, que:

“…não devemos ter maior caridade do que nos preocuparmos em colocar nossa existência não só a favor dos cristãos, mas também da escravatura e inteiramente a favor de todos os homens.”

A seguir expõe o problema:

“Por isto recebemos certas notícias não sem gravíssima tristeza de nosso ânimo paterno, depois de tantos conselhos dados pelos mesmos Romanos Pontífices, nossos Predecessores, depois de Constituições publicadas prescrevendo que aos infiéis do melhor modo possível dever-se-ia prestar trabalho, auxílio, amparo, não descarregar injúrias, não flagelos, não ligames, não escravidão, não morte violenta, sob gravíssimas penas e censuras eclesiásticas…”

O Pontífice ainda recorda, renova e confirma as declarações dos Papas Paulo III em 1537 e Urbano VIII em 1639. O primeiro ordenou ao Arcebispo de Toledo que protegesse os índios da América e ameaçou de excomunhão, cuja absolvição ficaria reservada ao Papa, quem os subjugasse. Quanto a Urbano VIII, estipulou severas censuras canônicas para todos os que violentassem o livre arbítrio dos índios, convertidos ou não. Bento XIV chama desumanos os atos de prepotência contra os escravos e estabelece haja excomunhão latae sententiae ipso facto incurrenda (isto é, excomunhão infligida desde que cometido o delito) e outras censuras canônicas para os que maltratavam os índios. E por “maus tratos aos índios” explica o Pontífice que entende escravizar, vender, comprar, trocar, dar, separar de suas mulheres e filhos, esbulhar, levar para outros lugares, cercear de qualquer modo a livre ação, deter no cativeiro, como também, por qualquer pretexto, ajudar de qualquer forma os agentes destas iniqüidades. Exorta finalmente os Bispos a que “com diligência, zelo e caridade cumprissem a sua tarefa”.

Infelizmente, o Marquês de Pombal, por alvará de 8/5/1758, mandou executar esta Bula em todo o Brasil apenas no tocante aos indígenas. Na verdade, o teor do documento refere-se a todos os homens, incluídos os de origem africana trasladados para o Brasil.

C) Pelos seus atos

No exercício do culto, a Igreja primitiva não tinha em conta as distinções sociais.

Entre ricos e pobres, entre escravos e livres, não há diferença alguma. (Lactâncio)

Esta foi uma das principais razões que mais contribuíram para a libertação dos escravos.

As reuniões da Igreja teriam bastado só por si para desterrar esta cruel instituição (a escravatura). A antigüidade se pode conservar a escravatura excluindo-a dos cultos patrióticos. Se tivessem tomado parte nos sacrifícios juntamente com os senhores, ter-se-iam levantado moralmente. A reunião da igreja era a mais perfeita lição de igualdade religiosa… Uma vez que o escravo tem a mesma religião que o senhor e que ora no mesmo templo, a escravatura está prestes a acabar.” (Renan, Marco Aurélio)

A admissão dos escravos ao sacerdócio e à vida monástica, de que falei, foi outro grande impulso para o nivelamento das classes. Sob o burel e sob o véu monásticos não há distinção entre senhores e escravos: uns e outros trabalham e oram em comum, confundidos numa igualdade perfeita.

Devemos notar, também, que a partir do século VI a Igreja, enriquecida com piedosas doações de reis e senhores, emprega grande parte dos seus bens em resgatar inúmeros prisioneiros de guerra e escravos, para lhes dar a liberdade ou, pelo menos, para lhes tornar a vida mais suave.

É bem conhecida a obra de Leão XIII e do Cardeal Lavigerie contra o tráfico negreiro no século XIX.

No nosso país, tivemos o trabalho dos jesuítas, bem conhecido, embora igualmente distorcido pela historiografia marxista.

Tal foi a obra da Igreja no passado e continua hoje em muitas partes do mundo onde o flagelo da escravidão persiste, como no Sudão.

Não fosse cansativo para os leitores poderíamos ainda encher páginas e mais páginas mostrando o belo trabalho da Igreja na defesa dos índios e dos negros. Mas creio que bastam os fatos citados para desmentir tais falácias que os inimigos da igreja tentam incrustar nos corações das pessoas.

Sobre esse problema da imortalidade da alma dos índios e sobre a escravidão indígena e negra na América recomendo-lhe que leia os seguintes livros:
- TERRA, Martins J. E. S. J.(org) –- in Revista de Cultura Bíblica nº 26-27, São Paulo, Loyola, 1983.
- BENCI, J . Pe. – Economia Cristão dos Senhores no Governo dos Escravos, Lisboa, 1954.
- BETTENCOURT, Estevão - O Tráfico Negro no Brasil e a Igreja
- MALHEIRO, A. M. P.- A Escravidão no Brasil – São Paulo, Cultura, 1944. 

Bibliografia utilizada neste artigo:

Revista “Pergunte e Responderemos”, D. Estevão Bettencourt: N. 448/1999 – pg. 399-409; Nº 318 – Ano 1988 – Pág. 509; N. 267/1983, pp. 106-132; N. 274/1984, pp. 240-247.

Terra, João Evangelista Martins, “A Igreja e o Negro no Brasil”. Ed. Loyola 1983.

Bíblia, Igreja e Escravidão. Coordenador João Evangelista Martins Terra S. J. Ed. Loyola 1983.

Carvalho, José Geraldo Vidigal, « A Escravidão. Convergências e Divergências”. Ed. Folha de Viçosa, 1988.

Carvalho, José Geraldo Vidigal, “A Igreja e a Escravidão. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos”. Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, 1988.

Balmes, Jaime, “A Igreja Católica em face da Escravidão”, São Paulo 1988.

Professor Felipe de Aquino - editora Cleofas

Fernando Vanini de Maria

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