Seria o dom de línguas, descrito por São Paulo em Atos dos Apóstolos, realmente aquilo no qual os movimentos carismáticos dizem ser o que é? No último século temos observado aqui e acolá movimentos, grupos, comunidades, apostolados, que incentivam a vivência da chamada glossolalia, pretendendo que esta prática seja continuidade da manifestação de Pentecostes, seguida pelos primeiros cristãos, apoiando assim uma tendência que penetrou na Igreja Católica. O tema é árduo, pouco explorado. Aqui a virtude da prudência nos guiará para que possamos investigar e adentrar por essa senda. Ao longo das páginas será descrito, com detalhes como os primeiros Pais da Igreja e os grandes autores eclesiásticos, entendiam esse carisma, confrontando com a prática atual dos grupos carismáticos e pentecostais, sempre demonstrando o que a Igreja crê. De resto o conteúdo é pura e simplesmente o que ensinaram os gigantes da fé e as autoridades da Igreja Católica.
__________________________________________________________________________
1.
INTRODUÇÃO
O
Pentecostes de 33 foi uma notável data na história humana. Naquele dia, a
Igreja cristã foi fundada pelo derramamento do Espírito Santo de Deus sobre
cerca de 120 dos discípulos de Jesus reunidos num sobrado de Jerusalém. A
Bíblia relata que, em resultado disto, “todos ficaram cheios do Espírito Santo
e passaram a falar em outras línguas”. (Atos 2, 4). Seria este falar em línguas
um derramar de palavreado de pessoas em êxtase religioso? Ou poderia ser também o cumprimento da
profecia indicada em Joel 3,1? Será que falar em línguas realmente significa
que se tenha o Espírito Santo de Deus?
Porque quando estabelecia uma lista de “dons espirituais”, o apóstolo
Paulo colocou as línguas e sua interpretação em último lugar, incentivando os
cristãos a persistirem em buscar zelosamente os maiores dons, especialmente o
amor, que Jesus disse ser o verdadeiro sinal identificador de seus seguidores? Nos perguntamos também se aquele movimento
denominado carismático iniciado na rua Azuza, Califórnia em 1906 e que depois
chegou até a universidade de Duquesne em 1967 seria uma extensão do dom de
línguas experenciado pelos Apóstolos em Jerusalém? A Igreja, por um lado,
reconhece que o Espírito Santo move-se como deseja e assim ela não quer opor a Sua obra e, por outro lado, a Igreja
deve discernir a autenticidade de cada carisma, para que não seja um engano do
maligno. É digno de nota mencionar que, o apóstolo Paulo falava duma vindoura
“apostasia” do verdadeiro cristianismo e o aparecimento duma classe chamada “o
homem que é contra a lei”, cuja presença seria “segundo a operação de Satanás,
com toda obra poderosa, e sinais e
portentos mentirosos, e com todo engano injusto para com os que estão
perecendo”. (2 Tes. 2, 3. 9.10) Poderia o falar em línguas ser parte
dum “engano injusto” promovido por Satanás?
Por
isso neste artigo nos é apresentado uma série de
questionamentos voltados a um tema tanto quanto polêmico, que nos últimos
quarenta anos foi introduzido por movimentos pentecostais e, que dia a dia vem crescendo
dentro da Igreja Católica..
2. CONCEITO
E AUTENTICIDADE DA MANIFESTAÇÃO
DO FENÔMENO ( DONS DE LÍNGUAS ) OCORRIDAS NOS MOVIMENTOS CARISMÁTICOS DENTRO DA
IGREJA CATÓLICA
O modo
como tais movimentos carismáticos inseridos no seio da Igreja
Católica entende a oração em línguas, é sim, algo de novo na teologia mística. Na área do conceito sobre a
graça muitos fiéis e “movimentos” equivocam no entendimento e rompem com a
Doutrina Católica revelando a raiz chave de seu inteiro sistema de erros. Como há tempos tenho observado, alguns defendem a
necessidade de um fenômeno sensível que acompanhe e dê significado à recepção
da graça ou pelo menos que a “libere” na alma.. Para eles, o cristão tem que
“sentir” Deus como atuante na alma senão não há propósito de salvação. Isso é claramente
falso! Buscam uma “paz interior” estando susceptíveis aos balançares de uma fé
recheada de subjetivismo sentimentalóide.
A
graça Santificante, aquela que “santifica a alma”, iniciado com a participação
na vida divina pelo batismo, sendo íntimo da Trindade, faz o homem justo entrar
em relacionamento de amizade com Deus, torna-o um Templo do Espírito Santo, um
Filho de Deus, o que lhe da consequentemente, a herança dos Céus, é
inteiramente insensível à alma. Naturalmente que isso não descarta a possibilidade
de que Deus dê uma divina revelação a um indivíduo sobre seu estado de graça,
mas tal revelação certamente cairia no campo do incomum e não como norma geral,
ao contrário do que afirmam os tais “movimentos” que se auto reafirmam serem
“porta-vozes de uma nova maneira de sentir a fé”.
Como
declara o Concílio de Trento: “Cada homem ao levar em consideração a si próprio e
a sua própria fraqueza e indisposição, pode experimentar medo e apreensão sobre
sua própria graça, uma vez que ninguém pode saber com certeza de fé, a qual não
está sujeita a erro, que ele obteve de fato uma graça de Deus”. (Denziger 802).
Isso
não quer dizer que a oração em línguas não exista, e nem que a Renovação
Carismática esteja errada. Apenas me dá o direito de, como cientista da fé
católica, em um ponto controverso, ter uma posição distinta da Renovação. A
oração em línguas e mesmo a contemporaneidade dos dons extraordinários não são
verdades de fé. Pode-se acreditar ou não. Ninguém é menos ou mais católico por
crer na oração em línguas tal qual praticada na Renovação. O fato de ser nova
essa manifestação da oração em línguas ou, pelo menos, se ter dúvidas a
respeito da prática da Renovação, quanto a ela é exatamente o motivo pelo qual
a Santa Sé ainda não se pronunciou. Prudente como é, está estudando, meditando,
vendo os frutos. Enquanto não se pronuncia, somos livres.
A
Renovação ou como também é conhecida RCC, talvez tenha o direito de crer que a
prática dos grupos de oração é a oração em línguas, talvez tenha o direito de
achar que os “gemidos inefáveis” são a
oração em línguas, talvez tenha o direito de diferenciar oração em línguas do
de falar em línguas. Outros (como eu) tenho o direito de não sustentar nada
disso. Podem os carismáticos citar milhares de passagens bíblicas, mas serão
sempre a sua interpretação pessoal. Como eu, baseado no Santo Magistério, na
Santa Tradição e na Sagrada Escritura também faço referência a tantas outras
passagens, e também adentrando a teologia mística, darei a minha interpretação.
Ambas são válidas até que o Magistério dê a sua interpretação infalível. No
essencial unidade, no disputado diversidade, em tudo caridade.
Pode-se
duvidar que a prática que a RCC chama de oração em línguas seja realmente um
fenômeno místico? Claro que sim, pode-se, dado que o Magistério ainda não tenha
se pronunciado sobre a questão. É inegável que às vezes Deus concede graças
verdadeiramente sensíveis, até mesmo fenômenos extraordinários a certas
pessoas. Os verdadeiros carismas presentes na Igreja Primitiva são um claro
exemplo desses fenômenos extraordinários. Uma das maiores gafes dos tais grupos
e “movimentos” certamente é querer transformar algo extraordinário em ordinário
e até necessário para todos.
Basicamente,
os verdadeiros carismas foram dons que capacitaram a Igreja primitiva a se
espalhar rapidamente até os confins do mundo até então conhecido e tornar-se
bem estabelecida antes da morte dos Apóstolos. Como já foi dito antes e como
bem elucidou São Paulo na sua segunda Epístola aos Coríntios, o propósito dos
dons era a edificação da Igreja e não a santificação daqueles a quem eles eram
conferidos.
Primeiramente,
por causa da presença de povos de tudo quanto é nacionalidade dentro do Corpo
da Igreja e em segundo lugar, por causa do comprovado estabelecimento da Igreja
como verdadeira religião em um curto espaço de tempo. O mesmo argumento
pode ser feito hoje contra a presença contemporânea dos carismas. Uma vez que a
Igreja é agora tanto moralmente quanto fisicamente universal, abrigando pessoas,
de tudo quanto é nação e língua, que necessidade haveria da glossolalia ou xenolália
para a evangelização? Uma vez que a Igreja já possui quase dois mil anos de
existência comprovada como verdadeira religião, que necessidade ela teria dos
carismas hodiernos para provar sua Doutrina? Como declara Santo Agostinho: “Uma
vez que mesmo agora quando o Espírito Santo é recebido, ninguém fala nas
línguas de todas as nações, é porque a própria Igreja já fala na língua de
todas as nações: Já que quem quer que seja que não está dentro da Igreja, não
recebeu ainda o Espírito Santo” (Santo Agostinho, Tratado de XXXII sobre João).
Por
outro lado São Tomás de Aquino admite a possibilidade de grossa caricatura
diabólica dos verdadeiros carismas em questões, sobre as quais todos são livres
para examinar com atenção. Se alguma profecia pode vir do demônio? A resposta é
sim. Se as previsões dos profetas quanto ao demônio podem ser verdadeiras? A
resposta é sim. Se o maligno pode operar milagres? A resposta é sim. É bem sabido
que o Diabo e seus demônios podem produzir prodígios que a princípio parecem
milagres para os mais desavisados, como na história do Mago Simão e sua
“milagrosa levitação” desbancada por São Paulo. Portanto é extremamente
perigoso ir aceitando de cara, qualquer fenômeno extraordinário como sendo de
origem divina.
O
grande místico e doutor da Igreja, São João da Cruz, tão frequentemente citado
e tão mal compreendido pelos “gurus” espirituais modernos, tinha o seguinte a
dizer, concernente à supostas “revelações pessoais” vindas de Deus e que foram
experimentadas por alguns de seus contemporâneos: “E eu temo muitíssimo pelo
que está acontecendo nesses nossos tempos: se qualquer alma, seja lá qual for, depois de um pouquinho de
meditação, tiver em suas recordações uma dessas locuções, e imediatamente
“batizá-las” como vindas de Deus e com tal suposição disser: “Deus me disse”,
“Deus me respondeu”. Ainda que não seja exatamente assim, mas, como já
dissemos, essas pessoas são frequentemente os autores de suas próprias
locuções”. (São João da Cruz- A Subida do Monte Carmelo). “Através do desejo de
aceitá-las, eles abrem as portas para o demônio. O demônio pode então
enganá-los usando outras comunicações espertamente fingidas e disfarçadas como
genuínas. Nas palavras do Apóstolo, ele pode transformar-se em “anjo de luz”
(II Cor. 11:14). Independentemente da causa dessas apreensões, é sempre bom
para um homem rejeitá-las de olhos fechados. Se ele fracassa em assim fazer,
ele acabará por dar espaço para aquelas que tem origem diabólica e dará poder
ao demônio para que se aposse de suas próprias comunicações. E não é só isso,
as representações diabólicas se multiplicarão enquanto aquelas que vem de Deus
gradualmente cessarão, de forma que dali a pouco todas virão do demônio e
nenhuma delas de Deus. Isso tem ocorrido com muitos incautos e não instruídos“
(S. João da Cruz).
De
fato, Nosso Senhor Jesus Cristo adverte a Igreja dos perigos de aceitar de cara
supostos milagres: Porque se levantarão falsos cristos e falsos profetas, que
farão milagres e prodígios a ponto de seduzir se isto fosse possível até mesmo
os escolhidos. (Mt 24,24). Mais estarrecedor ainda é sua advertência: “Nem todo
aquele que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus, mas sim aquele que
faz a vontade do meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia:
Senhor, Senhor, não pregamos nós em vosso nome, e não foi em vosso nome que
expulsamos os demônios e fizemos muitos milagres? E, no entanto, eu lhes direi:
nunca vos conheci. Retirai-vos de mim, operários maus!” (Mt 7,21-23).
O
Mérito provém da realização de boas obras destinando ao realizador receber uma recompensa. Só a alma em graça
santificante pode adquirir méritos pelas sua ações. É esse estado que dá valor
eterno a ação. Os “fiéis” vinculados a essa maneira estreita e perniciosa de
interpretação de fé, se distanciando da graça santificante, perdem o direito de
desfrutar dos méritos concedidos por Deus. Assim disturbam o recebimento dos
méritos de Deus. Tudo é feito com intuito de operar milagres para si ou para
outrem. Faltam-lhe senso crítico e a emoção prepondera sobre a razão. As ações
humanas precisam se tornar obras de Deus para ter seu valor divino. Ações
egocêntricas não tem significação sobrenatural. E as nossas ações são em certo
sentido obras de Deus quando Ele está presente numa alma pela graça
santificante? que é prodígio de Deus e não mérito nosso. Todos os méritos das
boas obras a conquistar pertencem a Deus em primeiro lugar, não podendo merecer
a graça primeira, quando da conversão, do perdão e da justificação. Atribuídos
a Deus, nós podemos depois conquistar o merecimento para nós e para os outros
com reta direção divina, a necessidade de crescimento da fé, santificação
pessoal, aumento da caridade, ganhar a vida eterna, numa consciente vivência
espiritual.” A caridade de Cristo em nós constitui a fonte de todos os nossos
méritos diante de Deus. A graça, unindo-nos a Cristo com um amor ativo,
assegura a qualidade sobrenatural dos nossos atos e, por conseguinte, o seu
mérito tanto diante de Deus como diante dos homens. Os santos sempre tiveram
viva consciência de que seus méritos eram pura graça” (CIC, 2011).
Naturalmente
que uma exposição dogmática mais profunda está bem além do objetivo desse
trabalho de conclusão de curso, mas de modo a complexidade dos
“movimentos” e grupos constituídos com essa fé que se torna deformada e
deformante é essencial claramente o significado das coisas, pelo estudo,
pesquisa e pela fé
2.1. Conceito sobre os frutos e dons do Espírito
Santo
Sabemos que o nome Pentecostes só foi dado
após o domínio grego, acerca de 300 anos A.C. Com efeito, no Antigo Testamento
somente encontramos referencia a esse nome no Segundo Livro dos Macabeus
(cf.2Mc 12,32) quando entre os judeus já havia forte inculturação do mundo
grego. Os gregos chamavam a Festa das Colheitas de Pentecostes, por essa ser
realizada cinquenta dias após a Páscoa. Para os cristãos a Festa de Pentecostes
é a nova Festa da Colheita. Se para os judeus o recebimento da Lei significava
um marco na sua história e religião, o mesmo vale para o Pentecostes em relação
aos cristãos. Se no Monte Sinai os judeus receberam em tábuas de pedra a Lei
que não podia justificá-los mas apenas acusá-los (cf. Rm 3,20), no cenáculo em
Jerusalém os primeiros fiéis receberam em tábuas de carne a Lei da Graça que
era capaz de justificá-los. Sobre isso ensinou S.Paulo: "Não há dúvida de
que vós sois uma carta de Cristo, redigida
por nosso ministério e escrita, não com tinta, mas com o Espírito de
Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, isto é, em vossos
corações" (2Cor 3,3).
O
Catecismo da Igreja Católica nos ensina
que “o Amor é o primeiro dom. Ele contém todos os demais” (cf. CIC 733). São
João ensina que “Deus é Amor” (cf. 1Jo 4,8.16). Por isso Deus entregou-se em
sacrifício na Cruz por nós na pessoa de
Jesus Cristo, ato do seu extremo amor por nós (cf Jo 15,13; Mt 26,26-28). Deus
que venceu a Morte é o mesmo que nos insere na vida. Por esta razão o Espirito
Santo é prometido para santificar e curar os fieis de seus pecados e males.
Sobre isso ensina o Catecismo: “Pelo fato de estarmos mortos, ou, pelo menos,
feridos pelo pecado, o primeiro efeito do dom do Amor é a remissão de nossos
pecados. É a comunhão do Espírito Santo (2Cor 13,13) que, na Igreja, restitui
aos batizados a semelhança divina perdida pelo pecado. (...) É por este poder
do Espírito que os filhos de Deus podem dar fruto.”
A
Igreja ensina que o Espirito Santo também é dom dado aos fieis para que estes
deem frutos que são "caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade,
bondade, fidelidade, brandura, temperança" (Gl 5,22-23). Muita gente confunde
os frutos do Espírito Santo com os dons do Espírito Santo. “Os dons do Espírito
Santo são disposições permanentes que tornam o homem dócil para seguir as
inspirações divinas. (...) Os frutos do Espírito Santo são perfeições plasmadas
em nós como primícias da glória eterna.[1]
A Igreja ensina que são sete os dons do Espirito Santo: sabedoria,
inteligência, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus.[2]
Entretanto
encontramos o seguinte ensino de S. Paulo aos Coríntios: "A respeito dos
dons espirituais, irmãos, não quero que vivais na ignorância. Sabeis que,
quando éreis pagãos, vos deixáveis levar, conforme vossas tendências, aos ídolos mudos. Por isso, eu vos declaro:
ninguém, falando sob a ação divina, pode dizer: Jesus seja maldito e ninguém
pode dizer: Jesus é o Senhor, senão sob a ação do Espírito Santo. Há
diversidade de dons, mas um só Espírito. Os ministérios são diversos, mas um só
é o Senhor. Há também diversas operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em
todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum. A um é
dada pelo Espírito uma palavra de sabedoria, a outro, uma palavra de ciência,
por esse mesmo Espírito; a outro, a fé, pelo mesmo Espírito; a outro, a graça
de curar as doenças, no mesmo Espírito, a outro, o dom de milagres; a outro, a
profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, a variedade de
línguas; a outro, por fim, a interpretação das línguas. Mas um e o mesmo
Espírito distribui todos estes dons, repartindo a cada um como lhe apraz"
(1Cor 12,1-11). A Igreja ensina que os dons ou graças do Espírito Santo se
dividem em quatro categorias que veremos a seguir.
2.1.1 Graça santificante ou
habitual
A
graça santificante é um dom habitual, uma disposição estável e sobrenatural
para aperfeiçoar a própria alma e torná-la capaz de viver com Deus, agir por
seu amor”[3].
Este tipo de graça trata-se da “vida infundida pelo Espírito Santo em nossa
alma, para curá-la do pecado e santificá-la” e é “recebida no Batismo”[4].
2.1.2 Graça atual
Esta
designa “as intervenções divinas, quer na origem da conversão, quer no decorrer
da obra da santificação” (Ibidem). A conversão de S. Paulo que se deu no
caminho para Damasco por intervenção de Cristo é um exemplo deste tipo de graça
(cf. At 9,1-8).
2.1.3 Graça sacramental
São “dons que o Espírito nos concede, para nos
associar à sua obra, para nos tornar
capazes de colaborar com a salvação dos outros e com o crescimento do corpo de
Cristo, a Igreja.” São “os dons próprios dos diferentes sacramentos”[5].
2.1.4 Graça especial ou
carisma
As “graças especiais, chamadas também
“carismas”, segundo a palavra grega empregada por S. Paulo e que significa
favor, dom gratuito, benefício. Seja qual for seu caráter, às vezes
extraordinário, como o dom dos milagres ou das línguas, os carismas se ordenam
à graça santificante e têm como meta o bem comum da Igreja. Acham-se a serviço
da caridade, que edifica a Igreja. Entre as graças especiais, convém mencionar
as graças de estado, que acompanham o exercício das responsabilidades da vida
cristã e dos ministérios no seio da Igreja”[6].
Agora ficou simples de entender , Paulo refere-se aos dons carismáticos que
dizem respeito à graça especial, também chamada graça pessoal.
3. O DOM DE LÍNGUAS
Nossa
Santa Igreja ensina que o dom de línguas faz parte dos dons carismáticos, isto é,
dos dons especiais e particulares que são extraordinários, pois os dons
carismáticos ordinários são aqueles que dizem respeito ao “exercício das
responsabilidades da vida cristã e dos ministérios no seio da Igreja”[7],
como por exemplo o ministério dos acólitos, diáconos, presbíteros e bispos. A
Este ensino do Novo Catecismo está em plena continuidade com o catecismo
anterior, onde encontramos: “Além das graças (santificantes, habituais e
sacramentais), que tornam os homens justos e agradáveis a Deus, são também
comuns a todos as graças gratuitas (grátis dadas ou especiais), entre as quais
figuram a ciência, a profecia, o dom de línguas e de milagres, e outras da mesma natureza (cf. 1 Cor 12,8)”[8]
. Logo pretender transformar o que é extraordinário em ordinário, ou especial
em comum é contrapor-se à vontade e ordem divinas.
4. SOBRE OS TEXTOS DA SAGRADA ESCRITURA, LÍNGUAS
ESTRANHAS OU ESTRANGEIRAS ?
Algumas
pessoas defendem a teoria de que o dom de línguas
é um dom onde as pessoas falam línguas estranhas, isto é, línguas desconhecidas
do homem, línguas não deste mundo. Fundamentam esta duvidosa certeza
principalmente no seguinte trecho da
Escritura: "E quando Paulo lhes impôs as mãos, o Espírito Santo desceu
sobre eles, e falavam em línguas estranhas e profetizavam" (At 19,6).
Porém, a expressão “línguas estranhas” é estranha ao texto original que traz
tão somente “línguas”. Através de uma pequena análise no texto de At 19,6 nas versões
bíblicas mais conhecidas e que são
consideradas pelos biblicistas as mais fieis ao texto original podemos
identificar duas linhas de tradução: O
texto não qualifica as línguas faladas, isto é, se eram “estranhas” ou
“estrangeiras”. A essa tendência seguem as seguintes versões bíblicas: Nova
Vulgata, Bíblia de Jerusalém, Bíblia do Peregrino, Bíblia Sagrada da CNBB,
Bíblia Sagrada Vozes, Bíblia Sagrada de Aparecida, Bíblia Sagrada Edição
Pastoral, Bíblia Sagrada Palavra Viva, Tradução Ecumênica da Bíblia, Almeida
Revista e Corrigida. O texto também qualifica as línguas como “diversas”, no
sentido de vários idiomas humanos e também qualifica as línguas faladas como
“estranhas”, no sentido de não conhecida dos homens. Logo, segundo os melhores hermeneutas
bíblicos, o texto sagrado estaria se referindo a línguas diversas e não línguas
desconhecidas dos homens ou de outro mundo. De qualquer forma uma leitura
atenta do texto sagrado poderá esclarecer facilmente a questão. A primeira
referência que encontramos na Sagrada Escritura quanto ao carisma do dom de
línguas está no livro dos Atos dos Apóstolos: “Chegando o dia de Pentecostes,
estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído, como
se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados.
Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo que se repartiram e pousaram
sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar
em línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem. Achavam-se
então em Jerusalém judeus piedosos de todas as nações que há debaixo do céu.
Ouvindo aquele ruído, reuniu-se muita gente e maravilhava-se de que cada um os
ouvia falar na sua própria língua. Profundamente impressionados, manifestavam a
sua admiração: Não são, porventura, galileus todos estes que falam? Como então
todos nós os ouvimos falar, cada um em nossa própria língua materna? Partos,
medos, elamitas, os que habitam a Macedônia, a Judéia, a Capadócia, o Ponto, a
Ásia, a Frígia, a Panfília, o Egito e as províncias da Líbia próximas a Cirene,
peregrinos romanos, judeus ou prosélitos, cretenses e árabes, ouvimo-los
publicar em nossas línguas as maravilhas de Deus! Estavam, pois, todos atônitos
e, sem saber o que pensar, perguntavam uns aos outros: Que significam estas
coisas?” (At2,1-12). Aqui o testemunho da Escritura é claríssimo: no dia de
Pentecostes os apóstolos e os discípulos de Jesus por obra do Espírito Santo
falavam em línguas, isto é, nas línguas dos estrangeiros, de forma que podiam
ser entendidos por eles. Dizem ainda alguns que os apóstolos estariam falando
em sua própria língua e sendo entendidos por pessoas de outras línguas, como
numa espécie de tradução simultânea. Esta tese é completamente desfeita pelo
maior Doutor da Igreja, Santo Tomas de Aquino ao comentar 1Cor 14,1-4:
"(...) o Senhor deu-lhes o dom de línguas, para que a todos ensinassem,
não de modo que falando uma só língua fossem entendidos por todos, como alguns
dizem, mas sim, bem literalmente, de maneira que nas línguas dos diversos
povos,falassem as de todos. (...)".[9]
Outro detalhe que há de se notar é que quando o Apóstolo enumera os dons
carismáticos, refere-se ao dom de línguas como “variedade de línguas” (cf. 1Cor
12,10), isto é, no sentido das várias línguas existentes.
5. O DOM DE LÍNGUAS NA DOUTRINA DOS SANTOS E
DOUTORES DA IGREJA
Santo
Ireneu (séc. II) um dos mais antigos Pais da Igreja sobre o dom de línguas
assim ensinou: "É este Espírito que Davi pediu para o gênero humano, ao
dizer: “Confirma-me pelo teu Espírito que dirige” (cf. Sl 51,14). E ainda este
Espírito que Lucas nos diz ter descido, depois da ascensão do Senhor, sobre os
discípulos no dia de Pentecostes, com o poder de falar em todas as línguas dos
povos e abrir-lhes um novo testamento. Eis por que, na harmonia de todas as
línguas, cantavam hinos a Deus, enquanto o Espírito Santo reunia na unidade as
raças diferentes e oferecia ao Pai as primícias de todas as nações. Foi por
essa razão que o Senhor prometera enviar o Paráclito que nos faria dignos de
Deus. Assim como a farinha seca não
pode, sem água, tornar-se uma só massa, nem um só pão, também nós não
poderíamos tornar um só em Cristo, sem a água que vem do céu."[10].
“Por isso o Apóstolo (Paulo) diz: Falamos de sabedoria entre os perfeitos,
chamando perfeitos os que receberam o Espírito de Deus e que falam todas as
línguas graças a este Espírito, como ele fazia e como ainda ouvimos muitos
irmãos na Igreja, que possuem o carisma profético e que, pelo Espírito, falam
em todas as línguas, revelam as coisas escondidas dos homens para sua utilidade
e expõem os mistérios de Deus”[11].
São
João Crisóstomo (séc. IV) ensinou: "Ele desceu sobre aqueles que o Senhor
Jesus havia reunido porque creram n'Ele. Ele desceu sobre a Igreja. Certamente
um dom pessoal, que cada um recebeu em particular, mas porque estavam unidos,
em comunhão e justamente “no dia de
Pentecostes estavam todos reunidos no mesmo lugar” (At 2, 1) e sofreram uma
transformação radical, repentinamente tomaram consciência da Palavra de Deus em
seu seio e puseram-se a comunicar em todas as línguas as maravilhas de Deus.
Donde o discurso de Pedro anunciando com audácia a Ressurreição do Crucificado
àqueles mesmos que O crucificaram"[12].
Santo
Agostinho (séc. IV-V) fala-nos: “Depois
de ter passado quarenta dias com seus discípulos, subiu ao céu o Senhor ressuscitado. E no quinquagésimo dia, que hoje
celebramos, enviou o Espírito Santo, como está escrito: De repente, veio do céu
um ruído semelhante ao soprar de impetuoso vendaval. E apareceram umas como
línguas de fogo, que se distribuíram e foram pousar sobre cada um deles. E
começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os impelia a falarem
(At2,2.3.4). Aquele vento purificava os corações da palha da carne. Aquele fogo
consumia o fogo da velha concupiscência. Aquelas línguas faladas pelos que
estavam repletos do Espírito Santo prefiguravam a futura Igreja, que haveria de
estar entre as línguas de todos os povos. De fato, após o dilúvio, a ímpia
soberba dos homens construiu uma torre elevada contra o Senhor, e o gênero
humano mereceu ser dividido em línguas diversas, começando cada povo a falar
sua língua para não ser entendido pelos outros povos. Agora, ao invés, a
humilde piedade dos fiéis recolheu a diversidade destas línguas na unidade da
Igreja, onde a caridade reuniu aquilo que a discórdia tinha espalhado. E os
membros dispersos do corpo humano, como membros de um único corpo, voltam a ser
unificados na única cabeça que é Cristo, fundidos na unidade de seu santo corpo
pelo fogo do amor.(...) Vós, porém, irmãos, membros do corpo de Cristo, germes
de unidade, filhos da paz, celebrai este dia alegres, celebrai-o seguros,
porque em vós se realiza aquilo que era prefigurado nos dias em que veio o
Espírito Santo. Porque, como outrora quem recebia o Espírito Santo, embora
fosse um homem só, falava todas as línguas, assim agora fala todas as línguas,
através de todos os povos, a própria unidade. Estabelecidos nela, possuis o
Espírito Santo, os que não estais separados por nenhum cisma da Igreja de Cristo
que fala todas as línguas.”[13]
Quando desceu o Espírito Santo sobre os discípulos, estes falaram as línguas de
todos e por todos foram entendidos. As línguas divididas se uniram em uma.
Logo, se todavia ensinam e são gentis, é conveniente ter diversas línguas.
Dizem ter uma língua? Vejam a Igreja, porque em meio da diversidade de línguas
de carne, existe uma só na fé do coração.”[14].
Santo
Tomás de Aquino (séc. XIII), o Doutor Angélico, o mais santo dos doutores
e o mais doutor dos santos, cuja doutrina foi recomendada por tantos Papas,
deixou-nos o seguinte ensino sobre o dom carismático extraordinário das
línguas: “os primeiros discípulos de Cristo foram escolhidos para percorrerem o
mundo pregando a sua fé a todos, como se lê no Evangelho de Mateus: “Ide e
ensinai a todos os povos”. Ora, não era conveniente que aqueles que eram
enviados para instruir os outros, precisassem ser instruídos por eles sobre a
maneira de lhes falar ou de compreender sua linguagem. Sobretudo por que estes
enviados eram da mesma nação, da Judéia como havia predito Isaías: Aqueles que
sairão impetuosamente de Jacó encheram com sua raça a face da terra. Além
disso, os discípulos enviados eram pobres e sem poder; eles não teriam
encontrado facilmente, desde o começo, intérpretes fiéis para traduzir suas
palavras ou lhes explicar as dos outros, principalmente por terem sido enviados
a povos infiéis. Por esta razão, era necessário que Deus lhes viesse em socorro
com o dom das línguas, a fim de que, como se havia introduzido a diversidade de
línguas, quando os homens começaram a dar-se à idolatria, como se lê no livro
de Gênesis, assim se desse o remédio a essa diversidade, quando tivessem que
ser convertidos ao culto de um só Deus. (...) Uma Glosa de Gregório (Papa)
assim comenta: “O Espírito Santo apareceu sobre os discípulos em línguas de
fogo e lhes deu o conhecimento de todas as línguas”[15].
“Porquanto o dom de línguas devemos saber que como na Igreja primitiva eram
poucos os consagrados para ensinar pelo mundo a fé de Cristo, a fim de que mais
facilmente e a muitos anunciassem a palavra de Deus, o Senhor deu-lhes o dom de
línguas, para que a todos ensinassem, não de modo que falando uma só língua
fossem entendidos por todos, como alguns dizem, mas sim, bem literalmente, de
maneira que nas línguas dos diversos povos, falassem as de todos. Pelo qual
disse o Apóstolo: Dou graças a Deus porque falo as línguas de todos vós (1Co
14,18). E em Atos 2,4, se disse: Falavam em várias línguas, etc. E na Igreja
primitiva muitos alcançaram de Deus este dom. (...) Pois os coríntios, que eram
de indiscreta curiosidade, preferiam esse dom que o da profecia. E aqui por
falar em língua, o Apóstolo entende que em língua desconhecida e não explicada,
como se alguém falasse em língua teutônica a um galês, sem explicá-la, esse tal
fala em língua. A Igreja desde os tempos mais remotos sempre ensinou que o dom
carismático de falar em línguas, consiste no falar em línguas estrangeiras e
não estranhas ou ininteligíveis.
5.1. TANQUEREY E O DOM DE LÍNGUAS
Por Tanquerey, é conhecido o renomado Compêndio de Teologia Ascética e Mística de Adolph Tanquerey, “riquíssimo em conteúdo e firmíssimo na sua doutrina”[16]. Nele encontramos a seguinte doutrina sobre o dom de línguas:“ As revelações, de que acabamos de falar, são dadas sobretudo para utilidade pessoal; as graças gratuitamente dadas são principalmente para a utilidade dos outros. São, efetivamente, dons gratuitos extraordinários e transitórios, conferidos diretamente para bem dos outros, posto que podem indiretamente servir também para santificação pessoal. São Paulo menciona-os com o nome de carismas; na Epístola aos Coríntios distingue nove, que provém todos do mesmo Espírito: O dom das línguas, que, em São Paulo, é o dom de orar em língua estranha com certo sentimento de exaltação; segundo os teólogos é o dom de falar várias línguas”. (TANQUEREY,2007,PG15)
Por fim quando Tanquerey refere-se
especificamente sobre o dom de línguas, pontua que no entendimento dos teólogos
(conforme vimos na doutrina dos Santos e Doutores da Igreja) o falar língua
estranha que se pode entender nos textos paulinos é o falar em várias línguas.
6. O FALSO DOM DE LÍNGUAS
O
Diabo trabalha sem descanso para ridicularizar a obra de Deus, principalmente
com falsificações. Misteriosamente Deus permite que ele interfira mesmo em
assembléias onde todos estão reunidos para louvar e adorar a Deus. Citarei um
testemunho da Sagrada Escritura a este respeito:
Em
Jó 1,6 lemos que "um dia em que os filhos de Deus se apresentaram
diante do Senhor, veio também Satanás entre eles" (Jó1,6).
No episódio da aliança entre os Reis Acabe (de Israel) e Jeosafá (de Judá) para atacar o Rei Ramot de Gallad, Deus permitiu que um espírito enganador se colocasse na boca dos profetas de Israel: “Miquéias replicou: Ouve o oráculo do Senhor: Eu, vi o Senhor sentado no seu trono e todo o exército dos céus ao redor dele, à direita e à esquerda. O Senhor disse: Quem seduzirá Acab, para que ele suba e pereça em Ramot de Galaad? Um disse uma coisa e outro, outra. Então um espírito adiantou-se e apresentou-se diante do Senhor, dizendo: Eu irei seduzi-lo. O Senhor perguntou: De que modo? Ele respondeu: Irei e serei um espírito de mentira na boca de seus profetas. - É isto, replicou o Senhor. Conseguirás seduzi-lo. Vai e faze como disseste. O Senhor pôs um espírito de mentira na boca de todos os profetas aqui presentes, mas é a tua perda que o Senhor decretou” (1Rs 22,19-23 ; 2Cr18, 21-22).
6.1. O falso dom de
Línguas no cristianismo primitivo
Santo Ireneu em sua eminente obra Contra as Heresias relata que um sujeito de nome Marcos com o auxílio de demônios fazia mulheres incautas pensarem que estavam profetizando em nome de Deus: “Ele (Marcos) dá a entender que teria um demônio como assistente que o faz profetizar, a ele e a todas aquelas mulheres que julgar dignas de participar de sua Graça. (...) Então ele repete algumas invocações que arrebatam a infeliz seduzida e diz: Abre aboca, dize qualquer coisa e profetizarás. E aquela excitada por estas palavras e sentindo ferver na alma a ilusão de começar a profetizar e o coração pulsar mais forte do que de costume, anima-se e se põe a profetizar todas as tolices que lhe vêm à cabeça, sem sentido e sem hesitar, justamente por ser inflamada por espírito vazio.(...) Quem manda é maior e mais poderoso de quem é mandado, porque aquele governa e este obedece. Se um Marcos qualquer ou outro dão ordens, como costuma fazer nos seus jantares, toda essa gente brincando de oráculos, ordenando uns aos outros profetizarem coisas que são do seu desejo, então aquele que manda deve ser maior e mais poderoso do que o Espírito profético, mesmo homem, o que é impossível. Mas os espíritos que recebem ordem deles, que falam quando eles querem, são terrenos e fracos, temerários e irreverentes, são enviados por Satanás para seduzir e arruinar aos que não sabem guardar firmemente a fé que receberam no princípio da Igreja”. (Ireneu, 1985 1,13,3-4). Para Santo Ireneu, esses espíritos que faziam as pessoas dizerem coisas sem sentido e sem hesitar eram terrenos e fracos, temerários e irreverentes, enviados por Satanás para seduzir e arruinar”. Eusébio, Bispo de Cesaréia na Palestina e historiador da Igreja, em sua obra História Eclesiástica (séc. IV) nos traz relatos de outro caso semelhante. No livro V da referida obra, ele transcreve o combate de Apolinário (séc. II), Bispo de Hierápolis, contra a heresia de Montano, chamada montanista ou catafrígia. Diz o Bispo Apolinário que estando em Ancira da Galácia havia encontrado a Igreja local toda perturbada pela novidade, uma novidade não de profecia mas, conforme eles diziam, de uma pseudo profecia. A medida que Apolinário com o auxilio do Senhor discutia e argumentava sobre a heresia durante vários dias juntamente com a comunidade, esta se alegrou e fortificada na verdade derrotou e abateu os inimigos da Igreja. Que novidade era esta que confundiu a Igreja de Ancira na Galácia? Que embuste foi apresentado nesta Igreja como o legítimo carisma da profecia e que mereceu o combate do zeloso Bispo? Também em Mísia, nos limites da Frigia, havia uma aldeia chamada Ardabu e ali, um dos novos crentes, chamado Montano, que era procônsul da Ásia, deu acesso ao inimigo, levado pela ambição imoderada de ocupar os primeiros lugares. Como um possesso, em falso êxtase, pôs-se a falar em seus excessos, a proferir palavras estranhas e a profetizar de forma inteiramente oposta ao uso tradicional conservado pela antiga tradição da Igreja”[17]. Assim, como Santo Ireneu, Apolinário (que era seu contemporâneo) nos dá mais um testemunho bem antigo, de que o “proferir palavras estranhas” como se estivesse profetizando por Graça de Deus, é na verdade obra de Satanás e “inteiramente oposta ao uso tradicional conservado pela antiga tradição da Igreja”. Este é o testemunho de alguns dos eminentes defensores da Igreja dos primeiros séculos. E segundo o testemunho deles, o profetizar ou falar em êxtase ininteligível não corresponde à ação da graça de Deus que se dá nos carismas. Cabe lembrar que as palavras deles, são um testemunho confiável, tanto pela sua antiguidade quanto pelo louvor que outros escritores e santos da Igreja lhe deram posteriormente. Devemos lembrar que vários grupos heréticos que viveram durante a Idade Média como os jansenistas (séc. VIII), os “profetas de Cevennol” que viveram na França (séc. XVI), os tembladores ou Shakers e os irvingites (séc XIX), todos eles foram adeptos da prática do falar ininteligível como se fosse dom do Espírito Santo. E ainda hoje essa prática é muito difundida entre os protestantes pentecostais e neo-pentecostais. Portanto, se o embuste de Satanás aconteceu no passado é bem provável que aconteça hoje, afinal este inimigo de Deus trabalhará para a danação dos homens até o fim dos tempos (cf. Lc 22,31). Conforme foi demonstrado, não há fundamento na doutrina perene da Igreja para se afirmar que o dom carismático de línguas seja um falar ininteligível. Provavelmente muita confusão se dá por causa de certos pontos difíceis de entender nas cartas paulinas. Por isso, devemos nos lembrar do alerta do primeiro Papa, São Pedro: "Nelas (nas cartas de S. Paulo) há algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras" (cf. 2Pd 3,16). As línguas mencionadas em todos os textos bíblicos e no Magistério da Igreja se referem ao dom carismático de línguas como idiomas e não línguas desconhecidas ou estranhas. No Pentecostes está claro que as línguas eram idiomas variados (cf. Atos 2, 1-13, 2,7-11).
7. UMA RESPOSTA PARA UMA PERGUNTA COM INCLINAÇÃO A MENTIRA.
Muitos dizem que Santa Teresa D'Avila possuía o dom das línguas. O renomado Compêndio de Teologia Mística e Ascética de Adolf Tanquerey distingue bem entre os fenômenos místicos contemplação infusa e os carismas. O fenômeno contemplação infusa é “uma vista simples e intuitiva de Deus e das coisas divinas que procede do amor e tende ao amor. São Francisco de Sales define-a: “uma atenção amorosa e permanente do espírito às coisas divinas” (TANQUEREY 1386,)[18] , já os carismas são “as graças gratuitamente dadas para a utilidade dos outros. São, efetivamente, dons gratuitos extraordinários e transitórios, conferidos diretamente para bem dos outros, posto que podem indiretamente servir também para santificação pessoal.” (TANQUEREY 1514)[19]. Santa Teresa D’Avila não experimentou o carisma do dom de línguas, mas várias modalidades da contemplação infusa. Sua experiência mais conhecida neste tipo de fenômeno místico é o da união estática em sua primeira fase (possui três fases: êxtase simples, o arroubamento e o vôo do espírito cf. TANQUEREY 1458). Durante o êxtase espiritual a pessoa perde os sentidos para o mundo material, envolvendo-se totalmente na experiência mística. Em seus escritos Santa Teresa relata ter seu coração transpassado por uma espada de um anjo, o que lhe causava grandes dores. Esta sua experiência mística ficou muito famosa e foi retratada na famosa escultura do artista Bernini.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A doutrina da Igreja sobre o dom de línguas expressa em seus documentos, no catecismo e no testemunho dos seus Santos e Doutores é muito clara quanto a ser uma manifestação extraordinária do Espírito Santo, onde se concede àquele que o recebe falar em línguas diversas ou falar coisas misteriosas na língua em que todos entendem. Tudo que Deus dispensa em Sua Igreja é para a utilidade de todos.Por isso S. Paulo ao falar dos carismas preferia o dom de profecia ao dom de línguas (cf. 1Cor 14,5.39). Manifestações que visam mais o espetáculo do que a utilidade dos membros da Igreja, com toda certeza não é segundo a vontade de Deus. Por isso, ao falar dos carismas extraordinários, o Apóstolo sempre dava instruções que desencorajassem a indiscrição e o espetáculo. Cabe as movimentos e grupos que se dizem carismáticos ou pentecostais cumprirem esta santa e sábia recomendação do apóstolo. os grandes místicos são unânimes em ensinar que não se deve nem desejar nem pedir estes favores extraordinários. É que, de fato, não são meios extraordinários. É que, de fato, não são meios necessários para chegar à união divina; e às vezes até, por causa das nossas tendências más, são antes obstáculos à união divina. É o que mostra em particular São João da Cruz o qual afirma que este desejo de revelações tira a pureza da fé, desenvolve uma curiosidade perigosa que é fonte de ilusões, embaraça o espírito com vãos fantasmas, denota muitas vezes falta de humildade e submissão à vontade de Deus Nosso Senhor, que, pelas revelações públicas, nos deu tudo quanto nos é necessário para nos conduzir ao céu. Neste sentido vale a pena também lembrar a exortação do Concílio Vaticano II sobre este tema, onde não devemos pedir temerariamente estes dons, nem esperar deles com presunção os frutos das obras apostólicas, é aos que governam a Igreja que pertence julgar da sua genuinidade e da conveniência do seu uso, e cuidar especialmente de não extinguir o espírito, mas tudo ponderar, e reter o que é bom (cf. lTs 5,12-21 e 19-21)”.
Por
faltar-nos autoridade e pelo tema ser bastante complexo, não será objeto deste
trabalho emitir qualquer opinião ou julgamento em relação aos movimentos
ditos carismáticos ou pentecostais. Afinal, somente a autoridade da Santa
Igreja Católica pode emitir qualquer juízo neste sentido, como também é verdade
que todo juízo das legitimas autoridades eclesiásticas não pode contradizer o
que a Igreja sempre nos ensinou. Apresentar e defender o ensinamento
sacrossanto do Sagrado Magistério, além de ser um direito de todo fiel católico
é um dever que o nosso batismo e crisma nos
aplica. Lembro que este artigo não tem a
finalidade de esgotar o assunto que é complexo, mas tão somente colaborar
para o esclarecimento atual de que "até que todos tenhamos chegado à
unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, até atingirmos o estado de
homem feito, a estatura da maturidade de Cristo" (Ef 4,13).
O dom
das línguas foi dado para permitir que o Evangelho fosse pregado a todos os
ouvintes independente de seus idiomas. Profecias, curas, milagres, foram dados
para provar a veracidade das pregações da Igreja e para promover conversões.
Com a conquista de uma universalidade moral pela Igreja, a necessidade de tais
fenômenos cessou por várias razões.
Não
podemos deixar de falar também do mal que faz à Igreja quando um grupo se diz o
possuidor da verdadeira “experiência cristã” ou se, por outro lado, num
selvagem, voraz e sincrético “ecumenismo” e/ou “tolerância”, declarar que “toda
a manifestação de fé é válida se inspirada pelo Espírito Santo”. Caímos, então,
ou num perigoso exclusivismo fideísta, ou num nefasto “acolhimento
suicida”. Nesses tempos onde tudo é urgente, onde nos sentimos
encurralados por uma realidade hostil, não podemos esquecer da virtude da prudência que nos previne dessa adesão
irracional a práticas nada ortodoxas e em nada salutares para a alma do fiel.
A virtude da prudência evoca e
convoca a memória, a docilidade, a razão e a inteligência para, juntas,
respeitando a dignidade da pessoa humana e sua constituição de “animal racional”,
fazendo valer a outorga de filho de Deus, adentremos na verdadeira Doutrina,
posto que é Sã e Santa para o maior bem daqueles que querem louvar a Deus “em
espírito e verdade”. Fora da Ortodoxia, nada há. Da “ortodoxia renovada”
somente pode advir confusão e ruína.
REFERÊNCIAS
TANQUEREY, Adolf. Compendio de Teologia Mistica e Ascetica.
Anapolis: Ed. AMEM –
Animacao
Missionaria Eucaristica Mariana, 2007.
IRINEU,Sto.
Bispo de Lião. Contra as Heresias. São Paulo. Paulus. 1985.
Homilia sobre os Evangelhos, livro II, 10(305) sobre
Sao Joao, 14,23-31, Obras Completas. BAC. Madrid, 1.958.
Livro
Carismas – Colecao Paulo Apostolo vol.3-RCC. Editora
Santuario.
Concilio
Vaticano II, Decreto Ad Gentes
Compendio da Doutrina Social da Igreja PONTIFICIO CONSELHO PARA AS
COMUNICACOES SOCIAIS, Etica nas Comunicacoes Sociais n.3. Em 04 de julho
de 2000.
Papa
Joao Paulo II, Dominum et vivificantem n.30.
Papa Joao Paulo II, Homilia na Solenidade de Pentecostes. Em 7
de Junho de 1992,
Papa Bento XVI, Homilia na solenidade dos Santos Apostolos Pedro e
Paulo, na Quarta-feira dia 29 de Junho de 2005.
Santo
Agostinho -Homilias em 1 Joao 6 10; NPNF2, v. 7, pp. 497-498.
Papa
Leao XIII, Enciclica Divinun Illud Múnus, no10.
CESARÉIA.
Euz. História Eclesiástica. São Paulo. Novo Século. 2002.
Comentário de Santo Tomás de Aquino à Primeira Carta aos Coríntios.
Disponível em:
https://www.salusincaritate.com/2020/01/carta-aos-corintios-comentarios-de-sao.html
Catecismo
da Igreja Católica (CIC) parágrafos 734-736.
Compêndio
do Catecismo da Igreja Católica n. 389-390; CIC 1832.
Catecismo
da Igreja Católica (CIC) parágrafo 1831.
Catecismo
da Igreja Católica (CIC) 2004; 1Tm 4,14.
Catecismo
da Igreja Católica (CIC) 2011.
Catecismo
Romano ou Tridentino 1-10-25.
Santo Agostinho, Sermão 271. Disponível em http://www.osb.org.br/lectio14.htm.
Ennarrationes
in Psalmos, 2,54,BAC, Madrid, 1965, p.344.
Summa
Teológica 2-2. Q176. Disponível em http://hjg.com.ar/sumat/c/c176.html.
Compendio
da Doutrina Social da Igreja, n. 562.
[1]
cf. Compendio do Catecismo da Igreja Católica n. 389-390; CIC 1832.
[2] cf. CIC 1831.
[3] cf. CIC n. 2000.
[4]
Ibidem n. 1999.
[5]
Ibidem n. 2003.
[6]
Ibidem n. 2003-2004.
[7]
cf. CIC 2004; 1Tm 4,14.
[8]
Catecismo Romano ou Tridentino 1-10-25.
[9] Comentário de Santo Tomás de Aquino à Primeira Carta aos Coríntios.
Disponível em
http://www.catechesis.com.br/article/4974.
[10]
cf. Contra as Heresias 3,17,2.
[11]
Ibidem 5,6,1.
[12]
17 Homilia sobre 1 Corintios.
[13]
Santo Agostinho, Sermao 271. Disponivel em http://www.osb.org.br/lectio14.htm.
[14] Ennarrationes in Psalmos, 2,54,BAC, Madrid, 1965, p.344. Texto retirado do Livro
Carismas – Coleção Paulo Apóstolo vol.3 – RCC. Pg
87.
[15]
Summa Teologica 2-2. Q176. Disponivel em http://hjg.com.ar/sumat/c/c176.html.
[16] TANQUERY, Adolf. Compendio de Teologia Ascetica e Mistica. Anapolis:
AMEM – Alianca
Missionaria Eucaristica Mariana, 2007. Prefacio a
Edicao Brasileira, pg [15].
[17]
cf. Historia Eclesiastica 5,16,4.
[18] TANQUEREY, Adolf. Compendio de Teologia Mistica e Ascetica. Anapolis:
Ed. AMEM –
Animacao Missionaria Eucaristica Mariana, 2007.
Pg 716.
[19]
Ibidem pg 785.