SOBRE O DOM DE LÍNGUAS PRESENTE NOS MOVIMENTOS CARISMÁTICOS DA IGREJA CATÓLICA APOSTÓLICA ROMANA.


 

Seria o dom de línguas, descrito por São Paulo em Atos dos Apóstolos, realmente aquilo no qual os movimentos carismáticos dizem ser o que é? No último século temos observado aqui e acolá movimentos, grupos, comunidades, apostolados, que  incentivam a vivência da chamada glossolalia, pretendendo  que esta  prática  seja continuidade da manifestação de Pentecostes, seguida pelos primeiros cristãos,  apoiando assim uma  tendência que penetrou na Igreja Católica. O tema é árduo, pouco explorado. Aqui a virtude da prudência  nos guiará para que possamos investigar e adentrar por essa senda. Ao longo das páginas será descrito, com detalhes como os primeiros Pais da Igreja e os grandes autores eclesiásticos, entendiam esse carisma, confrontando com a prática atual dos grupos carismáticos e pentecostais, sempre demonstrando o que a Igreja crê. De resto o conteúdo é   pura e simplesmente o que ensinaram os gigantes da fé e as autoridades da Igreja Católica.

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1. INTRODUÇÃO

O Pentecostes de 33 foi uma notável data na história humana. Naquele dia, a Igreja cristã foi fundada pelo derramamento do Espírito Santo de Deus sobre cerca de 120 dos discípulos de Jesus reunidos num sobrado de Jerusalém. A Bíblia relata que, em resultado disto, “todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar em outras línguas”. (Atos 2, 4). Seria este falar em línguas um derramar de palavreado de pessoas em êxtase religioso?  Ou poderia ser também o cumprimento da profecia indicada em Joel 3,1? Será que falar em línguas realmente significa que se tenha o Espírito Santo de Deus?  Porque quando estabelecia uma lista de “dons espirituais”, o apóstolo Paulo colocou as línguas e sua interpretação em último lugar, incentivando os cristãos a persistirem em buscar zelosamente os maiores dons, especialmente o amor, que Jesus disse ser o verdadeiro sinal identificador de seus seguidores?  Nos perguntamos também se aquele movimento denominado carismático iniciado na rua Azuza, Califórnia em 1906 e que depois chegou até a universidade de Duquesne em 1967 seria uma extensão do dom de línguas experenciado pelos Apóstolos em Jerusalém? A Igreja, por um lado, reconhece que o Espírito Santo move-se  como deseja e assim ela não quer  opor a Sua obra e, por outro lado, a Igreja deve discernir a autenticidade de cada carisma, para que não seja um engano do maligno. É digno de nota mencionar que, o apóstolo Paulo falava duma vindoura “apostasia” do verdadeiro cristianismo e o aparecimento duma classe chamada “o homem que é contra a lei”, cuja presença seria “segundo a operação de Satanás, com toda obra  poderosa, e sinais e portentos mentirosos, e com todo engano injusto para com os que estão perecendo”. (2 Tes. 2, 3. 9.10) Poderia o falar em línguas ser parte dum “engano injusto” promovido por Satanás?

Por isso neste artigo nos é apresentado uma série de questionamentos voltados a um tema tanto quanto polêmico, que nos últimos quarenta anos foi introduzido por movimentos  pentecostais e, que dia a dia vem crescendo dentro da Igreja Católica..

2.  CONCEITO  E  AUTENTICIDADE DA MANIFESTAÇÃO DO FENÔMENO ( DONS DE LÍNGUAS ) OCORRIDAS NOS MOVIMENTOS CARISMÁTICOS DENTRO DA IGREJA CATÓLICA

O modo como tais  movimentos carismáticos inseridos no seio da Igreja  Católica entende a oração em línguas, é sim, algo de novo na  teologia mística. Na área do conceito sobre a graça muitos fiéis e “movimentos” equivocam no entendimento e rompem com a Doutrina Católica revelando a raiz chave de seu inteiro sistema  de erros. Como há  tempos tenho observado, alguns defendem a necessidade de um fenômeno sensível que acompanhe e dê significado à recepção da graça ou pelo menos que a “libere” na alma.. Para eles, o cristão tem que “sentir” Deus como atuante na alma senão não há propósito de salvação. Isso é claramente falso! Buscam uma “paz interior” estando susceptíveis aos balançares de uma fé recheada de subjetivismo sentimentalóide.

A graça Santificante, aquela que “santifica a alma”, iniciado com a participação na vida divina pelo batismo, sendo íntimo da Trindade, faz o homem justo entrar em relacionamento de amizade com Deus, torna-o um Templo do Espírito Santo, um Filho de Deus, o que lhe da consequentemente, a herança dos Céus, é inteiramente insensível à alma. Naturalmente que isso não descarta a possibilidade de que Deus dê uma divina revelação a um indivíduo sobre seu estado de graça, mas tal revelação certamente cairia no campo do incomum e não como norma geral, ao contrário do que afirmam os tais “movimentos” que se auto reafirmam serem “porta-vozes de uma nova maneira de sentir a fé”.

Como declara o Concílio de Trento: “Cada  homem ao levar em consideração a si próprio e a sua própria fraqueza e indisposição, pode experimentar medo e apreensão sobre sua própria graça, uma vez que ninguém pode saber com certeza de fé, a qual não está sujeita a erro, que ele obteve de fato uma graça de Deus”. (Denziger 802).

Isso não quer dizer que a oração em línguas não exista, e nem que a Renovação Carismática esteja errada. Apenas me dá o direito de, como cientista da fé católica, em um ponto controverso, ter uma posição distinta da Renovação. A oração em línguas e mesmo a contemporaneidade dos dons extraordinários não são verdades de fé. Pode-se acreditar ou não. Ninguém é menos ou mais católico por crer na oração em línguas tal qual praticada na Renovação. O fato de ser nova essa manifestação da oração em línguas ou, pelo menos, se ter dúvidas a respeito da prática da Renovação, quanto a ela é exatamente o motivo pelo qual a Santa Sé ainda não se pronunciou. Prudente como é, está estudando, meditando, vendo os frutos. Enquanto não se pronuncia, somos livres.

A Renovação ou como também é conhecida RCC, talvez tenha o direito de crer que a prática dos grupos de oração é a oração em línguas, talvez tenha o direito de achar que os “gemidos  inefáveis” são a oração em línguas, talvez tenha o direito de diferenciar oração em línguas do de falar em línguas. Outros (como eu) tenho o direito de não sustentar nada disso. Podem os carismáticos citar milhares de passagens bíblicas, mas serão sempre a sua interpretação pessoal. Como eu, baseado no Santo Magistério, na Santa Tradição e na Sagrada Escritura também faço referência a tantas outras passagens, e também adentrando a teologia mística, darei a minha interpretação. Ambas são válidas até que o Magistério dê a sua interpretação infalível. No essencial unidade, no disputado diversidade, em tudo caridade.

Pode-se duvidar que a prática que a RCC chama de oração em línguas seja realmente um fenômeno místico? Claro que sim, pode-se, dado que o Magistério ainda não tenha se pronunciado sobre a questão. É inegável que às vezes Deus concede graças verdadeiramente sensíveis, até mesmo fenômenos extraordinários a certas pessoas. Os verdadeiros carismas presentes na Igreja Primitiva são um claro exemplo desses fenômenos extraordinários. Uma das maiores gafes dos tais grupos e “movimentos” certamente é querer transformar algo extraordinário em ordinário e até necessário para todos. 

Basicamente, os verdadeiros carismas foram dons que capacitaram a Igreja primitiva a se espalhar rapidamente até os confins do mundo até então conhecido e tornar-se bem estabelecida antes da morte dos Apóstolos. Como já foi dito antes e como bem elucidou São Paulo na sua segunda Epístola aos Coríntios, o propósito dos dons era a edificação da Igreja e não a santificação daqueles a quem eles eram conferidos.

Primeiramente, por causa da presença de povos de tudo quanto é nacionalidade dentro do Corpo da Igreja e em segundo lugar, por causa do comprovado estabelecimento da Igreja como verdadeira religião em um curto espaço de tempo. O mesmo argumento pode ser feito hoje contra a presença contemporânea dos carismas. Uma vez que a Igreja é agora tanto moralmente quanto fisicamente universal, abrigando pessoas, de tudo quanto é nação e língua, que necessidade haveria da glossolalia ou xenolália para a evangelização? Uma vez que a Igreja já possui quase dois mil anos de existência comprovada como verdadeira religião, que necessidade ela teria dos carismas hodiernos para provar sua Doutrina? Como declara Santo Agostinho: “Uma vez que mesmo agora quando o Espírito Santo é recebido, ninguém fala nas línguas de todas as nações, é porque a própria Igreja já fala na língua de todas as nações: Já que quem quer que seja que não está dentro da Igreja, não recebeu ainda o Espírito Santo” (Santo Agostinho, Tratado de XXXII sobre João).

Por outro lado São Tomás de Aquino admite a possibilidade de grossa caricatura diabólica dos verdadeiros carismas em questões, sobre as quais todos são livres para examinar com atenção. Se alguma profecia pode vir do demônio? A resposta é sim. Se as previsões dos profetas quanto ao demônio podem ser verdadeiras? A resposta é sim. Se o maligno pode operar milagres? A resposta é sim. É bem sabido que o Diabo e seus demônios podem produzir prodígios que a princípio parecem milagres para os mais desavisados, como na história do Mago Simão e sua “milagrosa  levitação” desbancada  por São Paulo. Portanto é extremamente perigoso ir aceitando de cara, qualquer fenômeno extraordinário como sendo de origem divina.

O grande místico e doutor da Igreja, São João da Cruz, tão frequentemente citado e tão mal compreendido pelos “gurus” espirituais modernos, tinha o seguinte a dizer, concernente à supostas “revelações pessoais” vindas de Deus e que foram experimentadas por alguns de seus contemporâneos: “E eu temo muitíssimo pelo que está acontecendo nesses nossos tempos: se qualquer alma, seja  lá qual for, depois de um pouquinho de meditação, tiver em suas recordações uma dessas locuções, e imediatamente “batizá-las” como vindas de Deus e com tal suposição disser: “Deus me disse”, “Deus me respondeu”. Ainda que não seja exatamente assim, mas, como já dissemos, essas pessoas são frequentemente os autores de suas próprias locuções”. (São João da Cruz- A Subida do Monte Carmelo). “Através do desejo de aceitá-las, eles abrem as portas para o demônio. O demônio pode então enganá-los usando outras comunicações espertamente fingidas e disfarçadas como genuínas. Nas palavras do Apóstolo, ele pode transformar-se em “anjo de luz” (II Cor. 11:14). Independentemente da causa dessas apreensões, é sempre bom para um homem rejeitá-las de olhos fechados. Se ele fracassa em assim fazer, ele acabará por dar espaço para aquelas que tem origem diabólica e dará poder ao demônio para que se aposse de suas próprias comunicações. E não é só isso, as representações diabólicas se multiplicarão enquanto aquelas que vem de Deus gradualmente cessarão, de forma que dali a pouco todas virão do demônio e nenhuma delas de Deus. Isso tem ocorrido com muitos incautos e não instruídos“ (S. João da Cruz).

De fato, Nosso Senhor Jesus Cristo adverte a Igreja dos perigos de aceitar de cara supostos milagres: Porque se levantarão falsos cristos e falsos profetas, que farão milagres e prodígios a ponto de seduzir se isto fosse possível até mesmo os escolhidos. (Mt 24,24). Mais estarrecedor ainda é sua advertência: “Nem todo aquele que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus, mas sim aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não pregamos nós em vosso nome, e não foi em vosso nome que expulsamos os demônios e fizemos muitos milagres? E, no entanto, eu lhes direi: nunca vos conheci. Retirai-vos de mim, operários maus!” (Mt 7,21-23).

O Mérito provém da realização de boas obras destinando ao realizador  receber uma recompensa. Só a alma em graça santificante pode adquirir méritos pelas sua ações. É esse estado que dá valor eterno a ação. Os “fiéis” vinculados a essa maneira estreita e perniciosa de interpretação de fé, se distanciando da graça santificante, perdem o direito de desfrutar dos méritos concedidos por Deus. Assim disturbam o recebimento dos méritos de Deus. Tudo é feito com intuito de operar milagres para si ou para outrem. Faltam-lhe senso crítico e a emoção prepondera sobre a razão. As ações humanas precisam se tornar obras de Deus para ter seu valor divino. Ações egocêntricas não tem significação sobrenatural. E as nossas ações são em certo sentido obras de Deus quando Ele está presente numa alma pela graça santificante? que é prodígio de Deus e não mérito nosso. Todos os méritos das boas obras a conquistar pertencem a Deus em primeiro lugar, não podendo merecer a graça primeira, quando da conversão, do perdão e da justificação. Atribuídos a Deus, nós podemos depois conquistar o merecimento para nós e para os outros com reta direção divina, a necessidade de crescimento da fé, santificação pessoal, aumento da caridade, ganhar a vida eterna, numa consciente vivência espiritual.” A caridade de Cristo em nós constitui a fonte de todos os nossos méritos diante de Deus. A graça, unindo-nos a Cristo com um amor ativo, assegura a qualidade sobrenatural dos nossos atos e, por conseguinte, o seu mérito tanto diante de Deus como diante dos homens. Os santos sempre tiveram viva consciência de que seus méritos eram pura graça” (CIC, 2011).

Naturalmente que uma exposição dogmática mais profunda está bem além do objetivo desse trabalho de conclusão de curso, mas de modo a complexidade  dos  “movimentos” e grupos constituídos com essa fé que se torna deformada e deformante é essencial claramente o significado das coisas, pelo estudo, pesquisa e pela fé

2.1. Conceito sobre os frutos e dons do Espírito Santo

 Sabemos que o nome Pentecostes só foi dado após o domínio grego, acerca de 300 anos A.C. Com efeito, no Antigo Testamento somente encontramos referencia a esse nome no Segundo Livro dos Macabeus (cf.2Mc 12,32) quando entre os judeus já havia forte inculturação do mundo grego. Os gregos chamavam a Festa das Colheitas de Pentecostes, por essa ser realizada cinquenta dias após a Páscoa. Para os cristãos a Festa de Pentecostes é a nova Festa da Colheita. Se para os judeus o recebimento da Lei significava um marco na sua história e religião, o mesmo vale para o Pentecostes em relação aos cristãos. Se no Monte Sinai os judeus receberam em tábuas de pedra a Lei que não podia justificá-los mas apenas acusá-los (cf. Rm 3,20), no cenáculo em Jerusalém os primeiros fiéis receberam em tábuas de carne a Lei da Graça que era capaz de justificá-los. Sobre isso ensinou S.Paulo: "Não há dúvida de que vós sois uma carta de Cristo, redigida  por nosso ministério e escrita, não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, isto é, em vossos corações" (2Cor 3,3).

O Catecismo da Igreja Católica  nos ensina que “o Amor é o primeiro dom. Ele contém todos os demais” (cf. CIC 733). São João ensina que “Deus é Amor” (cf. 1Jo 4,8.16). Por isso Deus entregou-se em sacrifício na Cruz por nós na pessoa  de Jesus Cristo, ato do seu extremo amor por nós (cf Jo 15,13; Mt 26,26-28). Deus que venceu a Morte é o mesmo que nos insere na vida. Por esta razão o Espirito Santo é prometido para santificar e curar os fieis de seus pecados e males. Sobre isso ensina o Catecismo: “Pelo fato de estarmos mortos, ou, pelo menos, feridos pelo pecado, o primeiro efeito do dom do Amor é a remissão de nossos pecados. É a comunhão do Espírito Santo (2Cor 13,13) que, na Igreja, restitui aos batizados a semelhança divina perdida pelo pecado. (...) É por este poder do Espírito que os filhos de Deus podem dar fruto.”

A Igreja ensina que o Espirito Santo também é dom dado aos fieis para que estes deem frutos que são "caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, brandura, temperança" (Gl 5,22-23). Muita gente confunde os frutos do Espírito Santo com os dons do Espírito Santo. “Os dons do Espírito Santo são disposições permanentes que tornam o homem dócil para seguir as inspirações divinas. (...) Os frutos do Espírito Santo são perfeições plasmadas em nós como primícias da glória eterna.[1] A Igreja ensina que são sete os dons do Espirito Santo: sabedoria, inteligência, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus.[2]

Entretanto encontramos o seguinte ensino de S. Paulo aos Coríntios: "A respeito dos dons espirituais, irmãos, não quero que vivais na ignorância. Sabeis que, quando éreis pagãos, vos deixáveis levar, conforme vossas tendências, aos  ídolos mudos. Por isso, eu vos declaro: ninguém, falando sob a ação divina, pode dizer: Jesus seja maldito e ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor, senão sob a ação do Espírito Santo. Há diversidade de dons, mas um só Espírito. Os ministérios são diversos, mas um só é o Senhor. Há também diversas operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum. A um é dada pelo Espírito uma palavra de sabedoria, a outro, uma palavra de ciência, por esse mesmo Espírito; a outro, a fé, pelo mesmo Espírito; a outro, a graça de curar as doenças, no mesmo Espírito, a outro, o dom de milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, a variedade de línguas; a outro, por fim, a interpretação das línguas. Mas um e o mesmo Espírito distribui todos estes dons, repartindo a cada um como lhe apraz" (1Cor 12,1-11). A Igreja ensina que os dons ou graças do Espírito Santo se dividem em quatro categorias que veremos a seguir.

2.1.1 Graça santificante ou habitual

A graça santificante é um dom habitual, uma disposição estável e sobrenatural para aperfeiçoar a própria alma e torná-la capaz de viver com Deus, agir por seu amor”[3]. Este tipo de graça trata-se da “vida infundida pelo Espírito Santo em nossa alma, para curá-la do pecado e santificá-la” e é “recebida no Batismo”[4].

2.1.2 Graça atual

Esta designa “as intervenções divinas, quer na origem da conversão, quer no decorrer da obra da santificação” (Ibidem). A conversão de S. Paulo que se deu no caminho para Damasco por intervenção de Cristo é um exemplo deste tipo de graça (cf. At 9,1-8).

2.1.3 Graça sacramental

 São “dons que o Espírito nos concede, para nos associar à sua obra, para  nos tornar capazes de colaborar com a salvação dos outros e com o crescimento do corpo de Cristo, a Igreja.” São “os dons próprios dos diferentes sacramentos”[5].

2.1.4 Graça especial ou carisma

 As “graças especiais, chamadas também “carismas”, segundo a palavra grega empregada por S. Paulo e que significa favor, dom gratuito, benefício. Seja qual for seu caráter, às vezes extraordinário, como o dom dos milagres ou das línguas, os carismas se ordenam à graça santificante e têm como meta o bem comum da Igreja. Acham-se a serviço da caridade, que edifica a Igreja. Entre as graças especiais, convém mencionar as graças de estado, que acompanham o exercício das responsabilidades da vida cristã e dos ministérios no seio da Igreja”[6]. Agora ficou simples de entender , Paulo refere-se aos dons carismáticos que dizem respeito à graça especial, também chamada graça pessoal.

3. O DOM DE LÍNGUAS

            Nossa Santa Igreja ensina que o dom de línguas faz parte dos dons carismáticos, isto é, dos dons especiais e particulares que são extraordinários, pois os dons carismáticos ordinários são aqueles que dizem respeito ao “exercício das responsabilidades da vida cristã e dos ministérios no seio da Igreja”[7], como por exemplo o ministério dos acólitos, diáconos, presbíteros e bispos. A Este ensino do Novo Catecismo está em plena continuidade com o catecismo anterior, onde encontramos: “Além das graças (santificantes, habituais e sacramentais), que tornam os homens justos e agradáveis a Deus, são também comuns a todos as graças gratuitas (grátis dadas ou especiais), entre as quais figuram a ciência, a profecia, o dom de línguas e de milagres, e outras  da  mesma natureza (cf. 1 Cor 12,8)”[8] . Logo pretender transformar o que é extraordinário em ordinário, ou especial em comum é contrapor-se à vontade e ordem divinas.

4. SOBRE OS TEXTOS DA SAGRADA ESCRITURA, LÍNGUAS ESTRANHAS OU ESTRANGEIRAS ?

            Algumas pessoas defendem a teoria de que o dom de línguas é um dom onde as pessoas falam línguas estranhas, isto é, línguas desconhecidas do homem, línguas não deste mundo. Fundamentam esta duvidosa certeza principalmente  no seguinte trecho da Escritura: "E quando Paulo lhes impôs as mãos, o Espírito Santo desceu sobre eles, e falavam em línguas estranhas e profetizavam" (At 19,6). Porém, a expressão “línguas estranhas” é estranha ao texto original que traz tão somente “línguas”. Através de uma pequena análise no texto de At 19,6 nas versões bíblicas  mais conhecidas e que são consideradas pelos biblicistas as mais fieis ao texto original podemos identificar duas  linhas de tradução: O texto não qualifica as línguas faladas, isto é, se eram “estranhas” ou “estrangeiras”. A essa tendência seguem as seguintes versões bíblicas: Nova Vulgata, Bíblia de Jerusalém, Bíblia do Peregrino, Bíblia Sagrada da CNBB, Bíblia Sagrada Vozes, Bíblia Sagrada de Aparecida, Bíblia Sagrada Edição Pastoral, Bíblia Sagrada Palavra Viva, Tradução Ecumênica da Bíblia, Almeida Revista e Corrigida. O texto também qualifica as línguas como “diversas”, no sentido de vários idiomas humanos e também qualifica as línguas faladas como “estranhas”, no sentido de não conhecida dos  homens. Logo, segundo os melhores hermeneutas bíblicos, o texto sagrado estaria se referindo a línguas diversas e não línguas desconhecidas dos homens ou de outro mundo. De qualquer forma uma leitura atenta do texto sagrado poderá esclarecer facilmente a questão. A primeira referência que encontramos na Sagrada Escritura quanto ao carisma do dom de línguas está no livro dos Atos dos Apóstolos: “Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem. Achavam-se então em Jerusalém judeus piedosos de todas as nações que há debaixo do céu. Ouvindo aquele ruído, reuniu-se muita gente e maravilhava-se de que cada um os ouvia falar na sua própria língua. Profundamente impressionados, manifestavam a sua admiração: Não são, porventura, galileus todos estes que falam? Como então todos nós os ouvimos falar, cada um em nossa própria língua materna? Partos, medos, elamitas, os que habitam a Macedônia, a Judéia, a Capadócia, o Ponto, a Ásia, a Frígia, a Panfília, o Egito e as províncias da Líbia próximas a Cirene, peregrinos romanos, judeus ou prosélitos, cretenses e árabes, ouvimo-los publicar em nossas línguas as maravilhas de Deus! Estavam, pois, todos atônitos e, sem saber o que pensar, perguntavam uns aos outros: Que significam estas coisas?” (At2,1-12). Aqui o testemunho da Escritura é claríssimo: no dia de Pentecostes os apóstolos e os discípulos de Jesus por obra do Espírito Santo falavam em línguas, isto é, nas línguas dos estrangeiros, de forma que podiam ser entendidos por eles. Dizem ainda alguns que os apóstolos estariam falando em sua própria língua e sendo entendidos por pessoas de outras línguas, como numa espécie de tradução simultânea. Esta tese é completamente desfeita pelo maior Doutor da Igreja, Santo Tomas de Aquino ao comentar 1Cor 14,1-4: "(...) o Senhor deu-lhes o dom de línguas, para que a todos ensinassem, não de modo que falando uma só língua fossem entendidos por todos, como alguns dizem, mas sim, bem literalmente, de maneira que nas línguas dos diversos povos,falassem as de todos. (...)".[9] Outro detalhe que há de se notar é que quando o Apóstolo enumera os dons carismáticos, refere-se ao dom de línguas como “variedade de línguas” (cf. 1Cor 12,10), isto é, no sentido das várias línguas existentes.

5. O DOM DE LÍNGUAS NA DOUTRINA DOS SANTOS E DOUTORES DA IGREJA

            Santo Ireneu (séc. II) um dos mais antigos Pais da Igreja sobre o dom de línguas assim ensinou: "É este Espírito que Davi pediu para o gênero humano, ao dizer: “Confirma-me pelo teu Espírito que dirige” (cf. Sl 51,14). E ainda este Espírito que Lucas nos diz ter descido, depois da ascensão do Senhor, sobre os discípulos no dia de Pentecostes, com o poder de falar em todas as línguas dos povos e abrir-lhes um novo testamento. Eis por que, na harmonia de todas as línguas, cantavam hinos a Deus, enquanto o Espírito Santo reunia na unidade as raças diferentes e oferecia ao Pai as primícias de todas as nações. Foi por essa razão que o Senhor prometera enviar o Paráclito que nos faria dignos de Deus. Assim como a farinha seca  não pode, sem água, tornar-se uma só massa, nem um só pão, também nós não poderíamos tornar um só em Cristo, sem a água que vem do céu."[10]. “Por isso o Apóstolo (Paulo) diz: Falamos de sabedoria entre os perfeitos, chamando perfeitos os que receberam o Espírito de Deus e que falam todas as línguas graças a este Espírito, como ele fazia e como ainda ouvimos muitos irmãos na Igreja, que possuem o carisma profético e que, pelo Espírito, falam em todas as línguas, revelam as coisas escondidas dos homens para sua utilidade e expõem os mistérios de Deus”[11].

            São João Crisóstomo (séc. IV) ensinou: "Ele desceu sobre aqueles que o Senhor Jesus havia reunido porque creram n'Ele. Ele desceu sobre a Igreja. Certamente um dom pessoal, que cada um recebeu em particular, mas porque estavam unidos, em comunhão  e justamente “no dia de Pentecostes estavam todos reunidos no mesmo lugar” (At 2, 1) e sofreram uma transformação radical, repentinamente tomaram consciência da Palavra de Deus em seu seio e puseram-se a comunicar em todas as línguas as maravilhas de Deus. Donde o discurso de Pedro anunciando com audácia a Ressurreição do Crucificado àqueles mesmos que O crucificaram"[12].

            Santo Agostinho (séc. IV-V) fala-nos:  “Depois de ter passado quarenta dias com seus discípulos, subiu ao céu o Senhor  ressuscitado. E no quinquagésimo dia, que hoje celebramos, enviou o Espírito Santo, como está escrito: De repente, veio do céu um ruído semelhante ao soprar de impetuoso vendaval. E apareceram umas como línguas de fogo, que se distribuíram e foram pousar sobre cada um deles. E começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os impelia a falarem (At2,2.3.4). Aquele vento purificava os corações da palha da carne. Aquele fogo consumia o fogo da velha concupiscência. Aquelas línguas faladas pelos que estavam repletos do Espírito Santo prefiguravam a futura Igreja, que haveria de estar entre as línguas de todos os povos. De fato, após o dilúvio, a ímpia soberba dos homens construiu uma torre elevada contra o Senhor, e o gênero humano mereceu ser dividido em línguas diversas, começando cada povo a falar sua língua para não ser entendido pelos outros povos. Agora, ao invés, a humilde piedade dos fiéis recolheu a diversidade destas línguas na unidade da Igreja, onde a caridade reuniu aquilo que a discórdia tinha espalhado. E os membros dispersos do corpo humano, como membros de um único corpo, voltam a ser unificados na única cabeça que é Cristo, fundidos na unidade de seu santo corpo pelo fogo do amor.(...) Vós, porém, irmãos, membros do corpo de Cristo, germes de unidade, filhos da paz, celebrai este dia alegres, celebrai-o seguros, porque em vós se realiza aquilo que era prefigurado nos dias em que veio o Espírito Santo. Porque, como outrora quem recebia o Espírito Santo, embora fosse um homem só, falava todas as línguas, assim agora fala todas as línguas, através de todos os povos, a própria unidade. Estabelecidos nela, possuis o Espírito Santo, os que não estais separados por nenhum cisma da Igreja de Cristo que fala todas as línguas.”[13] Quando desceu o Espírito Santo sobre os discípulos, estes falaram as línguas de todos e por todos foram entendidos. As línguas divididas se uniram em uma. Logo, se todavia ensinam e são gentis, é conveniente ter diversas línguas. Dizem ter uma língua? Vejam a Igreja, porque em meio da diversidade de línguas de carne, existe uma só na fé do coração.”[14].

            Santo Tomás de Aquino (séc. XIII), o Doutor Angélico, o mais santo dos doutores e o mais doutor dos santos, cuja doutrina foi recomendada por tantos Papas, deixou-nos o seguinte ensino sobre o dom carismático extraordinário das línguas: “os primeiros discípulos de Cristo foram escolhidos para percorrerem o mundo pregando a sua fé a todos, como se lê no Evangelho de Mateus: “Ide e ensinai a todos os povos”. Ora, não era conveniente que aqueles que eram enviados para instruir os outros, precisassem ser instruídos por eles sobre a maneira de lhes falar ou de compreender sua linguagem. Sobretudo por que estes enviados eram da mesma nação, da Judéia como havia predito Isaías: Aqueles que sairão impetuosamente de Jacó encheram com sua raça a face da terra. Além disso, os discípulos enviados eram pobres e sem poder; eles não teriam encontrado facilmente, desde o começo, intérpretes fiéis para traduzir suas palavras ou lhes explicar as dos outros, principalmente por terem sido enviados a povos infiéis. Por esta razão, era necessário que Deus lhes viesse em socorro com o dom das línguas, a fim de que, como se havia introduzido a diversidade de línguas, quando os homens começaram a dar-se à idolatria, como se lê no livro de Gênesis, assim se desse o remédio a essa diversidade, quando tivessem que ser convertidos ao culto de um só Deus. (...) Uma Glosa de Gregório (Papa) assim comenta: “O Espírito Santo apareceu sobre os discípulos em línguas de fogo e lhes deu o conhecimento de todas as línguas”[15]. “Porquanto o dom de línguas devemos saber que como na Igreja primitiva eram poucos os consagrados para ensinar pelo mundo a fé de Cristo, a fim de que mais facilmente e a muitos anunciassem a palavra de Deus, o Senhor deu-lhes o dom de línguas, para que a todos ensinassem, não de modo que falando uma só língua fossem entendidos por todos, como alguns dizem, mas sim, bem literalmente, de maneira que nas línguas dos diversos povos, falassem as de todos. Pelo qual disse o Apóstolo: Dou graças a Deus porque falo as línguas de todos vós (1Co 14,18). E em Atos 2,4, se disse: Falavam em várias línguas, etc. E na Igreja primitiva muitos alcançaram de Deus este dom. (...) Pois os coríntios, que eram de indiscreta curiosidade, preferiam esse dom que o da profecia. E aqui por falar em língua, o Apóstolo entende que em língua desconhecida e não explicada, como se alguém falasse em língua teutônica a um galês, sem explicá-la, esse tal fala em língua. A Igreja desde os tempos mais remotos sempre ensinou que o dom carismático de falar em línguas, consiste no falar em línguas estrangeiras e não estranhas ou ininteligíveis.

5.1. TANQUEREY E O DOM DE LÍNGUAS

            Por Tanquerey, é conhecido o renomado Compêndio de Teologia Ascética e Mística de Adolph Tanquerey, “riquíssimo em conteúdo e firmíssimo na sua doutrina”[16]. Nele encontramos a seguinte doutrina sobre o dom de línguas:“ As revelações, de que acabamos de falar, são dadas sobretudo para utilidade pessoal; as graças gratuitamente dadas são  principalmente para a utilidade dos outros. São, efetivamente, dons gratuitos extraordinários e transitórios, conferidos diretamente para bem dos outros, posto que podem indiretamente servir também para santificação pessoal. São Paulo menciona-os com o nome de carismas; na Epístola aos Coríntios distingue nove, que provém todos do mesmo Espírito:  O dom das línguas, que, em São Paulo, é o dom de orar em língua estranha com certo sentimento de exaltação; segundo os teólogos é o dom de falar várias línguas”. (TANQUEREY,2007,PG15)

Por fim quando Tanquerey refere-se especificamente sobre o dom de línguas, pontua que no entendimento dos teólogos (conforme vimos na doutrina dos Santos e Doutores da Igreja) o falar língua estranha que se pode entender nos textos paulinos é o falar em várias línguas.

6. O FALSO DOM DE LÍNGUAS

            O Diabo trabalha sem descanso para ridicularizar a obra de Deus, principalmente com falsificações. Misteriosamente Deus permite que ele interfira mesmo em assembléias onde todos estão reunidos para louvar e adorar a Deus. Citarei um testemunho da Sagrada Escritura a este respeito:

            Em Jó 1,6 lemos que "um dia em que os filhos de Deus se apresentaram diante do Senhor, veio também Satanás entre eles" (Jó1,6).

            No episódio da aliança entre os Reis Acabe (de Israel) e Jeosafá (de Judá) para atacar o Rei Ramot de Gallad, Deus permitiu que um espírito enganador se colocasse na boca dos profetas de Israel: “Miquéias replicou: Ouve o oráculo do Senhor: Eu, vi o Senhor sentado no seu trono e todo o exército dos céus ao redor dele, à direita e à esquerda. O Senhor disse: Quem seduzirá Acab, para que ele suba e pereça em Ramot de Galaad? Um disse uma coisa e outro, outra. Então um espírito adiantou-se e apresentou-se diante do Senhor, dizendo: Eu irei seduzi-lo. O Senhor perguntou: De que modo? Ele respondeu: Irei e serei um espírito de mentira na boca de seus profetas. - É isto, replicou o Senhor. Conseguirás seduzi-lo. Vai e faze como disseste. O Senhor pôs um espírito de mentira na boca de todos os profetas aqui presentes, mas é a tua perda que o Senhor decretou” (1Rs 22,19-23 ; 2Cr18, 21-22).

 

6.1. O falso dom de Línguas no cristianismo primitivo

            Santo Ireneu em sua eminente obra Contra as Heresias relata que um sujeito de nome Marcos com o auxílio de demônios fazia mulheres incautas pensarem que estavam profetizando em nome de Deus: “Ele (Marcos) dá a entender que teria um demônio como assistente que o faz profetizar, a ele e a todas aquelas mulheres que julgar dignas de participar de sua Graça. (...) Então ele repete algumas invocações que arrebatam a infeliz seduzida e diz: Abre aboca, dize qualquer coisa e profetizarás. E aquela excitada por estas palavras e sentindo ferver na alma a ilusão de começar a profetizar e o coração pulsar mais forte do que de costume, anima-se e se põe a profetizar todas as tolices que lhe vêm à cabeça, sem sentido e sem hesitar, justamente por ser inflamada por espírito vazio.(...) Quem manda é maior e mais poderoso de quem é mandado, porque aquele governa e este obedece. Se um Marcos qualquer ou outro dão ordens, como costuma fazer nos seus jantares, toda essa gente brincando de oráculos, ordenando uns aos outros profetizarem coisas que são do seu desejo, então aquele que manda deve ser maior e mais poderoso do que o Espírito profético, mesmo homem, o que é impossível. Mas os espíritos que recebem ordem deles, que falam quando eles querem, são terrenos e fracos, temerários e irreverentes, são enviados por Satanás para seduzir e arruinar aos que não sabem guardar firmemente a fé que receberam no princípio da Igreja”. (Ireneu, 1985  1,13,3-4). Para Santo Ireneu, esses espíritos que faziam as pessoas dizerem coisas sem sentido e sem hesitar eram terrenos e fracos, temerários e  irreverentes, enviados por Satanás para seduzir e arruinar”. Eusébio, Bispo de Cesaréia na Palestina e historiador da Igreja, em sua obra História Eclesiástica (séc. IV) nos traz relatos de outro caso semelhante. No livro V da referida obra, ele transcreve o combate de Apolinário (séc. II), Bispo de Hierápolis, contra a heresia de Montano, chamada montanista ou catafrígia. Diz o Bispo Apolinário que estando em Ancira da Galácia havia encontrado a Igreja local toda perturbada pela novidade, uma novidade não de profecia mas, conforme eles diziam, de uma pseudo profecia. A medida que Apolinário com o auxilio do Senhor discutia e argumentava sobre a heresia durante vários dias juntamente com a comunidade, esta se alegrou e fortificada na verdade derrotou e abateu os inimigos da Igreja. Que novidade era esta que confundiu a Igreja de Ancira na Galácia? Que embuste foi apresentado nesta Igreja como o legítimo carisma da profecia e que mereceu o combate do zeloso Bispo? Também  em  Mísia, nos limites da Frigia, havia uma aldeia chamada Ardabu e ali, um dos novos crentes, chamado Montano, que era  procônsul da Ásia, deu acesso ao inimigo, levado pela ambição imoderada de ocupar os primeiros lugares. Como um possesso, em falso êxtase, pôs-se a falar em seus excessos, a proferir palavras estranhas e a profetizar de forma inteiramente oposta ao uso tradicional conservado pela antiga tradição da Igreja”[17]. Assim, como Santo Ireneu, Apolinário (que era seu contemporâneo) nos dá mais um testemunho bem antigo, de que o “proferir palavras estranhas” como se estivesse profetizando por Graça de Deus, é na verdade obra de Satanás e “inteiramente oposta ao uso tradicional conservado pela antiga tradição da Igreja”. Este é o testemunho de alguns dos eminentes defensores da Igreja dos primeiros séculos. E segundo o testemunho deles, o profetizar ou falar em êxtase ininteligível não corresponde à ação da graça de Deus que se dá nos carismas. Cabe lembrar que as palavras deles, são um testemunho confiável, tanto pela sua antiguidade quanto pelo louvor que outros escritores e santos da Igreja lhe deram posteriormente. Devemos lembrar que vários grupos heréticos que viveram durante a Idade Média como os jansenistas (séc. VIII), os “profetas de Cevennol” que viveram na França (séc. XVI), os tembladores ou Shakers e os irvingites (séc XIX), todos eles foram adeptos da prática do falar ininteligível como se fosse dom do Espírito Santo. E ainda hoje essa prática é muito difundida entre os protestantes pentecostais e neo-pentecostais. Portanto, se o embuste de Satanás aconteceu no passado é bem provável que aconteça hoje, afinal este inimigo de Deus trabalhará para a danação dos homens até o fim dos tempos (cf. Lc 22,31).             Conforme foi demonstrado, não há fundamento na doutrina perene da Igreja para se afirmar que o dom carismático de línguas seja um falar ininteligível. Provavelmente muita confusão se dá por causa de certos pontos difíceis de entender nas cartas paulinas. Por isso, devemos nos lembrar do alerta do primeiro Papa, São Pedro: "Nelas (nas cartas de S. Paulo) há algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras" (cf. 2Pd 3,16). As línguas mencionadas em todos os textos bíblicos e no Magistério da Igreja se referem ao dom carismático de línguas como idiomas e não línguas desconhecidas ou estranhas. No Pentecostes está claro que as línguas eram idiomas variados (cf. Atos 2, 1-13, 2,7-11).

7. UMA RESPOSTA  PARA UMA PERGUNTA  COM INCLINAÇÃO A MENTIRA.

Muitos dizem que Santa Teresa D'Avila possuía o dom das línguas. O renomado Compêndio de Teologia Mística e Ascética de Adolf Tanquerey distingue bem entre os fenômenos místicos contemplação infusa e os carismas. O fenômeno contemplação infusa é “uma vista simples e intuitiva de Deus e das coisas divinas que procede do amor e tende ao amor. São Francisco de Sales define-a: “uma atenção amorosa e permanente do espírito às coisas divinas” (TANQUEREY 1386,)[18] , já os carismas são “as graças gratuitamente dadas para a utilidade dos outros. São, efetivamente, dons gratuitos extraordinários e transitórios, conferidos diretamente para bem dos outros, posto que podem indiretamente servir também para santificação pessoal.” (TANQUEREY 1514)[19]. Santa Teresa D’Avila não experimentou o carisma do dom de línguas, mas várias modalidades da contemplação infusa. Sua experiência mais conhecida neste tipo de fenômeno místico é o da união estática em sua primeira fase (possui três fases: êxtase simples, o arroubamento e o vôo do espírito cf. TANQUEREY 1458). Durante o êxtase espiritual a pessoa perde os sentidos para o mundo material, envolvendo-se totalmente na experiência mística. Em seus escritos Santa Teresa relata ter seu coração transpassado por uma espada de um anjo, o que lhe causava grandes dores. Esta sua experiência mística ficou muito famosa e foi retratada na famosa escultura do artista Bernini.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A doutrina da Igreja sobre o dom de línguas expressa em seus documentos, no catecismo e no testemunho dos seus Santos e Doutores é muito clara quanto a ser uma manifestação extraordinária do Espírito Santo, onde se concede àquele que o recebe falar em línguas diversas ou falar coisas misteriosas na língua em que todos entendem. Tudo que Deus dispensa em Sua Igreja é para a utilidade de todos.Por isso S. Paulo ao falar dos carismas preferia o dom de profecia ao dom de línguas (cf. 1Cor 14,5.39). Manifestações que visam mais o espetáculo do que a utilidade dos membros da Igreja, com toda certeza não é segundo a vontade de Deus. Por isso, ao falar dos carismas extraordinários, o Apóstolo sempre dava  instruções que desencorajassem a indiscrição e o espetáculo. Cabe as movimentos e grupos que se dizem carismáticos ou pentecostais cumprirem esta santa e sábia recomendação do apóstolo. os grandes místicos são unânimes em ensinar que não se deve nem desejar nem pedir estes favores extraordinários. É que, de fato, não são meios extraordinários. É que, de fato, não são meios necessários para chegar à união divina; e às vezes até, por causa das nossas tendências más, são antes obstáculos à união divina. É o que mostra em particular São João da Cruz o qual afirma que este desejo de revelações tira a pureza da fé, desenvolve uma curiosidade perigosa que é fonte de ilusões, embaraça o espírito com vãos fantasmas, denota muitas vezes falta de humildade e submissão à vontade de Deus Nosso Senhor, que, pelas revelações públicas, nos deu tudo quanto nos é necessário para nos conduzir ao céu. Neste sentido vale a pena também lembrar a exortação do Concílio Vaticano II sobre este tema, onde não devemos pedir temerariamente estes dons, nem esperar deles com presunção os frutos das obras apostólicas, é aos que governam a Igreja que pertence julgar da sua genuinidade e da conveniência do seu uso, e cuidar especialmente de não extinguir o espírito, mas tudo ponderar, e reter o que é bom (cf. lTs 5,12-21 e 19-21)”.

Por faltar-nos autoridade e pelo tema ser bastante complexo, não será objeto deste trabalho emitir qualquer opinião ou julgamento em relação aos movimentos ditos carismáticos ou pentecostais. Afinal, somente a autoridade da Santa Igreja Católica pode emitir qualquer juízo neste sentido, como também é verdade que todo juízo das legitimas autoridades eclesiásticas não pode contradizer o que a Igreja sempre nos ensinou. Apresentar e defender o ensinamento sacrossanto do Sagrado Magistério, além de ser um direito de todo fiel católico é um dever que o nosso batismo e crisma  nos  aplica. Lembro que este artigo não tem a finalidade de esgotar o assunto que é complexo, mas tão somente colaborar para o esclarecimento atual de que "até que todos tenhamos chegado à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, até atingirmos o estado de homem feito, a estatura da maturidade de Cristo" (Ef 4,13).

O dom das línguas foi dado para permitir que o Evangelho fosse pregado a todos os ouvintes independente de seus idiomas. Profecias, curas, milagres, foram dados para provar a veracidade das pregações da Igreja e para promover conversões. Com a conquista de uma universalidade moral pela Igreja, a necessidade de tais fenômenos cessou por várias razões.

Não podemos deixar de falar também do mal que faz à Igreja quando um grupo se diz o possuidor da verdadeira “experiência cristã” ou se, por outro lado, num selvagem, voraz e sincrético “ecumenismo” e/ou “tolerância”, declarar que “toda a manifestação de fé é válida se inspirada pelo Espírito Santo”. Caímos, então, ou num perigoso exclusivismo fideísta, ou num nefasto “acolhimento suicida”.  Nesses tempos onde tudo é urgente, onde nos sentimos encurralados por uma realidade hostil, não podemos esquecer da virtude da  prudência que nos previne dessa adesão irracional a práticas nada ortodoxas e em nada salutares para a alma do fiel.

            A virtude da prudência evoca e convoca a memória, a docilidade, a razão e a inteligência para, juntas, respeitando a dignidade  da  pessoa humana  e sua constituição de “animal racional”, fazendo valer a outorga de filho de Deus, adentremos na verdadeira Doutrina, posto que é Sã e Santa para o maior bem daqueles que querem louvar a Deus “em espírito e verdade”. Fora da Ortodoxia, nada há. Da “ortodoxia renovada” somente pode advir confusão e ruína.

 Fernando Vanini de Maria

           REFERÊNCIAS

 

TANQUEREY, Adolf. Compendio de Teologia Mistica e Ascetica. Anapolis: Ed. AMEM –

Animacao Missionaria Eucaristica Mariana, 2007.

IRINEU,Sto. Bispo de Lião. Contra as Heresias. São Paulo. Paulus. 1985.

Homilia sobre os Evangelhos, livro II, 10(305) sobre Sao Joao, 14,23-31, Obras Completas. BAC. Madrid, 1.958.

Livro Carismas – Colecao Paulo Apostolo vol.3-RCC. Editora Santuario.

 

Concilio Vaticano II, Decreto Ad Gentes

 

Compendio da Doutrina Social da Igreja PONTIFICIO CONSELHO PARA AS COMUNICACOES SOCIAIS, Etica nas Comunicacoes Sociais n.3. Em 04 de julho de 2000.

 

Papa Joao Paulo II, Dominum et vivificantem n.30.

 

Papa Joao Paulo II, Homilia na Solenidade de Pentecostes. Em 7 de Junho de 1992,

 

Papa Bento XVI, Homilia na solenidade dos Santos Apostolos Pedro e Paulo, na Quarta-feira dia 29 de Junho de 2005.

           

Santo Agostinho -Homilias em 1 Joao 6 10; NPNF2, v. 7, pp. 497-498.

 

Papa Leao XIII, Enciclica Divinun Illud Múnus, no10.

           

CESARÉIA. Euz. História Eclesiástica. São Paulo. Novo Século. 2002.

Comentário de Santo Tomás de Aquino à Primeira Carta aos Coríntios. Disponível em: https://www.salusincaritate.com/2020/01/carta-aos-corintios-comentarios-de-sao.html

 

Catecismo da Igreja Católica (CIC) parágrafos 734-736.

 

Compêndio do Catecismo da Igreja Católica n. 389-390; CIC 1832.

 

Catecismo da Igreja Católica (CIC) parágrafo 1831.

Catecismo da Igreja Católica (CIC) 2004; 1Tm 4,14.

 

Catecismo da Igreja Católica (CIC) 2011.

 

Catecismo Romano ou Tridentino 1-10-25.

 

Santo Agostinho, Sermão 271. Disponível em http://www.osb.org.br/lectio14.htm.

 

 Ennarrationes in Psalmos, 2,54,BAC, Madrid, 1965, p.344. 

 

Summa Teológica 2-2. Q176. Disponível em http://hjg.com.ar/sumat/c/c176.html.

 

Compendio da Doutrina Social da Igreja, n. 562.



[1] cf. Compendio do Catecismo da Igreja Católica n. 389-390; CIC 1832.

[2] cf. CIC 1831.

[3] cf. CIC n. 2000.

[4] Ibidem n. 1999.

[5] Ibidem n. 2003.

[6] Ibidem n. 2003-2004.

[7] cf. CIC 2004; 1Tm 4,14.

[8] Catecismo Romano ou Tridentino 1-10-25.

[9] Comentário de Santo Tomás de Aquino à Primeira Carta aos Coríntios. Disponível em

http://www.catechesis.com.br/article/4974.

[10] cf. Contra as Heresias 3,17,2.

[11] Ibidem 5,6,1.

[12] 17 Homilia sobre 1 Corintios.

[13] Santo Agostinho, Sermao 271. Disponivel em http://www.osb.org.br/lectio14.htm.

[14] Ennarrationes  in Psalmos, 2,54,BAC, Madrid, 1965, p.344. Texto retirado do Livro

Carismas – Coleção Paulo Apóstolo vol.3 – RCC. Pg 87.

[15] Summa Teologica 2-2. Q176. Disponivel em http://hjg.com.ar/sumat/c/c176.html.

[16] TANQUERY, Adolf. Compendio de Teologia Ascetica e Mistica. Anapolis: AMEM – Alianca

Missionaria Eucaristica Mariana, 2007. Prefacio a Edicao Brasileira, pg [15].

[17] cf. Historia Eclesiastica 5,16,4.

[18] TANQUEREY, Adolf. Compendio de Teologia Mistica e Ascetica. Anapolis: Ed. AMEM –

Animacao Missionaria Eucaristica Mariana, 2007. Pg 716.

[19] Ibidem pg 785.

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