O EPHAPAX DE CRISTO E A CONCEPÇÃO TEMPORAL DA SAGRADA LITURGIA .

 


Partindo de uma pequena exegese  sobre a citação de Hebreus 7,27, claro que, com uma análise critica de todo o contexto, podemos  transferir a linha de raciocínio sobre o desenvolvimento dos vários aspectos das celebrações litúrgicas quanto a concepção temporal , observamos que no texto sagrado no “dia a dia”, os sacerdotes diariamente ofereciam sacrifícios ,  (Hb 9:6; Hb 10:11; Êx 29:38-42). Os sumos sacerdotes participavam desses sacrifícios oferecidos diariamente apenas nos dias festivos; mas como eles representavam todo o sacerdócio, as ofertas diárias são aqui atribuídas a eles; Sua função exclusiva era oferecer a expiação “uma vez por ano” (Hb 9:7) e “ano após ano” (Hb 10:1). O “dia a dia” pertence estritamente a Cristo, não aos sumos sacerdotes, “que não precisa diariamente, como os sumos sacerdotes (ano a ano, e seus sacerdotes subordinados diariamente), oferecer”. Oferecer , o termo  é peculiarmente usado para sacrifícios pelo pecado. A oferta dupla do sumo sacerdote no dia da expiação, o novilho para si e o bode para os pecados das pessoas tinham sua contrapartida nos DOIS cordeiros oferecidos diariamente pelos sacerdotes comuns. Ele fez isto , não “morreu primeiro por seus próprios pecados e depois pelos do povo”, mas apenas pelo povo. A negação é dupla: Ele não precisa oferecer diariamente, nem para oferecer também pelos seus próprios pecados; porque Ele ofereceu a si mesmo um sacrifício sem mancha (Hb 7:26; Hb 4:15). O único sem pecado poderia oferecer para o pecador. Uma vez , antes como o grego, “de uma vez por todas”( ephapax ). A suficiência do único sacrifício para expiar todos os pecados para sempre, resultou de sua absoluta impecabilidade.

Dentro do contexto “uma vez por todas “ Será possível na realidade da fé cristã ainda  existir lugares particulares e tempos santos? O culto cristão não seria liturgia cósmica que abraça o céu e a terra? Cristo sofreu "fora da porta" sublinha a carta aos Hebreus, que acrescenta a exortação: "Saiamos, pois, fora do acampamento e vamos até ele, carregando a mesma desonra que ele sofreu" (13,13). O mundo inteiro não seria talvez o seu santuário? A santidade não se realiza na vida vivida segundo a justiça? A nossa liturgia não consiste numa vida cotidiana vivenciada no amor, no abrir-se ao verdadeiro sacrificio, tornando-nos, assim, semelhantes a Deus? Pode haver uma sacralidade diferente daquela do seguimento do Cristo, na sóbria paciência da vida cotidiana? Um tempo sacro diferente do tempo do amor vivido para o próximo, quando e onde as circunstâncias da nossa vida o exigirem? Quem faz essas perguntas toca num aspecto fundamental do conceito cristão de culto e de adoração, mas esquece algo de essencial da limitação permanente da existência humana neste mundo, esquece o "ainda não", que pertence à existência cristã e sustenta que o novo céu e a nova terra já chegaram. A vinda de Cristo e a difusão da Igreja entre todos os povos, a passagem do sacrificio do templo à adoração universal "em espírito e verdade" são um primeiro passo importante, um passo rumo ao cumprimento das promessas do Antigo Testamento. Mas está claro que a esperança ainda não atingiu plenamente a sua meta. Por essa razão, o tempo do Novo Testamento representa um momento intermediário particular, uma mistura de "já" e "ainda não. Desse modo de entender o Novo Testamento como tempo de transição, como imagem entre sombra e realidade, deriva a forma específica da teologia litúrgica. Ela fica mais clara se pensarmos nos três níveis essenciais para a constituição do culto cristão. Existe o plano intermediário, ou propriamente litúrgico, que todos conhecem bem, e se manifesta nas palavras e nos atos de Jesus durante a última ceia. Estes constituem o núcleo da celebração litúrgica cristã, cuja estrutura deriva da síntese do culto do templo, embora em vez dos atos sacrificais do templo se situe o cânon eucarístico, como participação do ato realizado por Jesus na ceia, e a distribuição dos dons transformados. Todavia, esse plano propriamente litúrgico não se sustém sozinho; só possui sentido quando se refere a um evento real e a uma realidade que em sua essência permanece presente. De outro modo seria como uma lembrança sem consistência, sem um conteúdo real. O Senhor podia dizer que o seu corpo estava sendo "oferecido" somente porque ele realmente o ofereceu; podia oferecer no novo cálice o sangue derramado por muitos, porque ele de fato o derramou. Esse corpo, em suma, não é o corpo para sempre morto de um defunto, nem o sangue um elemento vital já sem vida, mas a oferta se torna dom porque o corpo doado no amor e o sangue derramado no amor, por meio da ressurreição entraram na eternidade do amor, mais forte que a morte. Sem cruz e ressurreição o culto cristão não teria valor,

Se refletimos sobre esse fundamento real que sustenta a liturgia cristã, ainda há algo importante a comentar. A crucificação de Cristo, a sua morte na cruz e, contrariamente, a sua ressurreição do sepulcro, que confere incorruptibilidade ao corruptível, são eventos históricos únicos que, como tais, pertencem ao passado. O “ ephapax” , a "única vez" que a carta aos Hebreus evidencia em relação à multiplicidade de sacrificios do Antigo Testamento. Mas, se fossem apenas fatos do passado, como todos os dados que extraímos dos livros de história, seria impossível ter alguma contemporaneidade com eles. Para nós, eles seriam inatingíveis. Ao ato exterior da crucificação corresponde, porém, um ato interior da oferta (o corpo é "dado por vós") : ninguém pode me tirar a vida, eu a dou por mim mesmo, afirma o Senhor no Evangelho de João (10,18). Esse ato de oferta não é, de fato, um evento só espiritual. É um ato espiritual que engloba em si o ato corporal, que abraça o homem em sua inteireza, antes, é, ao mesmo tempo, um ato do Filho: a obediência da vontade humana de Jesus se aprofunda no persistente sim do Filho ao Pai,. Assim, esse "dar", que na passividade de ser crucificado envolve a paixão da natureza humana no ato do amor, abraça todas as dimensões da realidade: corpo, alma, espírito. Do mesmo modo que o sofrimento fisico está envolvido o sim da obediência também está envolvido naquilo que vai além do tempo. O verdadeiro ato interior, que, além disso, não teria consistência sem o exterior, supera o tempo; todavia, visto que vem do tempo, isso pode sempre ser nele recuperado. Por isso a contemporaneidade é possível. É o que se entende  quando afirmamos que o verdadeiro (uma vez) traz em si o (sempre) : no Único acontece o Permanente. Na Bíblia, o "uma só vez" é fortemente sublinhado na carta aos Hebreus; porém, se for lida atentamente percebe-se que exatamente essa relação  exprime a sua verdadeira intenção. O ephapax (uma só vez) está ligado ao perpétuo. O "hoje" abraça o tempo inteiro da Igreja. Exatamente por isso na liturgia cristã não só se participa do passado, mas existe contemporaneidade com aquilo que fundamenta essa liturgia: é esse o verdadeiro núcleo e a verdadeira grandeza da celebração eucarística, que é sempre mais que uma ceia: é o ver-se envolvido em contemporaneidade com o mistério pascal de Cristo, em sua passagem da tenda da transitoriedade para a presença da face de Deus. Retornemos ao nosso ponto de partida. Primeiramente dissemos até aqui que existe o plano do elemento fundamental e, em segundo lugar, o da prática litúrgica, o autêntico plano litúrgico. Procurei mostrar como os dois planos estão entrelaçados. Se o passado e o presente se entrelaçam, se o essencial do passado não é de fato passado, mas é força que se transmite aos presentes que se sucedem, isso significa que também o futuro está presente nesse evento, que por sua natureza ele deve ser definido como antecipação daquilo que acontecerá. Todavia, sobre isso não devemos ser precipitados. O pensamento  do Cristo que retornará, logo se impõe, e é certo. Aqui, porém, existe uma outra dimensão que deve ser considerada, a  liturgia, como vimos, não é uma substituição. O que essa distinção intui fica aqui bem claro. Não são animais que se sacrifica, "alguma coisa" que, no fundo, permanece estranho para mim. Essa liturgia se baseia na paixão de um homem que com o seu eu entra no mistério do Deus vivo  que é "Filho". Por isso ela nunca pode ser simplesmente ação  liturgica. A sua origem traz em si o seu futuro também no sentido de que a função se repete e  envolve aqueles que são representados, não lhes é externa, mas dá-lhes forma.   A contemporaneidade com a Páscoa de Cristo, que se realiza na liturgia da Igreja, é também uma realidade antropológica. A celebração não é somente rito, não é apenas um "jogo" litúrgico, mas quer ser a  transformação da minha existência em direção ao logos, contemporaneidade interior entre mim e a oferta de Cristo. A sua oferta quer se tornar a minha, para que a contemporaneidade se cumpra e se realize.  Por fim , “ Este termo grego traz em sua etimologia a conotação de uma continuidade supratemporal.  Sim! Com isto estamos dizendo que o único e irrepetível sacrifício de Cristo não fica isolado em um fato histórico do passado, mas que continua sendo vivenciado pela comunidade ao longo dos séculos, pois ele supera, ele está acima do tempo cronológico, do tempo histórico, ele é supratemporal”.

Fernando Vanini de Maria

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