As fontes sempre foram assunto válido para a Igreja Católica, de fato muitas vezes a Igreja se afastou do caminho das origens, porém pela ação do Espírito Santo sempre vai retomando o caminho correto após muitas reflexões sobre seu passado, presente e tomando iniciativas para o futuro. Mas como identificar uma fonte válida? O que é uma fonte afinal? A ciência história é fundamental para podermos identificar uma fonte verdadeira e confiável, desta maneira, a Igreja incentiva aos exegetas aterem domínio bem aprofundado sobre todos os melhores métodos e abordagens possíveis para identificarmos com segurança no que podemos ou não confiar. A Igreja não teme a ciência, mas teme opiniões pré-concebidas que fazem a ciência sair de seu domínio. A Igreja precisa investigar a fundo e buscar sempre recorrer às fontes para evitar ao máximo se perder do caminho da evangelização.
O presente artigo pretende demonstrar a necessária relação entre fonte, história e Igreja. Para tanto fará uma breve definição de fonte, na qual observaremos a importância da dúvida metódica para identificar fontes confiáveis e não confiáveis e fontes verdadeiras ou falsas. Depois dessa definição, pretende-se realizar a definição de história no século XIX, seu surgimento e comentários. Após refletirmos acerca da importância da história, como ciência, e das fontes, abordaremos a relação entre elas. Qual a importância das fontes para a história da Igreja? Como pode a Igreja se manter no caminho da evangelização? Caso ela desvie desse caminho, como corrigir seus passos? Para todas essas questões observaremos a importância de sempre recorrermos às fontes, isto é, às origens, e identificar como os primeiros cristãos viviam e como devemos hoje viver para bem testemunhar o Reino de Deus no mundo.
O QUE É FONTE?
Muitos são os pensamentos e discussões a respeito do tema “fonte”. Mas afinal? O que é uma fonte? O melhor pensamento para entendermos de fato o que é uma fonte confiável é sem dúvida o pensamento de Descartes. Esse filósofo que inaugura o período moderno na filosofia propõe o método da dúvida. É através desse método que podemos chegar à verdade. Vejamos nas Meditações Metafísicas, o que ele nos tem a dizer:
1 –Nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que não a conhecesse evidentemente como tal, ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não aceitar em seus juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clara e distintamente a seu espírito que não houvesse nenhuma ocasião para pô-lo em dúvida.
2 –Dividir cada um dos problemas que examinaria em tantas partes quantas fossem necessárias para melhor resolvê-los.
3 –Conduzir por ordem seus pensamentos, partindo dos objetos mais simples, para ascender pouco a pouco, como por degraus, até ao conhecimento dos mais compostos. Supor até ordem entre aqueles que não se precedem naturalmente uns aos outros.
4 –Fazer toda parte de enumerações tão completas e revisões tão gerais que estivesse certo de nada omitir1.Na primeira parte do Discurso do Método, Descartes coloca o problema da dúvida metódica: O que é realmente existente? Já que aceitou desde seus primeiros anos de vida, uma verdadeira quantidade de falsos conceitos, e que construiu seu conhecimento através de princípios tão inseguros que precisa recomeçar a partir dos alicerces, na tentativa de intuir algo de sólido e permanente. Para resolver esse problema, usa o ceticismo como método. Jamais confiar nas verdades ditas anteriormente, não confiar nos sentidos. Parece ser uma brincadeira o que Descartes faz, pois suas reflexões chegam a ser engraçadas, mas levadas a sério, são questões fundamentais para chegarmos a uma verdade. Já há algum tempo me dei conta de que, desde os meus primeiros anos de vida, aceitei como verdadeira uma quantidade de falsos conceitos, e o que construí depois sobre princípios tão inseguros só poderia ser muito duvidoso e incerto; de modo que se fazia necessário que eu decidisse seriamente me desfazer de todas as opiniões recebidas até então e recomeçar a partir dos alicerces, se quisesse instituir algo de sólido e permanente nas ciências. Tudo quanto tenho tomado até agora como o mais verdadeiro e seguro conhecimento aprendi por meio dos sentidos; ora, algumas vezes descobri que esses sentidos eram ilusórios, sendo prudente jamais confiar inteiramente naqueles que já nos enganaram uma vez. Nessa meditação, Descartes relata a incerteza que os sentidos nos proporcionam, e por isso, temos tantos falsos conceitos sobre as coisas, dessa maneira é necessário derrubar todo o edifício do conhecimento para reconstruí-lo. Interessante que esta expressão de recomeçar a partir dos alicerces, relembra outra comparação empregada por Descartes. Suponhamos que um homem tenha um cesto cheio de maçãs, que ele tema que algumas dessas maçãs estejam podres e queira retirá-las para que não façam as outras apodrecerem também, como ele faria isso? Primeiro ele não retiraria todas e esvaziaria seu cesto? Em seguida, examinando-as uma por uma, ele pegaria novamente as que julgassem intactas para recolocar no cesto, deixando as outras de lado? Do mesmo modo, as pessoas que nunca filosofaram adequadamente possuem o espírito cheio de opiniões, acumuladas desde sua infância, e como elas temem, com razão, que algumas sejam falsas, esforçam-se por separá-las das outras para que não façam todas se tornarem incertas ao se misturarem a elas. E não há melhor maneira de fazer isso do que rejeitando todas de vez, por serem incertas ou falsas e, depois de examiná-las ordenadamente uma por uma, pegando de novo apenas as que forem reconhecidas como indubitavelmente verdadeiras. Essa comparação da maçã é fundamental, pois é exatamente o que ele faz com as coisas que tinha como verdades desde a infância, rejeitando tudo até que se tenha alcançado a verdade clara e distinta que ele almejava. O uso de certos costumes amenizou suas imperfeições, e não poderíamos prover tão bem as coisas pela prudência como o fazemos pelo costume. O caminho do costume é cômodo, muito melhor de ser seguido. Aqui Descartes faz uma alusão à Montaigne: Parece-me haver compreendido a força do costume quem primeiro inventou essa história de uma mulher que, tendo-se habituado a acariciar e carregar nos braços um bezerro, desde o nascimento, e o fazendo diariamente, chegou pela força do hábito a carrega-lo ainda quando já tinha tornado um boi. Porque o costume é efetivamente um pérfido e tirânico professor. Podemos observar no trecho procedente, que Descartes é realmente radical com tudo o que há em volta dele, duvida de absolutamente tudo sem deixar escapar nada. Logo suporei que existe não um verdadeiro Deus, que é fonte soberana de verdade, mas um gênio mau, não menos astuto e enganador que poderoso, que tenha empregado todo o seu engenho em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos não sejam mais que ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender a minha credulidade. Permanecerei obstinadamente preso a esse pensamento; e se por tal meio não estiver em meu poder alcançar o conhecimento de qualquer verdade, ao menos estará em meu poder suspender o meu juízo. Eis porque procurarei cuidadosamente não aceitar nenhuma falsidade, e prepararei tão bem o meu espírito contra as astúcias desse grande enganador que, por mais poderoso e astuto que seja, jamais poderá me impor coisa alguma. Para chegarmos às fontes seguras temos que usar exatamente esse método cartesiano, o método da dúvida. Quantas vezes enquanto crianças nos ensinavam coisas que na idade adulta começamos a perceber não serem exatamente verdades? Exemplos não faltam, como o descobrimento do Brasil, a proclamação da independência etc. Apresentam-nos nas aulas de história atos heroicos que depois quando vamos investigar de maneira nem tão profunda assim, percebemos que não foram atos tão heroicos e bravos como nos foi ensinado.
Ir às fontes significa ir às origens, buscar documentos que possam ser dignos de confiança para podermos entender o passado e descobrirmos porque o mundo está dessa maneira , e não de outra atualmente. “O que chamamos documento ou fonte histórica não é necessariamente produzido pelos indivíduos com o objetivo de deixar testemunhos para aqueles que viverão no futuro. São os pesquisadores, ao estudarem determinado documento ou fonte histórica, que atribuem um sentido a esses documentos” . Existem diferentes tipos de documentos históricos: escritos, orais, sonoros, visuais e os que compõem a chamada cultura material. Sendo assim, podem ser encontrados em forma de documentos oficiais (leis, contratos, registros contábeis...) ou documentos particulares, publicações científicas, livros, anotações, inscrições em monumentos, dados estatísticos, pinturas, esculturas, construções. Todos os vestígios deixados pelas gerações passadas são fontes históricas que podem ser analisadas pelos historiadores para produzir conhecimento histórico. Esses vestígios podem ser escritos, monumentos, vestimentas. Os primeiros historiadores foram, antes de tudo, filólogos e isso porque buscavam conhecer “aquilo que realmente aconteceu”, wie es eigentlich gewesen, na famosa frase do historiador alemão Leopold von Ranke (1795-1886), de 1823, e, para isso, precisavam conhecer as fontes, os documentos escritos, em sua língua original. Essa foi uma verdadeira revolução epistemológica: a ideia de que a história se faz com documentos e que os devemos conhecer muito bem. Precisamos diferenciar documentos falsos de verdadeiros, e isso só é possível com um conhecimento aprofundado da língua utilizada. Fonte é uma metáfora, pois, o sentido primeiro da palavra designa uma bica d'água, significado esse que é o mesmo nas línguas que originaram esse conceito, no francês, source , e no alemão, Quelle. Todos se inspiraram no uso figurado do termo fons (fonte) em latim, da expressão “fonte de alguma coisa” no sentido de origem, mas com um significado novo. Assim como das fontes d'água, das documentais jorrariam informações a serem usadas pelo historiador .Para usarmos bem as fontes é em primeiro lugar, necessário buscar as melhores formas de interpretar a fonte disponibilizada; sem os modelos interpretativos adequados, corremos graves risco de pensar que estamos, “diretamente e sem mediação, ‘descobrindo’ o que aconteceu, o mundo tal como ele é, a coisa em si”.
A Igreja Católica propõe que utilizemos a ciência para buscar informações corretas e verdadeiras, porém nos indica que para isso é necessário ter amplo domínio sobre os melhores métodos para utilizá-los com eficiência e nos mantermos livres de engano. “A Igreja não tem medo da crítica científica. Ela só teme as opiniões preconcebidas, que têm a presunção de se fundar na ciência, mas que, na realidade, fazem sair sub-repticiamente a ciência de seu domínio”. Podemos perceber então, a importância dos melhores instrumentos interpretativos para poder de fato saber se tal documento é verdadeiro ou não, em outras palavras, se é confiável ou não. Um pensamento do historiador britânico A. Munslow citado no livro de Barcellar nos lembra: “a evidência não constitui conhecimento histórico disponível e pronto, que pode ser simplesmente engolido e digerido pelo historiador. As fontes tornam-se úteis como fatos históricos apenas quando o historiador as submeter a uma série de conhecimentos contextualizados que ele já possui”. Quanto a essa necessidade de obter os melhores métodos interpretativos temos o documento “A Interpretação da Bíblia na Igreja”, o qual faz uma breve descrição dos diversos métodos e abordagens, indicando suas possibilidades e seus limites, examinando algumas questões de hermenêutica, e propondo uma reflexão sobre a problemática da interpretação dos textos bíblicos e a necessidade da utilização de todos os métodos possíveis de maneira sinérgica para melhor compreendermos esses textos. Voltamos, então, a Descartes, é necessário duvidar para assim chegarmos a uma verdade clara e distinta, livre de engano. Para duvidar, no entanto, é necessário termos os melhores métodos disponíveis para nos ajudar. De acordo com o professor Leva: “É preciso ter critérios para assegurar que as fontes encontradas sejam seguras e verdadeiras”.
FONTE E HISTÓRIA
Os pais da história foram os gregos, que a conceberam por volta do século V a.C História quer dizer “conhecimento por meio de uma indagação”.O termo deriva do substantivo istor “conhecedor, testemunha” e do verbo istorein “informar-se”.
O historiador francês Marc Bloch definiu a história como a ciência dos homens no transcurso do tempo; o francês Lucien Febvre destacou que a história é o processo de mudança contínua da sociedade humana. Segundo o brasileiro Aurélio Buarque de Holanda, história é a narração metódica dos fatos notáveis ocorridos na vida dos povos, em particular, e na vida da humanidade, em geral. Já para o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, a história é o estudo do que os homens do passado fizeram, da maneira pela qual viviam, das ideias que tinham.
Podemos perceber que história é o estudo do passado para explicar como era a vida em outros tempos. “História é a disciplina que estuda a vida dos homens em sociedade ao longo do tempo. Seu objetivo é compreender ações, desejos, pensamentos, sentimentos e criações culturais dos homens em diversas sociedades e variadas épocas”16.De acordo com Alves, o verbo istorein,“ informar-se”, foi o sentido usado por Heródoto (sec. V a.C.) que produziu um relato verdadeiro dos fatos, separando o que era mito, fábula, lenda do que era real. A história surgiu, com esse nome, entre os gregos antigos, que designaram com esse termo a “pesquisa” sobre as origens dos conflitos e contradições de sua época. É assim que se iniciam as Histórias de Heródoto (484-424 a.C.), no século V a.C.: Estas são as histórias de Heródoto de Halicarnasso tornadas públicas na esperança de poder preservar, dessa maneira, a lembrança do que fizeram os homens e de impedir que as grandes e maravilhosas ações de gregos e bárbaros deixem de receber o devido reconhecimento e, assim, registrar quais as causas de suas lutas18.No artigo Nos Fatos da História: o evento salvífico –XV séculos de Igreja, Leva nos apresenta o seguinte pensamento fazendo referência à Vavy Pacheco Borges: É na Alemanha que surge a preocupação de transformar a história em uma ciência [...]. Os historiadores alemães querem que a história se torne uma ciência o mais segura possível, como as ciências exatas. Pretendem um grau de exatidão científica semelhante a elaboração de método de trabalho análogo e efetivo, que estabelecesse leis e verdades de alcance universal19.A história se desenvolve no século XIX e é apresentada como ciência, mas é no séc. XX que o conhecimento histórico é reconhecido e passa a ser colocado nos currículos das universidades: “Novas áreas de pesquisa, novos métodos e abordagens surgiram, modificando as relações entre o presente, passado e futuro transformando o modo como o conhecimento histórico era produzido”.
Com a cientificidade da história é possível identificar e distinguir fontes confiáveis das não confiáveis. O que antes era praticamente impossível. No séc. XX a concepção de fonte histórica se ampliou consideravelmente. Vestígios arqueológicos, imagens, mitos, lendas, relatos orais, literatura, em fim, todas as produções humanas passaram a ser consideradas fontes para o conhecimento do passado. Essa transformação é um dos fatores que possibilitaram a ampliação do território do historiador e a abertura de novos campos de pesquisa21.A Igreja sempre se fez presente no decorrer da história tendo reações sempre significativas, não se limitando a uma resposta puramente defensiva: A Providentissimus Deus convida insistentemente os exegetas católicos a adquirirem uma verdadeira competência científica, de modo a superarem os seus adversários no terreno dos mesmos [...] Na Divino Afflante Spirituhá uma reivindicação para a estreita união das duas iniciativas [exegese científica e interpretação espiritual], por um lado salientando o alcance teológico do sentido literal, metodologicamente definido, por outro lado, afirmando que, para poder ser reconhecido como sentido de um texto bíblico, o sentido espiritual deve apresentar garantias de autenticidade. Uma simples inspiração subjetiva não é suficiente. Deve-se poder mostrar que se trata de um sentido “querido por Deus mesmo”, de um significado espiritual “dado por Deus” ao texto inspirado. A determinação do sentido espiritual é da competência e domínio da ciência exegética22.É importante então percebermos que embora muitas pessoas pelo senso comum digam que a Igreja está sempre fora da história, o contrário é o mais correto. Como apresentado por Leva, a Igreja atua na história e a história na Igreja. De acordo com os fatos que vão acontecendo a Igreja emite respostas e essas respostas modificam os fatos futuros. A história nos faz pesquisar o passado para nos posicionar no presente como algo dinâmico e salutar. A ciência histórica maturou ao longo dos séculos sua episteme e nos legou ver os acontecimentos de forma criteriosa e sem julgamento. Cabe ao historiador elencar os fatos e apresentá-los de maneira ordenada e concatenada. [...] Através da história e outros saberes [...] a igreja conheceu seus passos fincados nos séculos [...].Mediante os documentos apercebemos e analisamos que tanto mais a Igreja se fazia presente nas comunidades ,tanto mais dinamizava o entusiasmo para com O Ressuscitado. [...] No período Antigo tivemos muitos santos e mártires, tanto quanto hereges; o período Medieval foi permeado tanto de nepotismo e de simoníacos quanto de santidade e o cultivo do saber, como o surgimento das universidades, instrumento de cultura e fé da civilização ocidental23.Novas ordens religiosas nasceram na modernidade . Quando a Europa se lançou nas grandes navegações, a Igreja também estava presente e muitos missionários foram capazes de denunciar a violência cometida nos novos povos como podemos ler em uma das cartas do padre Anchieta: “Porque a maior parte, os índios, naturais do Brasil, está consumida, e alguns poucos, que se hão conservado com a diligência e trabalhos da Companhia, são tão oprimidos, que em pouco tempo se gastarão”24.Na época contemporânea, a Igreja foi duramente abalada pelas revoluções e guerras, mas se fez sempre presente repensando sua maneira de ser, seus valores e sua missão. “A maturação acerca da colegialidade assegura averiguar as posições pessoais e buscar os acertos viáveis para a reta evangelização. Concorrendo para o bem comum, e eliminando os privilégios, seremos capazes de anunciar Jesus Cristo e a proposta do Reino de Deus contida no seu Evangelho”.25O importante é termos a certeza de que a associação entre a história como ciência e a teologia tem sido um trabalho muito importante e eficiente para que o campo das pesquisas avance.
A IMPORTÂNCIA DAS FONTES PARA A IGREJA
Muitos com suas opiniões pessoais duvidam sobrea verdadeira origem da Igreja Católica, alguns dizem que foi a Igreja que surgiu com o Edito de Milão de Constantino em 313,e Tessalônica de Teodósio em 380. De fato nessa época o cristianismo se torna religião oficial do império e muitos se desviam do caminho do evangelho. Como apropriadamente pergunta Leva: “Como religião do Estado, todos que se faziam batizar, de fato, eram cristãos conscientes. Essa pergunta que aparentemente tem uma resposta certeira pode ser trabalhada em vários pontos de vista. Não é tão simples de ser respondida. Dom Fernando, bispo de Santo Amaro, afirma que: “A Igreja Católica tem suas raízes em Cristo, cujos ensinamentos nos foram transmitidos pelos escritos do Novo Testamento. Sua autenticidade, graças aos Padres da Igreja, é reconhecida justamente pela Tradição”. A mensagem de Cristo foi recebida pelos apóstolos e os mesmos incumbiram seus sucessores a conservar a mesma mensagem íntegra para transmiti-la para as próximas gerações: Deus dispôs amorosamente que permanecesse íntegro e fosse transmitido a todas as gerações tudo quanto tinha revelado para a salvação de todos os povos. Por isso, Cristo Senhor, em quem toda a revelação de Deus onipotente se consuma, mandou que os apóstolos pregassem a todos, comunicando-lhes os dons divinos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, o Evangelho prometido antes pelos profetas e por ele cumprido e promulgado pessoalmente. Este mandato foi realizado com fidelidade, quer pelos apóstolos que, na sua pregação oral, com exemplos e instituições, transmitiram aquilo que ou tinham recebido dos lábios, da conversação e das obras de Cristo ou tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo, quer por aqueles apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação. Porém, para que o Evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na Igreja, os apóstolos deixaram os bispos como seus sucessores. Seguindo Dom Fernando, podemos observar que nos primeiros anos não se sentia a necessidade de escrever ou elaborar uma literatura cristã. A literatura não é essencial à fé. Essa fé nasceu de ensinamentos dados à viva vós. Mas como diz um velho ditado na área de criação em agências de publicidade: “O que não está escrito, não existe ou não foi dito”. Então para que a mensagem de Jesus Cristo não fosse esquecida com a morte dos Doze, e para apoiar a proclamação do Evangelho foram surgindo escritos. Dom Fernando afirma: Três ocasiões propiciam o surgimento de tais escritos:
1 –A necessidade de comunicação entre as Igrejas.
2 –A Necessidade de testemunhar, diante das autoridades pagãs, sua fé em Cristo. São as atas dos mártires com vigorosos e belíssimos testemunhos dos primeiros cristãos.
3 –A Necessidade de responder às acusações das autoridades e dos intelectuais pagãos e rebater as teses dos escritores gnósticos . Essa nova literatura, que surge, tem um valor fundamental para a reflexão teológica, ela nos possibilita ter um contato com as primeiras comunidades, como se organizavam, seus problemas, as soluções encontradas etc. De tal modo que para uma reflexão teológica concreta .“ não se pode desconhecer, jamais, a experiência fundamental vivida pelos primeiros cristãos” .Muita gente confunde a ideia de ir às fontes com voltar no tempo. É muito importante termos consciência de que não podemos negar a evolução do pensamento teológico, ir às fontes não é um mero processo cronológico, pois aquelas comunidades tinham suas realidades próprias, hoje temos novos desafio se novas possibilidades. Tradição não é voltar a usar vestes de 200 anos atrás. Pano não é tradição. Tradição é quando temos uma herança recebida, depositum fidei (deposito da fé) e depositum vital(deposito da vida) e nós transmitimos às novas gerações, a experiência que foi vivenciada e experimentada. Tradição é eternizar a própria experiência. “Ir às fontes significa deixar-se invadir pela força inspiradora desse período da vida cristã e que continua ainda hoje, presente em nós, conduzindo-nos a viver e a testemunhar o Evangelho”31.Os documentos elaborados no princípio do cristianismo são as orientações que a Igreja tenta seguir ao longo dos séculos. Muitas vezes se afasta desse caminho e depois por força do Espírito Santo retorna. O Concílio Vaticano II foi uma grande demonstração da ação do Espírito na Igreja, que nada mais fez do que voltar às origens. Muitas são as dúvidas evocadas durante os séculos sobre a Igreja, uma dessas dúvidas que é muito frequente ainda hoje é sobre o primado do bispo de Roma. Carlos Hastings Collete nos indaga a esse respeito em seu livro intitulado “Inovações no Romanismo”: “Desafiamos a que se nos prove que houvesse sido dado algum dos títulos: príncipe dos sacerdotes, sumo sacerdote, vigário de Cristo, bispo universal etc. exclusivamente ao bispo de Roma, desde o primeiro papa até Gregório I”32.A questão apresentada sempre é colocada em pauta pelos protestantes quando da morte ou nomeação de um novo papa. Quando João Paulo II morreu, por exemplo, começaram-se novamente as manifestações de questionamento sobre o primado romano. Quando Bento XVI renunciou a mesma situação ocorreu. Daí a necessidade de voltarmos às origens para observarmos como era a organização da hierarquia. Na carta de Clemente Romano aos Coríntios, podemos ler que o mesmo fora chamado a intervir nos problemas da comunidade e o faz na qualidade de grande chefe. Nessa carta que data do primeiro século: “tida por autêntica, significativa e admirável. Ele a redigiu, da parte da Igreja de Roma para a Igreja de Corinto, em consequência de uma divisão que sucedera em Corinto. Sabemos que em grande número de Igrejas lia-se outrora esta carta, e ainda hoje é lida”. Clemente Romano nos informa que São Pedro não só esteve em Roma, mas lá igualmente morreu ao lado de São Paulo. Demonstra que a hierarquia da Igreja já estava organizada: Os apóstolos receberam a boa-nova em nosso favor da parte do Senhor Jesus Cristo. Jesus Cristo foi enviado por Deus. Cristo, portanto vem de Deus e os apóstolos de Cristo. Esta dupla missão realizou-se, pois, em perfeita ordem por vontade de Deus. Munidos assim de instruções e plenamente assegurados pela ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, confiados na palavra de Deus, saíram a evangelizar na plenitude do Espírito Santo a próxima vinda do Reino de Deus. Assim proclamando a Palavra no interior e nas cidades, estabeleciam suas primícias, como bispos e diáconos, dos futuros fieis, depois de prová-los pelo espírito. E não era inovação: há séculos já a Escritura falava de bispos e diáconos [...].Por tal motivo e como tivessem perfeito conhecimento do porvir, estabeleceram os acima mencionados e deram, além disso, instruções no sentido de que, após a morte deles, outros homens comprovados lhes sucedessem em seu ministério[...].Vós que destes origem à revolta submetei-vos aos presbíteros e deixai-vos corrigir até a conversão, dobrando os joelhos de vossos corações [...].Se porém alguns de vós não obedecerem ao que por nós foi dito saibam que se envolverão em pecado e perigo não pequeno. A Didaqué, o livro da Doutrina dos Doze Apóstolos, foi amplamente utilizada nos primeiros séculos, ela constitui o testemunho da organização e da vida de uma comunidade cristã nos primeiros anos do cristianismo, possui uma catequese moral que vai dos capítulos I a VI, instrução litúrgica do cap. VII ao X, prescrição disciplinar do cap. XI ao XV, e um epílogo que orienta a comunidade para a segunda vinda do Senhor no cap. XVI.A catequese moral reduz os deveres dos cristãos a duas vias: A da vida e a da morte. Há dois caminhos: um da vida e outro da morte. A diferença entre ambos é grande. O caminho da vida é, pois, o seguinte: primeiro amarás a Deus que te fez; depois a teu próximo como a ti mesmo. E tudo o que não querer que seja feito a ti, não o faças a outro[...]. O caminho da morte é o seguinte: Em primeiro lugar é mau e cheio de maldições, mortes, adultérios, paixões, fornicações, roubos, idolatrias, práticas mágicas, bruxarias, rapinagens, falsos testemunhos, hipocrisias, ambiguidades, fraude, orgulho, maldade, arrogância, cobiça, má conversa, ciúme, insolência, extravagância, jactância, vaidade e ausência de temor de Deus. Sobre a instrução litúrgica contida nos capítulos VII ao X, o capítulo VII contém a descrição do batismo, o capítulo VIII contém a descrição do jejum, narra a prece do Senhor e no capítulo X há a descrição da Eucaristia. No capítulo XI há a regulação da comunidade, nos
capítulo XII ao XIII os deveres da caridade e nos capítulos XIV e XV o governo interno da comunidade: “Escolhei-vos, pois, bispos e diáconos dignos do Senhor, homens dóceis, desprendidos (altruístas), verazes e firmes [...] Não os desprezeis, porque eles são da mesma dignidade entre vós como os profetas e doutores”. No capítulo XVI temos a orientação para o retorno do Senhor: “Vigiai sobre vossa vida. Não deixeis apagar vossas lâmpadas nem solteis o cinto de vossos rins, mas estai preparados, pois não sabeis a hora na qual Nosso Senhor vem”. Santo Inácio, bispo de Antioquia, foi conduzido da Síria a Roma, na época do imperador Trajano e condenado às feras: “sou trigo de Deus e sou moído pelos dentes das feras, para encontrar-me como pão puro de Cristo”. Santo Inácio é o primeiro a usar a expressão “cristianismo” para opor-se aos judaizantes. A hierarquia é apresentada em três níveis, na carta aos Esmirnenses apresenta a necessária unidade para com o bispo: “Onde quer que se apresente o bispo, ali também esteja a comunidade, assim como a presença de Jesus Cristo também nos assegura a presença da Igreja Católica”. Segundo Dom Fernando: “O termo catholica, não só designa a realidade da Igreja presente por toda parte, mas, principalmente, o fato de ela ser sinal de unidade e da verdade de Deus”. A Igreja é santa e pecadora, mas mediante a comunhão com o ministério do bispo, mestre, guia e centro da unidade da comunidade cristã, juntamente com o ministério dos presbíteros e diáconos torna-se uma realidade divina e espiritual. O bispo é para Santo Inácio sinal de unidade e comunhão na caridade. Na carta aos Magnésios nos apresenta um paralelo entre o bispo e Deus Pai: Não vos assentaria bem valer-vos da pouca idade do bispo, dispensai-lhe sim, quanto Deus Pai concede, toda prova de respeito. Como soube, também os santos presbíteros não menosprezam a condição de jovem que nele salta aos olhos, mas se lhe submetem como gente sensata em Deus. Aliás, não é a ele que se submetem, mas ao Pai de Jesus Cristo, bispo de todos. Por respeito Àquele que nos elegeu, convém obedecermos sem nenhuma hipocrisia, uma vez que ninguém engana a tal ou tal bispo visível, mas abusa do bispo invisível39.Perante Deus, a responsabilidade do pastoreio cabe em primeiro lugar ao bispo. Os presbíteros, seus colaboradores, condividem a solicitude da Igreja local enquanto exercem seu ministério em comunhão com ele40.A Igreja é caracterizada por santo Inácio como unidade e amor: “Pois, se em tão curto lapso de tempo tive tal intimidade com vosso bispo, não em revele te o sentido humano mas espiritual, quanto mais devo felicitar-vos por estardes tão profundamente ligados a ele como a Igreja a Jesus Cristo e como Jesus Cristo ao Pai, para que todas as coisas estejam em sintonia na unidade”41.É o bispo, o sinal de instrumento da unidade, todos devem estar em comunhão fraterna com o bispo: “E quanto mais alguém percebe que o bispo se silencia, mais respeite”42.Essa citação de Dom Fernando está mais próxima do contexto original do que a tradução de Dom Paulo Evaristo Arns. Dom Paulo traduz o termo “se silencia” por “se cala”. “E quanto mais alguém percebe que o bispo se cala, mais o respeite”43.O silêncio, Dom Fernando vai explicar, é o mistério mesmo de Deus. Ainda na carta aos Efésios no cap. 15, podemos observar a explicação: “Quem de fato possui a Palavra de Jesus pode ouvir-lhe o silêncio; para ser perfeito, para agir pelo que fala e ser reconhecido pelo que se silencia”. Novamente a tradução de Dom Paulo traduz por “cala”. “Quem de fato possui a Palavra de Jesus pode até ouvir-lhe o silêncio; para ser perfeito, para agir pelo que fala e ser reconhecido pelo que cala”. Dom Fernando explica que a tradução de Dom Paulo não está errada e seria de uma infelicidade tamanha a pessoa que afirmasse isso. Mas adverte que silenciar-se transmite a ideia de meditação, de assimilação do mistério de Deus, a palavra calar por outro lado, não transmite essa ideia logo de inicio, por isso em sua tradução, optou por usar o termo silenciar. Vários são os testemunhos da importância não só do bispo local, mas do bispo de Roma. De fato em toda a patrística muitos autores irão recorrer à Igreja de Roma fundada por São Pedro e São Paulo para resolver determinados conflitos. Por exemplo, São Cipriano que pergunta: “Quem pode confiar que está na Igreja caso se separe da cátedra de Pedro sobre a qual a Igreja foi fundada?”. Não é assunto do presente trabalho, demonstrar o primado da Igreja de Roma, mas foi utilizado esse exemplo para demonstrar a importância de recorrer às fontes para esclarecer equívocos, corrigir caminhos e buscar a fé original em Cristo Jesus. Para terminar podemos observar a carta a Diogneto , que segundo Dom Fernando é um breve documentário da antiguidade cristã dedicado à Diogneto, um personagem pagão. A ideia é exprimir a inserção do cristão na sociedade, o cristão é a alma no mundo: Para simplificar, o que é a alma no corpo, são no mundo os cristãos. Encontra-se a alma em todos os membros do corpo, e os cristãos dispersam-se por todas as cidades do mundo. A alma, é verdade, habita no corpo, mas dele não provém. Os cristãos ......residem no mundo, mas não são do mundo. Invisível, a alma é cercada pelo corpo visível. Igualmente os cristãos, embora se saiba que estão no mundo, o seu culto a Deus permanece invisível. A carne odeia a alma e a combate sem haver sofrido injustiça, porque a impede de gozar dos prazeres; também o mundo odeia os cristãos, sem ter sofrido ofensa, por se oporem aos prazeres. A alma ama a carne que a odeia e os membros; assim os cristãos amam os que os detestam47.A carta a Diogneto nos demonstra como deve ser a vida de um cristão, sem apego aos bens materiais e ter uma vida voltada à oração e ao testemunho. Devemos estar em unidade com os irmãos e irmãs, respeitando as diferenças sendo a unidade na diversidade nos dizeres de santo Inácio. Os cristãos não devem se distinguir dos demais, devem estar junto de todos, mas, sempre com uma ideia bem clara na mente: “Estar na carne, mas não viver segunda a carne”.48Isto é, anunciar o Reino de Deus a toda criatura como o próprio Senhor Jesus Cristo ordenou aos Doze. Todos nós hoje, somos convidados a dar continuidade ao chamado do Senhor e sermos como a carta a Diogneto exorta: ser a presença de Deus no mundo.
CONCLUSÃO
O presente trabalho tentou analisar a relação entre fonte, história e Igreja. Observamos, então, que as fontes só podem ser reconhecidas como verdadeira se confiáveis com a cientificidade da história. De fato, a história contribuiu muito para chegarmos a textos pouco conhecidos e codificá-los. A história que nos dá as ferramentas necessárias para interpretar qualquer documento. Sem essas ferramentas podemos cair no subjetivismo e correr grave risco de nos perder. As fontes devem ser interpretadas com o auxílio das melhores ferramentas possíveis para que seu conteúdo seja corretamente degustado e entendido. A Igreja desde muito cedo foi favorável à utilização de métodos e abordagens para interpretar tanto a Sagrada Escritura quanto os Santos Padres. As fontes são de suma importância para que a Igreja não se perca no decorrer dos séculos do caminho orientado por Nosso Senhor. Sempre que surgem dúvidas e erro sao longo dos anos, volta-se à leitura dos primeiros cristãos, para que haja renovação a nos identificar e nos configurar com o caminho proposto pelo Cristo.
A credibilidade da fé passa por um processo de configuração a Cristo. Damos testemunho da testemunha. É o próprio Deus que dá testemunho de si mesmo. Uma das grandes questões da atualidade é o testemunho. Ou nós encontramos o caminho como critério efetivo de uma prática de fé ou caímos no descrédito. A Igreja fala e trabalha com a ideia do sagrado, mas quando não vive o que fala, gera escândalo. O papa Francisco tem chamado a atenção para esse assunto, quando do questionamento feito na Jornada Mundial da Juventude: Porque o padre tem que andar de ferrari? Porque os bispos tem que ficar em aeroportos? No encontro de novos bispos ele afirma: “É necessário que os bispos deixem de serem bispos de aeroporto se sejam bispos do povo”49.Porque um bispo precisa de uma mesa de 60 metros? Há questões que são escandalosas. A Igreja é chamada a seguir de fato os passos de Jesus Cristo, que se fez pobre (LG 8).É necessário que sempre voltemos aos primórdios da Igreja e corrijamos o caminho que estamos trilhando para nos configurar Àquele que nos chamou.
FONTES :
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Fernando Vanini de Maria
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