Uma das mais importantes condições para o diálogo é a humildade, reconhecimento das limitações de sua
própria compreensão de verdade e abertura para aprender com outras religiões. Este artigo explora a possibilidade de recuperar este tipo de humildade epistêmica de dentro da tradição cristã. Mesmo que a humildade
forma uma virtude central no cristianismo, ela é entendida em termos puramente espirituais, como atitude a ser
adotada em relação a Deus e em relação à verdade absoluta da doutrina cristã. Entretanto, este entendimento
espiritual da humildade pode também ser interpretado para cultivar maior senso de humildade doutrinária.
Diálogo com outras religiões, pode também servir para reforçar este sentimento de
humildade sobre as verdades do cristianismo.
Palavras-chave: Humildade, diálogo, cristianismo
Durante o século passado, assumiu-se a possibilidade do diálogo
entre as religiões com um conforto e uma constância que se podem
explicar melhor através de um sentido profundo e partilhado de sua importância. Com efeito, vê-se o diálogo inter-religioso como
a única alternativa construtiva em face da atitude tradicional da
rivalidade religiosa, do antagonismo e da agressão. Porém, deve-se
admitir que as religiões por sua própria natureza não se dêem ao
diálogo. A possibilidade do verdadeiro diálogo pressupõe certas
condições, condições estas que requerem reinterpretação profunda
das categorias e princípios religiosos tradicionais.
Uma das condições primárias para o diálogo é a humildade.
Qualquer diálogo envolve reciprocidade ou mutualidade que se
opõem radicalmente a uma posição de superioridade absoluta. A
humildade necessária para o diálogo inter-religioso pertence não
somente ao conhecimento que se tem da outra tradição, mas também da própria tradição. Inclui, portanto, o reconhecimento da
natureza limitada ou finita do próprio entendimento religioso da
verdade, ou pelo menos certa suspensão das reivindicações absolutas em torno da verdade. O diálogo pressupõe, então, certo grau
da humildade doutrinal, ou uma humildade em respeito às reivindicações sobre a verdade da própria tradição.
De fato, a virtude da humildade desempenha papel central na
maioria das tradições religiosas. Dentro das religiões monoteístas, a
atitude da humildade define a relação com Deus. É exatamente a fé
no Deus Criador, a fonte de toda bondade e verdade, que faz vãs todas as tentativas humanas de autoglorificação e de orgulho. A tensão
entre a obediência humilde a Deus e o orgulho fica nas entrelinhas
de toda a narrativa bíblica, desde história da queda de Adão e Eva
ao apelo de Paulo de “fazer nada por causa do egoísmo ou vaidade,
mas por humildade considerar os demais superiores a vós mesmos”
(Filipenses 2.3). O fim último destas tradições inclui um estado de auto-aniquilação total em face do absoluto. Pode-se dizer, então, (pelo
menos de modo provisório) que alguma atitude correspondente à
humildade pessoal ou espiritual define a relação com o absoluto.
Por outro lado, esta atitude da humildade espiritual, tida em comum pela maioria das tradições religiosas, não parece ter espontaneamente conduzido, ao longo da história, à maior abertura para com
as demais religiões. A razão para isso pode ser encontrada no fato de
que a humildade em geral se entende dentro de uma religião como
atitude que se adota para com, mas não sobre a verdade da própria
tradição. A humildade espiritual pode, com efeito, muitas vezes coincidir com muito orgulho doutrinal, onde as reivindicações de verdades
absolutas e a humildade pessoal muitas vezes se fortaleçam entre si.
Quanto mais absoluta determinada doutrina, tanto mais incondicional
o assento humilde ou a submissão incondicional da vontade e do juízo
que se requerem do fiel. Por outro lado, quanto mais humilde for a
submissão aos ensinamentos específicos, tanto mais pode-se investir
no sustento de sua verdade absoluta. Assim se pode explicar como foi
que o próprio Bernardo de Claraval, que pode ser considerado como
o mestre da humildade cristã, foi ao mesmo tempo um dos advogados
mais férvidos das cruzadas contra os muçulmanos e os judeus.
Embora a humildade espiritual nem sempre conduza à humildade doutrinal, há, porém, fontes dentro da tradição da humildade
que podem servir para desenvolver uma atitude mais humilde às
doutrinas e reivindicações de verdade, assim como uma atitude
mais aberta às outras tradições religiosas. De dentro da tradição
cristã, James Fodor, por exemplo, sustenta:
"De modo paradoxical, é a virtude cristã de humildade e não o ideal
moderno liberal democrático de tolerância que está verdadeiramente
aberta à alteridade do estrangeiro. Pois a humildade cristã cultiva um
amor para o particular numa maneira que não nega o estrangeiro ao
esconder de si mesmo suas próprias tentações à coerção, seu próprio
desejo para o poder, sua propensão a pecar."
Ao enxergar o sentido e o uso do conceito de humildade no
cristianismo, tentaremos indicar os recursos disponíveis na própria
tradição para ir de uma compreensão puramente espiritual da humildade a uma compreensão mais doutrinal da mesma, que pode
gerar maior receptividade à verdade das outras tradições religiosas.
Ao mesmo tempo em que ela é condição para o diálogo, a atitude
da humildade doutrinal pode também surgir como resultado do
diálogo. E, de forma breve, iremos também nos referir ao modo
no qual o diálogo com o budismo pode lançar nova luz sobre o
entendimento cristão da humildade.
A Virtude Cristã da Humildade
Raramente se considera o cristianismo uma religião humilde.
Ao contrário, associa-se a religião cristã com arrogância religiosa, com triunfalismo e com a confiança absoluta na verdade superior de
seus ensinos e práticas. Porém, a humildade constitui virtude chave
na espiritualidade e ética cristãs. Para Santo Antão, a humildade
representa “a primeira de todas as virtudes” e para Agostinho,
é ela “o sumo completo da medicina necessária para nos curar.”
Dentro da tradição monástica ocidental, o caminho de ascensão a
Deus se desenvolveu em termos dos “doze passos da humildade”.
A humildade se mostra como tema central nas obras da maioria
dos místicos cristãos, de Gregório, o Grande ao autor anônimo da
Nuvem de Não-saber, e dos místicos carmelitas como Teresa de Ávila e João da Cruz aos intercâmbios espirituais entre Francisco de
Sales e Jeanne de Chantal. Mesmo em momentos nos quais parece
que a importância da humildade foi mais ou menos ocultada sob
o triunfalismo e poder cristãos, ela continuou a sustentar as obras
de grandes teólogos, como Tomás de Aquino e os fundadores de
novas ordens religiosas, como Inácio de Loyola. E mesmo que se
pense que a noção da humildade seja profundamente antitética
à ênfase moderna na autonomia humana e excelência individual,
ainda figura conspicuamente nos escritos de autores modernos da
espiritualidade como Simone Weil e Jean-Louis Chrétien.
Na espiritualidade cristã, a humildade constitui um caminho rumo à
experiência de Deus, como também à experiência de si. Bento, fundador
do monasticismo ocidental, desenhou o caminho espiritual em termos
de ascensão por doze passos de humildade,enquanto Bernardo, o reformador, retraça estes passos numa ordem reversa, analisando o processo
através do qual a alma se torna emaranhada numa situação cada vez
mais profunda de orgulho. Todos os místicos salientam a importância
da humildade e auto-aniquilação como condição necessária para o crescimento espiritual. Teresa de Ávila diz “por causa de todo o edifício ser
fundado na humildade, quanto mais nos aproximamos a Deus, tanto
mais se deve desenvolver esta virtude: se não, perder-se-á tudo”
. Considera-se que a união com Deus coincide com a aniquilação completa de
si. Isto se exprime, por exemplo, nas afirmações de João da Cruz, que
afirma: “quando ele ficar reduzido a nada, o maior grau da humildade, a
união espiritual entre sua alma e Deus, acontecerá”. Enquanto expressão
e fruto da união com Deus, a humildade funcionou na tradição cristã
também como critério para distinguir entre a verdadeira experiência
de Deus e a experiência do diabo. Deste foi dito que “deixa atrás dele
a ansiedade, e pouca humildade, e não faz muito para preparar a alma
para os efeitos que se produz quando algo vem de Deus” . Ainda que se
tenha adimitido que o caminho da humildade somente pode ser atingindo em seu grau mais pleno na vida monástica, todos os cristãos são, no
final das contas, chamados a cultivá-la. Ao conceber a humildade como
virtude cristã fundamental, ou como o próprio “fundamento do edifício
cristão”, Tomás de Aquino a aborda em primeiro lugar a partir da
perspectiva de auto-controle ou o controle dos desejos:
"A humildade consiste fundamentalmente no apetite, na medida que se
constrange a impetuosidade da alma, para que ela não tenda excessivamente para as coisas maiores. Mas tem sua regra no conhecimento, a saber, que
um homem não deve se estimar maior do que ele é. E o princípio de cada
um destes elementos é a reverência que alguém tem para com Deus10."
Para Aquino a perfeição da humildade é, no final das contas,
graça, dom de Deus (a fim de que não se torne uma oportunidade
para o orgulho).
A virtude cristã da humildade se fundamenta no exemplo e no
ensino de Jesus Cristo. Jesus veio ao mundo numa forma humilde,
viveu uma vida humilde de submissão total à vontade de Deus, e se
submeteu à humilhação suprema da morte na cruz. Disse aos seus discípulos: “aprendei de mim, pois sou manso e humilde de coração, e
encontrareis descanso para as vossas almas” (Mateus 11.29) e a primeira das bem-aventuranças é direcionada aos humildes ou “aos pobres
de espírito” (Mateus 5.3). Pode-se ver que o ensino de Jesus inclui
certa reviravolta nas concepções humanas de orgulho e de honra.
Na espiritualidade cristã, a humildade foi vista como imitação
de Cristo, ou participação na vida de Cristo. Em A Imitação de Cristo, Tomás Kempis coloca na boca de Jesus estas palavras:
" Eu me tornei o mais humilde e menor de todos os seres humanos, de
sorte que vós pudésseis vencer o vosso orgulho através da minha humildade. Vós que sois nada mais que cinzas, aprendei obedecer: vós que
sois nada mais do que a poeira da terra, aprendei humilhar-se a colocar-se a baixo dos pés dos outros por causa de mim. Aprendei quebrar
vossa vontade a se submeter a toda subjeção."1
E, ainda, a espiritualidade jesuíta considerou a humildade como
o meio para experimentar a união plena com Jesus Cristo12
.
Um dos grandes paradoxos da humildade cristã é que ninguém
pode plenamente imitar a humildade de Jesus, nem atingir a plenitude da humildade que Cristo representa. Embora esta crença cristã
que “só Deus mesmo é humilde” possa parecer algo que desanima,
pode também efetuar um aprofundamento da humildade ao “renunciar a idéia vã de um estado máximo da humildade à qual os nossos
esforços podem nos conduzir”, como o diz Jean-Louis Chrétien13
. A
vocação cristã então é ficar humilde de sua própria humildade.
Humildade e Doutrina
Ao mesmo tempo em que a humildade representa, em primeiro lugar, virtude espiritual, uma função da relação entre o fiel
e Deus, define também a relação do fiel para com a doutrina no
cristianismo. Na medida em que as definições foram tidas como
expressões permanentes e imutáveis da verdade suprema14, entendeu-se a fé como submissão humilde da própria vontade e juízo
aos ensinamentos da tradição. Da perspectiva da compreensão tradicional proposicional da verdade, a humildade passa a ser, então,
atitude que se toma com respeito às verdades doutrinais. Embora a
tradição católica chegasse a reconhecer certa hierarquia de verdades (dependendo da sua relação com a base da fé cristã)15 e suportar
certo grau de dissensão, o objetivo final é ainda a “submissão da
vontade e do intelecto”16. Esta atitude, chamada de “obsequium religiosum” significa, segundo Francis Sullivan, “um esforço honesto e sustentável de vencer qualquer opinião contrária que posso ter, e
conseguir um consentimento sincero da mente com esta doutrina”17.
A não-conformação a algumas doutrinas da Igreja pode tornar-se
oportunidade para a humildade, ou pelo reconhecimento humilde
da própria falta da humildade. Ao longo da história as doutrinas,
às vezes, funcionavam como os critérios contra os quais se mediu a
própria humildade. Agostinho, por exemplo, considerou o orgulho
como “a mãe de todos os hereges” e acreditava que “se não houvesse orgulho, não haveria hereges, nem cismáticos, nem circuncidados, nem adoradores das criaturas ou de imagens”18. Considerou-se,
assim, todo desvio consciente da Igreja como falha da humildade.
É através do acesso humilde ao entendimento e às direções de uma
tradição que os fiéis podem conseguir a libertação do orgulho e da
autonomia intelectuais. Dentro do cristianismo, a humildade foi,
então, tradicionalmente vista como atitude a ser tomada com respeito às doutrinas. Entretanto, elas mesmas nunca foram objeto da
humildade. Acreditou-se que elas participam da verdade definitiva
da própria revelação e, enquanto tais, encontram-se além da reflexão crítica e humilde. Em si, não se pode dizer que o entendimento
tradicional religioso (ou pelo menos cristão) da humildade conduz
ao verdadeiro diálogo.
O diálogo necessita do cultivo da humildade não só com respeito a,
mas também sobre as doutrinas e reivindicações de verdade da própria
tradição. Tal humildade doutrinal ou epistêmica vem se desenvolvendo
paulatinamente no cristianismo como resultado da integração da modernidade e da consciência histórica na auto-compreensão cristã. Desenvolveram-se novas teorias da doutrina, que reconheceram a particularidade histórica e cultural – e, portanto, os limites – de formulações
doutrinais específicas. Ao reconhecer que os “dogmas são proposições”
e que “as proposições só têm sentido dentro dos contextos nos quais
foram definidas”, Bernard Lonergan constatou que “o que é permanentemente verdadeiro é o sentido do dogma no contexto no qual foi
definido”19. A fim de manterem sua verdade, as doutrinas precisam
então ser continuamente reformuladas e adaptadas. Esta atitude com
a doutrina permite humildade, se não em relação às próprias verdades
doutrinais, pelo menos com respeito à maneira na qual foram formuladas ao longo da história. Muitas vezes, esta atitude em relação às doutrinas conduziu ao diálogo imediato e espontâneo com outras religiões. A necessidade de reformular as doutrinas nos contextos culturais diferentes precisa também de compromisso criativo com as formas
simbólicas e rituais que tradicionalmente formaram aquela cultura.
Certa base doutrinal para esta atitude de humildade com relação às doutrinas pode se encontrada na escatologia cristã. A ênfase
na natureza provisória de todas as realidades temporais influenciou
também a autocompreensão cristã da doutrina. Por exemplo, o documento do Vaticano II, Dei Verbum (8), afirma:
A Tradição progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo.
Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras
transmitidas… Isto é, a Igreja, no decurso dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem
as palavras de Deus20.
Pode-se, então, ver que a escatologia cristã reforça a compreensão moderna da natureza histórica e condicionada de todas as
reivindicações de verdade. A admissão humilde da possibilidade de
crescimento na verdade pode ser vista como abertura das portas
ao diálogo com outras religiões. No final do século vinte, o documento do Vaticano Diálogo e anúncio relaciona a abertura à verdade
de outras religiões imediatamente à compreensão escatológica da
plenitude da verdade, ao constatar que:
"A plenitude da verdade recebida em Jesus Cristo não dá aos cristãos
individuais a garantia que eles compreenderam aquela verdade plenamente. Em última análise, a verdade não é uma coisa que possuímos,
mas uma pessoa por quem nós nos permitimos ser possuídos. Este é um
processo sem fim. Ao invés de guardarem sua identidade intacta, os
cristãos devem estar prontos a aprender e receber de e através outras
pessoas os valores positivos de sua tradição"21
.
Não é, então, surpreendente que muitos teólogos cristãos envolvidos na teologia das religiões ou no diálogo com outras religiões
focalizem na noção da orientação dinâmica ao cumprimento futuro
do Reino de Deus como a base e o horizonte últimos para o diálogo
com outras religiões. O recém-falecido jesuíta belga e conhecido
teólogo das religiões Jacques Dupuis diz:
"Talvez não haja nada que forneça ao diálogo interreligioso base teológica tão
profunda, e motivação tão verdadeira, como a convicção de que, apesar das
diferenças que os distinguem, os membros de tradições religiosas diferentes,
sócios do Reino de Deus na história, caminham juntos rumo à plenitude do
Reino de Deus, rumo a nova humanidade desejada por Deus para o final dos
tempos, reino este do qual eles são chamados a ser co-criadores com Deus"22.
É a tensão entre o “já” da plenitude da revelação e o “ainda
não” de nossa compreensão dela que pode gerar a humildade doutrinária ou humildade sobre a nossa compreensão da doutrina e
sobre a capacidade da doutrina de captar a plenitude da verdade.
Por sua vez isto possibilita o diálogo verdadeiro.
Uma das expressões mais paradoxicais desta humildade doutrinal pode ser encontrada na noção de Karl Rahner do “cristão anônimo”. Mesmo que muitas vezes esta expressão seja considerada como
manifestação clara de arrogância e triunfalismo cristãos, o próprio
Rahner a entendeu como expressão da “maior humildade”:
" Os não-cristãos podem pensar que é uma presunção para o cristão julgar
que tudo o que é de bom ou restaura (pela santificação) é o fruto em
cada homem da graça de seu Cristo, e interpretá-lo como cristianismo
anônimo; podem pensar que é uma presunção para o cristão considerar
o não-cristão como um cristão que ainda não chegou reflexivamente a
si mesmo. Mas o cristão não pode renunciar esta “presunção” que é de
fato a fonte da maior humildade, tanto para ele mesmo como para a Igreja.
Pois é uma admissão profunda do fato que Deus é maior do que o homem e a Igreja. A Igreja sairá no encontro com o não-cristão de amanhã
com a atitude exprimida por São Paulo, quando disse “O que vós não
sabeis, mas ainda adorais (mas ainda adorais!), isto eu vos anuncio” (At
17,23). Com tal base se pode estar tolerante, humilde, mas firme para
com todas as religiões não-cristãs"23.
Para Rahner, a humildade da expressão “cristão anônimo” se
encontra então no reconhecimento da possibilidade da presença
salvífica de Deus além dos limites da tradição cristã. Pode-se, no
entanto, ir além disso para entender a expressão à luz da particularidade necessária de qualquer concepção da verdade e da salvação.
O próprio Rahner salientou que o termo foi explicita e conscientemente próprio a uma confissão, a ser utilizado por cristãos para
poderem chegar a uma compreensão maior da salvação a partir de
uma perspectiva teológica cristã. Isso pode refletir uma consciência
humilde da contingência e da particularidade históricas e conceituais de toda compreensão do outro. Embora esta interpretação provavelmente vá além das intenções de Rahner, ela abre o caminho
para maior grau da humildade, não somente rumo à transcendência
de Deus e à atividade salvífica de Deus no mundo, mas também
sobre a própria compreensão teológica e doutrinária de Deus e da
verdade definitiva.
Humildade e Diálogo
Mesmo que a humildade espiritual, não necessária nem automaticamente, conduz à humildade doutrinal, pode-se dizer que a própria
disciplina da humildade cultiva as atitudes que conduzem ao diálogo
com outras tradições religiosas. Com efeito, os doze passos de humildade de Bernardo de Claraval culminam nos três passos da verdade
em relação consigo mesmo, com o outro e com a realidade definitiva.
Focalizaremos brevemente em cada um destes passos da verdade a
partir da sua relevância para o diálogo com outras religiões.
O primeiro passo da verdade considera o verdadeiro autoconhecimento24. Dentro do cristianismo, a humildade não é só um
meio para atingir a experiência de união com Deus, mas também a
expressão da verdade definitiva sobre si mesmo. Bernardo fala do
verdadeiro autoconhecimento como “aquele auto-exame completo
que faz um homem desprezível ao seu próprio ver”25
. E o autor de
A nuvem de não-saber descreve a humildade como “o conhecimento
e a experiência verdadeiros de ti mesmo como és, miserável, uma
sujeira, muito pior do que nada”26
. Estas concepções de humildade
sublinham o sem-valor radical e total do ser humano, não em comparação com alguma instituição humana ou temporal, mas num
sentido absoluto, em relação com Deus. O maior obstáculo ao verdadeiro autoconhecimento é o orgulho. É o orgulho mesmo que “escurece o olho da mente e joga uma sombra sobre a verdade de
sorte que … não se mais vês, não mais podes se sentir tal como
és real ou potencialmente: mas ou imaginas que és ou esperas que
serás tal como gostarias de ser”27
. Esta atitude de orgulho também
se exprime na relação com outras pessoas. No quarto passo de
orgulho, Bernardo critica a maneira na qual uma pessoa orgulhosa
entra em diálogo com outras:
" As opiniões vão voando por aí, as palavras ponderosas ressoam. Ele
interrompe um questionador, responde a um que nada pergunta. Ele
mesmo coloca perguntas, ele mesmo as resolve, interrompe as palavras não-completadas de outro locutor… Ele não se interesse em te
ensinar, ou de aprender de ti o que ele não sabe, mas em saber que
sabes que ele sabe."28
O cultivo da atitude oposta, a humildade, gera paciência, abertura e receptividade necessárias para qualquer diálogo. Ao cultivar
a humildade, muitos escritores cristãos sublinham a importância de
desenvolver alta estima para com os outros em comparação com si
mesmo. Tomás de Kempis, por exemplo, constata que “nada é tão
benéfico como o conhecimento verdadeiro de si mesmo, o que produz um autodesprezo muito sadio. Sempre pensa bem dos outros,
ao mesmo tempo em que tens a si mesmo como nada: isto é a sabedoria verdadeira e conduz à perfeição”29
. Tal atitude certamente representaria importante corretivo à arrogância e à autojustificação,
as quais, tradicionalmente, governaram as atitudes para com fiéis de
outras tradições religiosas.
O segundo passo da verdade diz respeito à verdade sobre
o outro. Aqui Bernardo diz que a humildade conduz ao amor
verdadeiro pelo outro: “A verdade dá amor àqueles para quem
é revelada. Mas revela-se aos humildes, e por isso dá amor aos
humildes”30. A relação direta entre a humildade e o amor já se
desenvolveu com personagens como Agostinho, que diz que a
humildade conduz ao “mais carinhoso tipo de amor para os seus
companheiros, um amor sem motivos, sem vaidade, sem arrogância, sem decepção”31
. Este amor implica para Bernardo não
somente atitude de auto-doação incondicional, mas também a
capacidade de empatia para com o outro:
" Os misericordiosos compreendem rapidamente a verdade nos seus vizinhos e estendem seus próprios sentimentos a eles, e os confortam
através do amor, a fim de que eles sentem suas alegrias ou problemas
como os seus próprios. São fracos com os fracos; queimam com os
ofendidos. Alegram-se com aqueles que se alegram, e choram com
aqueles que choram (Rom. 12,15)".32
A humildade aumenta não somente o entendimento afetivo, mas também cognitivo do outro. Entretanto, este amor e
empatia não implicam necessariamente no endosso da posição
do outro. Com efeito, o próprio Bernardo avisa que, à luz
do absoluto, “todos são falsos” e “todos são fracos, todos são
miseráveis e impotentes, que não podem se salvar nem salvar
outros”33. Mas a compreensão do outro que nasce do amor é,
sem dúvida, mais conducente ao diálogo do que as atitudes de
inimizade e suspeita que tradicionalmente governam a relação
entre as religiões.
O terceiro e último passo da verdade para Bernardo trata de
chegar à verdade do absoluto ou à própria verdade definitiva. Ao
ter vencido “os três obstáculos que vêm da ignorância, da fraqueza
e da teimosia”, chega-se lá no “êxtase da contemplação”34. Como
acontece em grande parte da tradição mística do cristianismo, Bernardo descreve esta experiência em termos apofáticos:
" Lá ela vê coisas invisíveis, escuta palavras inexpressíveis, que não é lícito
para um homem dizer. Vão além de todo aquele conhecimento que a
noite mostra à noite; mas dia para dia a fala se articula, e é lícito falar
da sabedoria entre os sábios e comparar as coisas espirituais com as
pessoas espirituais.35
No terceiro [passo] são levados aos mistérios da verdade e dizem, Meu
segredo para mim, meu segredo para mim. "36
Estas metáforas apontam para o fato de que a verdade definitiva se encontra além das concepções e expressões humanas. Só se
pode abordá-la através da negação de todas as categorias finitas e
imagens fixas do absoluto. Isso então também implica certo grau de
humildade doutrinal ou reconhecimento da limitação das expressões
doutrinais para captarem a verdade última. Para Nicolau de Cusa, tal
humildade em respeito da própria capacidade de entender o absoluto
se torna ela mesma condição para atingir esta verdade:
" Os mistérios maiores e mais profundos de Deus, embora escondidos
dos sábios, são revelados pela fé em Jesus aos pequeninhos e humildes
que caminham pelo mundo... Já que não se pode conhecer Deus neste
mundo, onde a razão, a opinião e o ensino nos conduzem por meio de
símbolos do melhor conhecido ao desconhecido, só se conhece Deus lá
onde as convicções acabam e a fé entra".37
A humildade doutrinal ou a humildade em respeito da verdade
definitiva das próprias formulações doutrinais formam, então, parte
integral da tradição mística do cristianismo, como aliás da maioria
de formas do misticismo. Tudo isso ajuda muito a explicar por que
aqueles mais comprometidos com a prática do diálogo foram muitas
vezes monges, pessoas empenhadas no fundo da sua prática diária
com o cultivo da atitude de humildade e sintonia com a transcendência definitiva de Deus. Os primeiros pioneiros do chamado diálogo
Oriental-Ocidental, Henri Le Saux, Bede Griffiths e Thomas Merton
foram todos monges beneditinos. E alguns dos esforços mais sistemáticos e duráveis para um encontro contínuo com fiéis de outras
tradições religiosas têm vindo do Movimento para Diálogo Intermonástico (MID em inglês ou DIM em francês). Vários elementos podem explicar a abertura monástica ao diálogo com outras religiões:
ênfase comum na pobreza e renúncia, práticas ascéticas semelhantes,
a importância das virtudes monásticas como a hospitalidade, dentre
outras.38
Mas é a atitude da humildade que atravessa todas estas práticas e ensinos religiosos que se pode considerar como o fundamento
mais importante, tanto religioso como ontológico, para a abertura à
verdade de outras tradições religiosas.
Diálogo sobre a Humildade
Ao mesmo tempo em que é condição para o diálogo, a humildade doutrinal pode acontecer também como resultado do próprio
diálogo. Muitas vezes, é através do encontro com a verdade da outra religião que alguém se torna consciente da possibilidade de crescimento e, assim, da natureza inacabada do próprio entendimento
da verdade. Raimon Panikkar, por exemplo, diz:
" No diálogo temos constantemente uma lembrança da nossa temporalidade, nossa contingência, nossas próprias limitações constitutivas. A
humildade não é em primeiro lugar uma virtude moral, mas sim uma
virtude ontológica; é a consciência do lugar do meu eu, a veracidade de
aceitar minha situação como ela é, ao saber, que sou um ser situado, um
ponto de vista no real de uma visão, uma existência."39
_____________________________________________________________
1
James FODOR. Christian Hermeneutics: Paul Ricoeur and the Refiguring of Theology, p.20
2
Santo ANTÃO. The Philokalia, p.341
3
Santo Agostinho. Sermons, Sermão 142 (Comentário sobre João 14,16), §11
4
São BENTO. A regra de São Bento. Petrópolis: Vozes, 1993.
5
TERESA DE ÁVILA. The Life of Saint Teresa by Herself, p.85
6
CROSS, S. J. The ascent of Mount Carmel. Livro II, cap. 7, 11. p.125
7
TERESA DE ÁVILA. Op. Cit., p.108
8
O terceiro passo da humildade envolve a submissão a um mestre espiritual.
9
TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologica, II-II, q.161, art.5
10 Ibid.
11 Tomás de KEMPIS. A Imitação de Cristo, Livro 3, cap. 13.
12 INÁCIO DE LOYOLA. Os exercícios espirituais, n. 167m.
13 Jean-Louis CHRÉTIEN. Le regard de l’amour, p.18
14 O cristianismo primitivo chegou a definir as doutrinas como proposições “que foram cridas em todos
os lugares, sempre, e por todos” (Nota da autora: esta afirmação é atribuída a Vincente de Lerins,
434).
15 A. FLANNERY. Decree on ecumenism: Vatican II: Unitatis Redintegratio, 11, p.462.
16 PAULO VI. Lumen Gentium ,25
17 Francis SULLIVAN. Magisterium: Teaching Authority in the Catholic Church, p.164
18 AGOSTINHO. De vera religione, xxv, 47, p.43.
19 Bernard LONERGAN. Method in Theology, p.325.
20 PAULO VI. Dei Verbum, p.754.
21 Cf. CONSELHO PONTIFÍCIOPARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO, n. 49
22 Jacques DUPUIS. Towards a Christian Theology of Religious Pluralism, p.346. Outro teólogo que sublinha
a noção do Reino de Deus como a base e o foco para o diálogo entre as religiões é Paul Knitter.
Knitter, porém, foi muito além da maioria dos teólogos, e do ensinamento oficial da Igreja Católica,
ao acentuar a diferença entre a economia da graça do Reino de Deus e “aquela que se faz conhecida
pela Palavra encarnada em Jesus (no qual, é claro, o Espírito também atuou)”. Paul KNITTER, Jesus and
the Other Names, p.113.
23 Karl RAHNER. Theological Investigations, vol. 5, p.134
24 No assunto de auto-conhecimento, podemos contrastar a humildade sem mais nada com seu antecedente histórico na Grécia antiga: sophrosune, ou moderação, a qual termina muito aquém desta
chamada à auto-aniquilação.
25 Bernardo de CLARAVAL. The Steps of humility, cap. 1, 2.
26 The Cloud of Unknowing, p.181.
27 Bernardo de CLARAVAL. Op. Cit., cap. 4, 14
28 Ibid, cap.13, 41.
29 Tomás de KEMPIS. A Imitação de Cristo, livro 1, cap.2,4
30 Bernardo de CLARAVAL. Op. Cit., cap. 2,5.
31 Ibid, cap. 12, p.421
32 Ibid, cap. 3.
33 Ibid, cap.5,16.
34 Ibid, cap. 6,19.
35 Ibid, cap. 7,21.
36 Ibid, cap. 8,23.
37 NICOLAU de Cusa. On Learned Ignorance, 245.
38 Pierre-François de Bethune, uma das personagens chaves no diálogo intermonástico, fala da importância
da hospitalidade monástica para gerar uma abertura e receptividade para membros de outras religiões.
Em Pierre-François BETHUNE. Par la Foi et l’hospitalité. Clerlande: Publications de Saint-André, 1997.
39 Raimon PANNIKAR. The Intra-Religious Dialogue, p.37
Bibliografia :
AGOSTINHO. De vera religione. Chicago: Henry Regency
Company, 1991.
AGOSTINHO. Sermons. In: The Works of Saint Augustine: Translation for
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Fernando Vanini de Maria
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