TEORIA DO CONHECIMENTO EM SÃO BOAVENTURA

 


TEORIA DO CONHECIMENTO EM SÃO BOAVENTURA.

Para São Boaventura (1221-1274) existe a certeza de que a pessoa humana é capaz de conhecer e que existe algo para ser conhecido. Essa capacidade ilimitada (Capax Dei) da pessoa humana, para conhecer tudo, a coloca em grau privilegiado na escala da criação. Ao descrever diferentes níveis no processo do conhecimento humano, o autor sugere definições em torno do tema que parecem intercambiar o simbolismo da mística (Pseudo-Dionísio), o esforço da busca racional do homem (filosofia grega) e as verdades reveladas pela fé (Teologia cristã). Seu posicionamento acadêmico valendo-se da mística revela uma postura autônoma em relação às autoridades acadêmicas de sua época. O conhecimento sensível, o conhecimento iluminativo e o conhecimento científico são resultados da capacidade infinita da mente humana de conhecer-se, conhecer a realidade que a cerca, e elevar-se, fluir para o ôntico fontal, origem e termo de todo conhecimento que é Deus, através dos seus vestígios, imagens, sombras e sinais impressos e expressos no mundo. A essa experiência cognitiva de outra ordem, o amor, o autor entende que seja o estágio mais elevado de conhecimento que a mente humana pode fazer, o apex mentis (ápice da mente). Palavras-chave: Filosofia. Teoria do Conhecimento. Pensamento Franciscano.

Introdução O modelo epistêmico, adotado por Boaventura de Bagnoregio, é bastante peculiar. Num momento histórico, onde a proposta central de síntese conceitual era privilégio e foco da Teologia, e, embora a visão que a tradição filosófica tem de sua compreensão em torno do conhecimento, considerando-o mais teólogo e místico do que propriamente alguém que contribuiu para a Filosofia, essas percepções em si, não representam necessariamente um ponto final na discussão ou uma compreensão acurada ou adequada da questão. A passagem pela academia como professor, na Universidade de Paris, foi bastante rápida, e pela função que assumiu na Ordem Franciscana, São Boaventura opta ou é compelido a escrever, mais tarde, atendendo às atividades atinentes ao governo da Ordem Franciscana e da própria Igreja enquanto Cardeal. Mas isso, em si, não significa que não tenha considerado algumas questões importantes para a Filosofia, e, dentre elas, também problematizou como se dá o processo do conhecimento humano, quais são seus alcances, seus limites e possibilidades. Para São Boaventura, não há dúvida sobre a capacidade humana de conhecer, inclusive é ela que eleva o homem a uma condição privilegiada dentro da criação. Mas apresenta alguns elementos bastante peculiares que promovem o diálogo e até mesmo sínteses entre autores de tempos diferentes. A contribuição de São Boaventura vai desde a problematização em torno da capacidade humana de conhecer, seus limites, suas possibilidades e o acesso ou não ao objeto visado pelo conhecimento humano. Na metade do século XIII, período em que houve transformações significativas no campo filosófico, teológico e acadêmico, de modo geral, era bem comum que o mapa conceitual fosse de matriz platônica, neoplatônica ou agostiniana. Devem ser consideradas aqui também todas as polêmicas institucionais, acadêmicas e culturais em torno da reinserção acadêmica dos textos aristotélicos(2) e as consequências decorrentes dessa atividade, que acabou marcando profundamente a cultura do tardomedievo, décadas e séculos adiante. Isso não significa que não houvesse divergências e 

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 2 Cf. DE BONI, L. A Entrada de Aristóteles no Ocidente Medieval. Porto Alegre: Est Edições/Ulysses, 2010.

incontáveis polêmicas a respeito da compreensão mais adequada de como ocorre o conhecimento e quais são suas bases, fundamentos e garantias. Aos poucos, Aristóteles foi sendo redescoberto e isso gerou infindáveis disputas conceituais, tanto no sentido de quais eram as melhores estratégias para revisitar os textos aristotélicos de forma a acolher e interpretar o que o Estagirita estava de fato propondo, bem como confrontar as diversas leituras, sobretudo dos autores árabes, entre os principais, Avicena, Averróis3 e Siger de Brabante4 , que ora elevavam Aristóteles a um patamar de única verdade, ora interpretavam suas posições com viés teológico, como verdades distintas (plano da vê ou plano da razão) ou mesmo como tema de oposição inconciliável entre Filosofia e Teologia, fé e razão, etc. Sendo que, em ambos os casos, havia uma grande possibilidade de erros interpretativos, ou divergências intransponíveis no sentido de conciliar ou não as convicções de fé e as convicções filosóficas e científicas. As contendas ou divergências conceituais no campo filosófico não eram apenas comuns entre teóricos ou pensadores cristãos e árabes, cristãos e judeus, cristãos e defensores da filosofia pagã, ou mesmo entre tentativas diversas de conciliação entre paganismo e cristianismo, fé e razão, islamismo e paganismo, enfim, como já dito,

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3 ULLMANN sugere que Averrois (Averróes) que viveu entre 1126-1198, autor de inúmeras obras e comentários de Aristóteles, apresentou tanto os aspectos positivos e os negativos da filosofia do Estagirita (2000, p. 164). Mas talvez o principal empecilho conceitual para o século treze, grifo meu, seja a distinção clara entre o mundo e Deus. O que nele se deve combater, segundo os escolásticos e no que afirma Ullmann, é a imortalidade pessoal da alma humana, porque admite um só intelecto agente universal. Isso tira do indivíduo a responsabilidade e o livre-arbítrio; negando a imortalidade da alma, toda espécie de sentido à religião de Cristo (Cf. RENUCCI, P. L´aventure de l´humanisme européen au Moyen Âge. Paris, 1956, p. 86, citado por Ullmann, ibid.). 4 É importante considerar que Siger de Brabante (1240-1284) , ao sugerir a teoria da dupla verdade, suprimiu a necessidade de relação, interação ou mesmo integração entre verdade filosófica e verdade teológica, entre fé e razão. Isso porque ambas movem-se em planos diferentes. Com a proibição, em 1270, por Estevão Tempier, arcebispo de Paris, do averroísmo e algumas teses tomistas o mundo cristão dividiu-se em dois: os franciscanos que buscaram retomar a matriz platônico-agostiniana e os dominicanos que defendiam o tomismo. Isso é plenamente evidente em autores como Egídio Romano Mateus de Acquastra, entre outros. Essas motivações precisam ser consideradas, do contrário não entendemos a real motivação de ataque de São Boaventura aos intérpretes de Aristóteles, sobretudo os de vertente árabe. O momento cultural, teológico e filosófico, sobretudo quando Boaventura proferiu as Collationes, era de certa hostilidade entre as correntes teológicas e filosóficas, mesmo dentro do pensamento cristão, como acima descrito, bastante diferente daquilo que aconteceu na década de 40 e 50, do mesmo século, onde os mendicantes (franciscanos e dominicanos) estavam mais ou menos alinhados em termos teóricos. Já no final da década de 60 e início dos anos 70, do século XIII, as circunstâncias parecem levar para outra realidade e que mais tarde vai acentuada essa distinção, basta analisarmos João Duns Scotus, Guilherme de Ockham, Pedro de João Olivi, entre outros.  


inúmeras divergências filosóficas e teológicas, sobretudo no campo da teoria do conhecimento, eram comuns, mesmo entre pensadores cristãos católicos, o que é bastante compreensível. É nesse contexto de reencontro com o pensamento e os textos aristotélicos que Boaventura de Bagnoregio tece sua compreensão a respeito do processo do conhecimento humano. Há elementos inovadores naquilo que propõe o Doutor Seráfico. Embora não pareça relevante, num primeiro momento, até porque tradicionalmente o seu posicionamento seja quase mais reconhecido no campo teológico, a relação que Boaventura estabelece com o problema de fundamentação do conhecimento é inovadora não apenas no aspecto geral, mas em detalhes bem pontuais. Neste artigo, pretende-se situar o propósito de São Boaventura, em relação ao limite e a possibilidade do conhecimento humano, depois avaliar a contribuição filosófica da visão do autor em relação aos diferentes tipos de conhecimento que a pessoa humana pode ter e brevemente analisar como essa atitude boaventuriana contribui para o desenvolvimento do pensamento acadêmico no período imediatamente superior ao seu tempo. 1. Matriz Filosófica de São Boaventura Não há interesse nesse artigo de rediscutir se Boaventura foi ou não filósofo5 , se sua opção pela Teologia e seus últimos discursos tenham deixado a imagem de que ele fosse antipático à Filosofia, ou até mesmo que seu trabalho era uma forma direta e indireta de ataque ao saber racional. Na verdade, o interesse central do Doutor Seráfico por duas razões era mais ligado ao saber teológico. A primeira razão era justamente que, no período histórico em que ele estudou, lecionou e produziu intelectualmente era o momento de síntese

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 5 Há muitas controvérsias a respeito de que se há ou não uma Filosofia em São Boaventura, o embate mais clássico foi estabelecido entre Steenberghen e Gilson, e que SARANYANA (2006, p. 294-296), sugere que tenhamos um olhar ponderado entre ambos. Para Saranyana, citando Copleston, “História de la filosofia”, na visão de Fernand Van Steenberghen em seu texto “La filosofia nel XII secolo” São Boaventura é apresentado apenas como teólogo, sem originalidade filosófica. Enquanto Gilson no texto “A Filosofia de São Boaventura” teria exagerado a oposição e a aversão de São Boaventura a Aristóteles, e teria sido demasiadamente otimista na apresentação da filosofia boaventuriana como heterônoma diante da Teologia. No entendimento de Saranyana, ibid., seguindo as pegadas de Copleston (1975), convém um olhar mais cuidadoso e mais equilibrado sobre a questão. 

teológica e não filosófica. Notamos isso até porque no período imediatamente posterior, início da década de 60, no século XIII, começa o magnífico trabalho de Tomás de Aquino que conhecemos hoje como Suma Teológica. E, em segundo lugar, a opção de vida e as atribuições governamentais assumidas por São Boaventura, seja como Geral da Ordem dos franciscanos, ou como Cardeal, mais tarde, além de absorverem-lhe o tempo e energias, também demandavam um tipo específico de escrita e abordagem dos assuntos tanto no campo filosófico como no teológico. No caso da Ordem Franciscana, era necessário ter o cuidado conceitual de não abandonar os princípios fundamentais deixados e vividos por São Francisco de Assis. E sabemos que o santo de Assis não foi propriamente um teórico, inclusive no campo teológico. Preocupou-se muito mais em viver o Evangelho do que propriamente criar teorias a respeito. São Boaventura, como refundador da Ordem, não podia fugir disso. No caso da função de Cardeal, a condição não era muito diferente, na medida em que era preciso buscar um sentido e uma retomada daquilo que é mais fundamental para a Igreja, que, de algum modo, assemelhava-se, de muitos modos, ao próprio problema da Ordem Franciscana: viver conforme os ditames do Evangelho. Assim, Boaventura não podia ter escolhido outro caminho, pelo tempo e pela função que lhe foi atribuída. Por outro lado, pode ser enganoso pensarmos que sua contribuição para a Filosofia foi nula ou reacionária. Ao aderir ao que podemos denominar como neoplatonismo cristão, faz uma espécie de síntese filosófica6 , mesmo talvez não sendo o seu principal propósito. Era uma de suas características pessoais a busca pelo diálogo, isso aparece também em seu trabalho teórico. De Aristóteles recebe a herança da especulação racional, da busca por princípios universais que fundamentem a conhecimento humano e, notadamente, a valorização do conhecimento sensível na construção do conhecimento, naquilo que hoje podemos denominar de abstração. A ideia de tabula rasa7 , por exemplo, inclusive no que tange ao processo de conhecer, revela que o Doutor Seráfico, embora tenha se

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 6 Para SARANYANA (2006, p. 294) e seguintes, a filiação filosófica de São Boaventura tem traços de Avicebron, Avicena, Aristóteles, do neoplatonismo e de Santo Agostinho. 7 “Intellectus vero humanus, quando creatur, est sicut tabula rasa, et in ita omnimoda possibilitate” ( II Sent. d. 25, p. 2 un. q. 6, concl.; 623a).

indisposto em alguns momentos com Aristóteles e seus intérpretes8 reconhece o valor e a contribuição de Aristóteles para o desenvolvimento da capacidade intelectual do ser humano, tanto no sentido filosófico bem como científico. Esse reconhecimento ao Filósofo, como Aristóteles era denominado na época, notamos literalmente em várias passagens de seus textos. De Santo Agostinho herda, sobretudo, a teoria da iluminação e a visão criacionista. E quando observamos a teoria da exemplarismo 9 , percebemos que Boaventura está inspirando-se em Santo Agostinho, faz apenas alguns ajustes. Também é importante notar que Santo Agostinho lhe serve como um meio termo entre Aristóteles e Platão. Com isso, ele vai promover um diálogo entre a teoria das ideias de Platão10 e o mapa conceitual construído pelo realismo aristotélico11. Assim, a mente divina é uma espécie de mundo das ideias na versão platônica, que permite à mente humana uma elevação através do mundo até a mente divina, e assim conheceremos a essência das coisas em si. Claro que isso pode parecer uma pretensão hegeliana da interpretação radical de que, através do conhecimento de Deus, podemos conhecer tudo, afinal Ele é a

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 8 Sobretudo Averróis e Siger de Brabante. 9 Deus é o primeiro princípio e a plenitude fontal dos seres. Fazer metafísica para ele era chegar à causa suprema dos seres, e tal causa é a palavra criadora de Deus. 10 São Boaventura acusa Aristóteles de que, ao tentar corrigir Platão, acabou perdendo a possibilidade de conhecimento da razão última, da causa primeira da existência dos seres. Filosofia, para Boaventura, é conhecer a causa primeira. No entanto, como bem observa VEUTHEY (1971, p. 38), a respeito da ideia de Deus, por exemplo, não podemos esquecer “quel che è innato in noi non è l´idea di Dio, ma il potere dell, inteligenza di esprimere l´essere e le idee dell´essere. E sicome tutto è contenuto nell´essere, cosi ogni idea è implicitamente nell´idea di essere che è ‘la prima’ senza que sia innata, senza che l’Essere sai visto in sè e senza che S. Bonaventura sia ontologista, poichè egli nega la visione naturale de Dio e delle idee eterne em sè”. Ou seja, a crítica empreendida a aspectos da filosofia aristotélica não significa uma adesão cega aos preceitos platônicos. 11 Para Boaventura, remontando Platão, a causa são as ideias, elas já, existiam na mente divina. Ao contrapor-se a Siger de Brabante, rebate Aristóteles no quesito das ideias. Na esteira da interpretação averroísta de Aristóteles, e mesmo naquilo que é mais fundamental no Estarigirita, para Boaventura, há um fechamento ao mundo superior (Deus) e, com isso, a queda nos clássicos, três erros primordiais (do Aristóteles interpretado) : (i) Ao admitir a eternidade do mundo, extinguiu a possibilidade da encarnação de Cristo e, com isso, as noções de Criação e Redenção ficariam abaladas. (ii) Ao defender a unidade do intelecto humano, destruiu a imortalidade pessoal e, ao mesmo tempo, criaria um problema de ajuste conceitual no que tange ao sentido do Juízo final e do julgamento individual, bem como ao próprio sentido e fundamento do que denominamos de indivíduo e individualidade; (iii) e, ao negar as ideias (Platão) como pensamento de Deus, transformaram Deus apenas como causa final, isso implica um dilema a respeito da fundamentação da responsabilidade e da liberdade humana, bem como anula o papel da providência divina. Um detalhamento disso encontramos em DE BONI (2010, p.86) e seguintes. 

fonte de tudo12. Mas, na verdade, Boaventura inova porque sugere muito mais a necessidade de acesso à mente divina, do que propriamente o conhecimento e o reconhecimento das provas a priori ou a posteriori de sua existência, sobretudo no Itinerarium Mentis in Deum se revela, como nos observa De Boni, 2010, p. 78, o seu lado kantiano, quando reconhece os limites da razão prática e teórica e, ao mesmo tempo, sugere na obra Redução das Ciências à Teologia, em todos os sentidos uma nova perspectiva de construção e de utilização da ciência ou do saber científico13. De Avicebron, certamente há influência do hilemorfismo universal. Isso está presente na compreensão de que há a possibilidade concreta de uma fraternidade cósmica, ela não apenas está fundamentada num princípio teológico de que Deus é Pai, mas também na crença de que a própria constituição material do mundo carrega certo parentesco. Essa tese, de algum modo, é retomada, mais recentemente, por Teilhard de Chardin, naquilo que ele entende por cosmovisão, que é essa capacidade, segundo ele, de compreender o próprio mundo como expressão de uma realidade teológica tanto no sentido espiritual como material14. De Avicena, o Doutor Seráfico acolhe, sobretudo, a ideia de que Deus é um transcendente-imanente. Ou seja, dentro daquilo que podemos denominar como panenteísmo, nessa visão Deus está ausente no mundo, mas não totalmente, manifestase através de seus sinais, sendo eles vestígios, sombras, imagens e símbolos, que são signum Dei que revelam de alguma forma, em grau maior ou menor, a realidade divina. Essa tese remete ao sugerido por Avicena15 e que, de alguma forma, está presente na compreensão de Boaventura, em diálogo com a teoria do exemplarismo agostiniano. Já com relação ao neoplatonismo cristão16, parece que este serve de algum modo para corrigir a rota conceitual assumida por São Boaventura que é de não cristianizar o pensamento aristotélico, mas de compreendê-lo como superado17. Ou

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12 No sentido do que DE BONI (2010, p. 83) descreve. 13 Cf. DE BONI (2010, p. 82), citando A. Gemelli. 14 CHARDIN, T. O Fenômeno Humano. São Paulo: Cultrix, 1988. 15 ULLMANN (2000, p. 165), sugere na nota 59, que Avicena (980-1037) era uma enciclopedia do saber: conhecedor de geometria, física, medicina, direito e teologia. Atribuem-se lhe duzentos títulos de livros escritos, incluindo comentários ao Estagirita. Defende a emanação dos entes contingentes, de parte de Deus, à maneira do neoplatonismo, o que hoje é interpretado como panenteísmo e não panteísmo. 16 Cf. BETTONI (1973, p. 20ss). 17 Cf. GILSON, E. La Filosofía de San Buenaventura. Buenos Aires: Ediciones Descléé, 1948. 

Como Boaventura serve-se da teoria das ideias de Platão18, como forma de corrigir a visão aristotélica a respeito do mundo e das coisas, é compreensível que vá buscar no neoplatonismo cristão que defendia que Deus criou tudo a partir do nada, semelhante ao que Avicena acolhe em sua teoria da emanação19, diferente da tese aristotélica, presente no livro IV da Física, onde o mundo é concebido como divino e eterno. 2. A Faculdade do conhecimento e os níveis do conhecimento humano Para São Boaventura, a pessoa humana é capaz de conhecer e essa capacidade é ilimitada20. A capax Dei a que Boaventura está se referindo é descrita naquilo que ele apresenta como “anima est omnia potentia, secundum Philosophum” 21, ou seja, a mente humana tem capacidade infinita, aos moldes daquilo que sugeriu Aristóteles, isso porque, para o Doutor Seráfico, a pessoa humana tem similitude e capacidade divina, enquanto é imagem do próprio Criador. Para Veuthey, 1971, p. 82, a noção de alma racional22 em São Boaventura remonta à visão de alma racional como oposição, à alma vegetativa e animal. A alma racional permite o conhecimento intelectual e este se desdobra em razão, intelecto e inteligência. A razão é a habilidade e a capacidade de domínio no campo conceitual e discursivo. O intelecto é a faculdade do conhecimento da alma, das ideias e de Deus. E a inteligência é responsável pelo conhecimento intuitivo, que permite a elevação de nosso entendimento através das criaturas para chegar ao Criador. A sinderese, segundo Veuthey23, enquanto apex mentis24 é um tipo de experiência enquanto conhecimento no contato, na união e na experiência imediata que tem relação mais ligada à afecção, ao amor e não à inteligência propriamente dita.

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18 Collatione in Hexäemeron, VI, n.2, vol. V, p. 360. 19 “Haec est tota nostra metaphysicha: de emanatione, de exemplaritate, de consummatione” . (Collatione in Hexäemeron, I, n . 17; vol. V, p. 332. 20 “Quodmmodo est anima omnia...quia nata est cognoscere omnia; et maxime ‘capax Dei’, quia est imago e similitudo” I Sent., d. 3, p. I a. um, ad I; I, 69 a. 21 Collatione in Hexäemeron, IV, 24; e. D. 257. 22 Cf. IV Sent., d. 14, p. I, a. 2, q. I, ad. 2; IV, 325 b. São Boaventura diz: “ratio dicitur multipliciter...communiter comprehendit totam portionem animae divisam contra sensualitem in qua ponuntur tres potentiae...propriae accipitur pro potentiae divisa contra concupiscibilem eet irascibilem”. Essa visão remonta ao que Platão descreve em A República a respeito da tripartição da alma. Convém lembrar que, para São Boaventura, aos moldes de Santo Agostinho, De Trinitate, X, a alma racional divide-se em memória, inteligência e vontade. 23 Cf. VEUTHEY ( 1971, p. 82). 24 Ápice, experiência mais elevada da mente humana.

Assim não basta o esforço racional, embora ele seja também de suma importância para a elevação da mente a Deus como notamos na obra Itinerarium Mentis in Deum. Há ainda a necessidade, antes de entrarmos propriamente na distinção dos diferentes níveis de conhecimento, de levarmos em conta as distinções 25 que o Boaventura faz do intelecto especulativo, do intelecto prático, da razão superior e da razão inferior. O intelecto especulativo refere-se à verdade enquanto tal. O intelecto prático refere-se à verdade enquanto bem. Enquanto o intelecto especulativo está voltado ao conhecimento propriamente dito, o intelecto prático está voltado para a ação. Mas ressalta-se que são dois aspectos do mesmo conhecimento intelectual26. Já a distinção entre razão superior e a razão inferior se dá do seguinte modo: a razão superior é a alma enquanto imagem de Deus, onde a atividade é inteiramente direta, dirigida e movida pelas razões eternas27. E a razão inferior é a sede do conhecimento abstrato e discursivo que se apoia sobre o mundo material, mas que, para sua solução definitiva e irreparável, carece submeter-se à razão superior, às razões eternas e a Deus para alcançar o conhecimento perfeito e indubitável28. 3. Conhecimento Sensível Fica bem evidente, sobretudo nesse ponto, que São Boaventura adere ao propósito aristotélico, ao entender que o conhecimento começa com os sentidos29. Mas isso não significa dizer que todo conhecimento, segundo ele, provenha só dos nossos sentidos30. Diante da realidade, os nossos sentidos recebem os dados sensíveis e nosso intelecto sintetiza-os e julga-os.

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25 Cf.VEUTHEY, 1971, 82-83. 26 II Sent., d. 24, p. I, a.2, q. I, ad. 2; II, 561 a. 27 Cf. VEUTHEY, 1971, p. 83, referindo-se ao trecho de II Sent., d. 24, p. I, a.2, q. I, ad. 2; II, 561 a. 28 Cf. VEUTHEY, 1971, p. 83, referindo-se a II Sent., d. 24, p. I, a. 2, concl.; II, 564 a. 29 “L´uomo há cinque sensi che sono come cinque porte per le quali nell´anima la conoscenza di tutto cio che è nel mondo sensible” (VEUTHEY, 1971, p. 22), referindo-se a Itin. II, n. 3; V, 300b : “Homo igitur, qui dicitur minor mundus, habet quinque sensus quase quinque portas, per quas intrat cognitio omnium quae sunt mundo sensibili in animam ipsius”. 30 Cf. “ (...) é vero que che la conoscenza comincia dai sensi, no ne consegue che ogni cognoscenza venga dai sensi, giacchè questi possono raggiungere e ricevere solo il sensibile, ossia il mondo materiale. Tutto cio che è spirituale, como Dio, l´anima, le idee, non può provenire dai sensi, ma è raggiunto nell´anima stessa” (VEUTHEY, 1971, p. 22). Referindo ao que consta na II Sent. d. 39 a. I q. 2, conc.; 904 b : “ex his patet responsio ad illam quaestionem qua quaeritur utrum omnis cognitio sit a sensu. Dicendum est quod non. Necessario enim oportet ponere quod anima novit Deum et seipsam et quae sunt in seipsa sine adminiculo sensuum exteriorum. Unde si aliquando dicat Philosophus quod ‘nihil est in intellectu quod 

Por outro lado, notamos que a solução de São Boaventura é um pouco diferente de Aristóteles no que tange à garantia e à objetividade do conhecimento humano em relação às coisas, o conhecimento da realidade em si. Isso porque a conexão entre as coisas e o que denominamos de objetividade, em si, não é resultado exclusivo da reunião, apreensão e avaliação do intelecto, mediado pelos sentidos, como no caso da visão tomista ou mesmo da visão aristotélica. A garantia de que estamos de fato conhecendo algo, vem da iluminação do Verbo. Ou seja, embora a racionalidade, enquanto quesito fundamental e expressão da grandeza da dignidade da pessoa humana, como condição de possibilidade para conhecer, mesmo assim, segundo o autor, essa potência, que é a capacidade intelectiva, não é capaz de garantir, em si, a operação de conhecimento da realidade num movimento intercambiado entre razão, intelecto e sentidos. São Boaventura retoma, de certa forma, a teoria de Santo Agostinho de que a iluminação divina é a garantia plena para que a operação do conhecimento não se equivoque, sem que isso signifique que não haja papel para o juízo humano. Dentro da perspectiva sugerida pelo Doutor Seráfico, o juízo humano sempre tem a função de unificação dos dados. É o juízo que possibilita saber o que sabemos, e é ele que nos dá a consciência do que sabemos de fato. A consciência, promovida pelo juízo, nesse sentido, é um movimento posterior de que não apenas conhecemos isso ou aquilo, mas temos também sabemos que conhecemos isso ou aquilo. O processo conhecimento, segundo o autor, acontece da seguinte forma: os sentidos externos apreendem as imagens sensíveis e estas são transformadas em espécies inteligíveis e armazenadas na memória que se distingue em passiva e ativa. Aquilo que nossos sentidos captam é transformado em algo inteligível. Já na alma, esse conhecimento se dá pela representação de sua semelhança ou espécie31 (sentido interior e na percepção). Segundo Freitas, 2006, p. 71, “o objeto do conhecimento sensível é constituído pelas realidades materiais enquanto apreendidas pelos sentidos externos sob

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prius non fuerit in sensu’ et quod ‘omnis cognitio habet ortum a sensu’, intelligendum est de illis quae quidem habent esse in anima per similitudinem abstractam”. 31 IV Sent., d. 44, p. 2, a. 3. Q. 2, ad 4; IV, 935 a

forma de imagens sensíveis, (...), transformadas em espécies inteligíveis”, que serão posteriormente arquivadas em nossa memória (ativa e passiva). É por essa via que a realidade material começa habitar a alma humana, não como substancialidade material, mas pela sua representação ou espécie32, que intencionalmente adquire sentido e significado, intencionalmente. Isso porque, para ele, o conhecimento é ação da alma33, que, de forma ativa, apreende e recebe as informações do mundo sensível através dos sentidos. No entanto, a assimilação destes dados e conteúdos é analisada através do juízo, por similitude34, e relacionada àquilo que se referem. Para que ocorra o conhecimento, é preciso considerar ainda a noção de espécie e imagem no processo de abstração. O conhecimento não acontece de forma imediata e direta entre a coisa/objeto e o intelecto. Mas num círculo de interação entre objeto, imagem, espécie e juízo, onde, de forma permanente e ativa, a mente humana vai construindo o conhecimento enquanto representação. 4. O Conhecimento Científico ou intelectual A porta de entrada da abordagem do conhecimento científico, em São Boaventura, está ligada ao tema anterior. Aqui temos uma intermediação da inteligência. Nas palavras de Veuthey, 1971, p. 24, o conhecimento sensível é do objeto singular, já o conhecimento científico refere-se ao universal, por causa da ideia resultante da abstração. O Doutor Seráfico é categórico, ao afirmar, em duas passagens específicas, a sua compreensão de como se dá o processo de abstração e como acontece o processo do conhecer. Em II Sent. d. 3 p. 2. A 2 q. I f. 5; II. 118 a, deixa claro que na sua visão o conhecimento científico é proveniente da experiência e que não nascemos com nenhum tipo de conhecimento inato: “intellectus vero humanus, quando creatur, est sicut tabula rasa, et ita in omnimoda possibilitate” 35. Inclusive, neste trecho, percebemos que ele antecipa o propósito posteriormente defendido por Locke a respeito da mente como tabula rasa. O estado da mente, ao ser criado, assemelha-se ao propósito kantiano, de

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32 II Sent., d. 39, a. I, q. 2, concl; II, 904 b. 33 II Sent., d. 23, a. 2, a. 1, concl.; II, 538, b. 34 De Reductione artium ad Theologiam, n. 8; V, 322 a. 35 II Sent. d. 3 p. 2. a 2 q. I f. 5; II. 118 a. Cf. VEUTHEY (1971, p. 25).


que não nascemos com um conhecimento inato, mas inata é a nossa capacidade de conhecer. Notamos um acento importante quando ele afirma ‘et ita in omnimoda possibilitate’, significa ‘pura possibilidade’. Somos dotados, segundo São Boaventura, de uma capacidade de conhecer, que não é determinada, embora limitada. Outro aspecto importante, que é uma característica bem forte na tradição franciscana, é a defesa de que a experiência é a base da ciência. Isso encontramos literalmente na passagem de III Sent. d. 24 a.2 q. 3 f. 4; III, 522 a, : “experentia est principium scientiae”. E, nesse sentido, Boaventura concorda plenamente com Aristóteles36 no que tange ao processo do conhecimento geral que é intermediado pelos sentidos, pela memória e pela experiência, alegando que é desse movimento interativo entre a experiência dos sentidos, a abstração e a memória, de modo geral, que resulta a ideia universal que serve de base para a Filosofia e para a ciência. Por outro lado, o nosso autor reconhece que a abstração, como esse processo de recolher dos dados sensíveis elementos universais, em se tratando da inteligência, ou como processo intelectual dentro de nossa inteligência precisa de certo retoque. Isso porque ele distingue o processo de abstração que extrai dos dados sensíveis a informação geral, daquele processo que ele denomina de abstração intelectual onde temos a espécie que passa pelo senso de imaginação, e, portanto, não é um resultado imediato da mera abstração de dados sensíveis. As ideias abstratas e purificadas de toda a materialidade são universais e necessárias e a passagem do particular e contingente ao universal é feita pela iluminação do intelecto agente que imprime a espécie no intelecto possível37. Nas palavras do autor “quia intelellectus noster agens lumens est, dum se convertit super phantasmata, abstrahit et depurat, et hoc modo illuminat” 38. Embora considere a teoria aristotélica, suas interpretações são um pouco diversas de Aristóteles na medida em que não distingue o entendimento agente e possível. Para ele, o ato de conhecer reside no movimento do entendimento agente que

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reage e atua sobre a espécie sensível enquanto conceito e espécie expressa, imprimindoa no entendimento possível. Não que o intelecto agente e o intelecto possível sejam duas realidades distintas, eles são dois aspectos diferentes do mesmo processo que é a operação intelectual39. O intelecto agente é a luz que ilumina, abstrai e purifica e o intelecto possível é o que recebe e assimila, de forma abstrata a ideia universal40. 5. O Conhecimento Sapiencial ou iluminativo41 Tanto na visão de Speer (2005), como na visão de Freitas (2006), em São Boaventura, há uma certeza da possibilidade do conhecimento, embora isso não signifique não reconhecer os limites da própria razão humana e da própria filosofia. Enquanto para Speer, a certeza do conhecimento e da realidade do objeto a ser conhecido move o pensamento boaventuriano para entendimento acerca da nossa capacidade cognoscente em si. Freitas (2006) acrescenta aí um elemento de que essa certeza e capacidade para o conhecimento elevam a pessoa humana a uma dignidade ímpar. Isso porque “a individualidade, a pessoa, acrescenta, junto da ideia de luz, a incomunicabilidade, que faz com que tudo esteja ordenado, e só ela é diretamente ordenada a Deus”42, e que o Criador, além de ser a causa primeira e última do homem, é também objeto de seu conhecimento e amor43. Como já dito, em parte, Boaventura concorda com Aristóteles no que tange a definição de como se dá o processo do conhecimento, mas, em parte, discorda por entender que a explicação aristotélica carece de complemento. A grande discordância, segundo Veuthey, 1971, p. 28, dá-se na medida em que, para o mestre franciscano, o singular, o contingente e o temporal não podem ser fundamento último da universalidade ou da necessidade da ideia. 

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39 II Sent. d. 24, p. I a. 2, q. 4 ad. 5; II, 571 ab; Ibid. Concl.; II, 569-570. 40 VEUTHEY (1971, p. 27). 41 Cf. Itin. q. 1, n. 1, o fato de sermos dotados de sentidos como audição e visão, por exemplo, faz com que sejamos capazes de perceber no esplendor das coisas a revelação de Deus (FREITAS, 2006, p. 80). 42 Cf. FREITAS (2006, p. 80). 43 FREITAS (2006, p. 80), referindo-se a III Sent., d. 5, a. 5, q. 2, n. 2, onde inspirado em Ricardo de São Vitor, De Trinitate, IV, Boaventura sugere que a incomunicabilidade, termo depois tão caro a Scotus, seja a marca registrada da definição de pessoa, não só da Trindade, mas da pessoa humana. Incomunicabilidade no sentido de que o indivíduo ao consiga e nem lhe convém transmitir ou comunicar a sua identidade última para outrem, pois essa é a sua garantia enquanto identidade própria. Sobre Deus ser objeto do conhecimento e do amor humano também encontramos nas passagens de II Sent., d. 15, a. 2,q. 2; Brev. p. 2, C. 4, ed. BAC, I, pp. 250-253. 

Para resolver isso, segundo ele, é preciso recorrer ao fundamento último da ideia, aquilo que é imutável, necessário e eterno e, portanto, detentor das ideias exemplares: Deus44. Assim, segundo Veuthey45, a explicação e o fundamento último da abstração residem naquilo que ele denomina como iluminação46. Em termos de teoria do conhecimento, temos uma mescla, agora, entre o que Aristóteles propôs em linhas gerais, no seu realismo, e aquilo que Platão denominou de teoria das ideias. Mas reconhecer isso ainda não parece ser suficiente para explicar o processo do conhecimento na visão boaventuriana. E isso porque na sua visão, a própria natureza, concebida como criação, não é apenas composta por leis e fenômenos, no sentido meramente biológico, físico e químico. Mas é um livro inesgotável de páginas que falam de Deus, que expressam amorosamente a linguagem divina. É também nesse sentido que, em São Boaventura, não devemos entender que há como concebermos Filosofia separada da Teologia. Ou mesmo como oposição ou mera distinção entre ambas. Ao propor a visão de que a natureza é um complexo livro de sinais, símbolos e imagens que apontam para o seu Criador, ele sugere que alguns desses seres são apenas vestígios e sombras. Enquanto a imagem representa uma proximidade maior e uma semelhança maior em relação ao Ser. Na sua visão, conforme o grau maior ou menor de semelhança entre o Criador e a criatura, existe o que podemos entender como dignidade ontológica. A pessoa humana, pela sua capacidade de entender e conhecer, é elevada a uma condição de privilégio até mesmo para operar na cocriação do universo criado. Como na tradição franciscana, o problema não é provar se Deus existe ou não, pois essa é uma questão resolvida, a priori, o problema é como acessar essa realidade que fundamenta a existência e as relações entre os humanos. A metafísica do exemplarismo configura certa dificuldade ao intelecto humano, pois a luz divina não pode ser conhecida em si mesma, mas apenas cointuída. De que forma? Para

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44 Itin. II, n. 9; V, 302 a. 45 cf. VEUTHEY (1971, p. 28-29). 46 Itin. III, n.3; V, 304 b.  

Boaventura, os vestígios como causalidade eficiente e suas imagens como causalidade exemplar são signos que apontam para uma realidade metá-humana. O conhecimento sapiencial ou iluminativo carece de um complemento da fé, no entendimento do autor, que permite ao humano ver além da physis, além do natural, e, ao perceber a distinção entre vestígios, imagens e sinais, reconhecer-se como imagem divina, no sentido do homem racional que, por assim o ser, é, portanto, capaz de perceber a real e intencional presença-ausente do Criador em tudo o que existe. Assim, ao alcançar o grau de conhecimento sapiencial necessário, o homem não apenas apreende e entende os sinais e vestígios que apresentam em grau maior ou menor o Criador, mas reconhece-se como imagem que é capaz de reconhecer as imagens impressas e expressas no mundo criado. Não podemos com isso inferir que Boaventura está promovendo um desprezo ao saber sensível ou mesmo ao saber científico, isso porque para ele a sabedoria não anula a ciência e não destrói a imagem divina impressa em grau maior ou menor na realidade existente. O conhecimento sapiencial transcende, não é concorrente dos demais, mas potencializa-os e aumenta o seu valor. Isso porque, para Freitas, 2006, p. 76, “o reconhecimento das coisas como sinais e símbolos de outras realidades superiores não somente não as diminui ou degrada, mas as dignifica e engrandece”. Considerações finais Ao lermos atentamente as Collationes de São Boaventura, temos a ligeira impressão de que ele despreza a ciência, a filosofia e os filósofos, sobretudo Aristóteles que estava sendo retomado em seu tempo, nos primórdios das universidades medievais. Essa é uma visão equivocada, por representar apenas uma face do contexto e da experiência acadêmica do autor. Para São Boaventura, o fim último de todo o conhecimento é o amor. O amor aos demais humanos e a todas as criaturas, aos moldes do fundador da Ordem franciscana, São Francisco de Assis. Não é legítimo pensarmos que o Doutor Seráfico foi alguém que desprezou a filosofia e a ciência, em nome da Teologia ou das verdades e dogmas do cristianismo. A questão é outra. Na verdade, para ele, nem mesmo a teologia representa o fim último da nossa ânsia pelo saber, nem mesmo ela responde aos anseios humanos da busca pela verdade. A razão humana é fundamental para a busca da verdade, mas ela conduz o homem somente até às portas da mística e aí silencia, dando luz à graça. O conhecimento humano representa os 6 dias da criação, mas o sétimo é o da plenitude e da paz, não é resultaldo do esforço racional apenas. O sétimo dia da criação é do repouso para além do entendimento, superação, transitus, tanto no sentido hebraico do Mar Vermelho, do maná do Deserto, do Cristo pregador – túmulo – ressurreição de São Francisco de Assis no Monte Alverne, enfim passa pelo reconhecimento do homem como ser para a morte, do homem como peregrino, daquele que caminha pelos campos, quando a sociedade da época fixava-se nas cidades daquele que caminha em busca da verdade, mas que em algum momento vai da atividade pura à pura contemplação: deleite. A mística é esse movimento capaz de intercambiar a Teologia e a Filosofia, reconhecendo a pessoa humana como distinta e digna (Imago Dei) diante dos demais seres criados (sombras, vestígios, sinais) e partindo da concepção de que o homem, em termos de conhecimento, é possibilidade e capacidade infinita, Capax Dei, e que pode ser interpretada como a possibilidade ilimitada que, no ato da criação, Deus conferiu ao ser humano para conhecer tudo. Para Boaventura de Bagnoregio não há conhecimento inato, mas inata é a inquestionável capacidade que possuímos para conhecer, inclusive Deus. No entanto, a similitude com Deus não assegura identidade idêntica e garante apenas a noção de Imago Dei. A mediação entre o conhecimento filosófico e o conhecimento teológico, no pensamento boaventuriano é de algum modo garantida pela mística. O Apex Mentis (ápice da mente) não é uma experiência em oposição à razão, tampouco o resultado de uma mera Teologia Racional. O amor, enquanto fruição, deleite, é capaz de oportunizar uma experiência cognitiva de outra ordem, mais elevada e isso não é negação da razão, mas prova de sua maior elevação que é contemplar in loco o ôntico fontal de todas as coisas existentes. 


Referências

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Fernando Vanini de Maria

 

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