Este trabalho tem uma dupla pretensão: explicitar, de modo mais direto e
imediato, o estatuto teórico da disciplina introdução à teologia no curso de
filosofia, justificando, assim, sua inserção no âmbito teórico-acadêmico da
filosofia, e, de modo mais indireto, e como seu pressuposto, o vínculo ou nexo
interno entre teologia e filosofia. Com isso, pretende contribuir tanto para o
caráter interdisciplinar da teologia e da filosofia, quanto, sobretudo, para o
desenvolvimento e radicalização do fazer teológico e filosófico, seja no que eles
têm em comum, seja no que eles têm de específico.
Palavras-chave:
Teologia. Filosofia. Autonomia. Interdisciplinaridade.
O Concílio Vaticano II, em sua Declaração Gravissimum educationies
sobre a educação cristã, ao tratar das faculdades e universidades
católicas, insiste na importância e necessidade de uma articulação entre fé
e ciência. Assim, o pensamento cristão se fará presente “de maneira
pública e estável nos meios em que se promove a cultura” e as pessoas
serão “capazes de assumir os mais altos encargos na sociedade e dar ao
mundo o testemunho de fé”. Em vista disso, recomenda que “nas universidades católicas em que não há faculdade de teologia, funde-se
um instituto ou departamento de teologia para o ensino de maneira
adaptada aos leigos”1
.
O Código de Direito Canônico2
, por sua vez, tratando da educação
católica, ao falar das universidades católicas e outros institutos de
estudos superiores, determina que “nas universidades católicas se
constitua uma faculdade ou instituto, ou pelo menos uma cátedra de
teologia, onde se lecione também para os estudantes leigos” (Cân. 811, §
1) e que “em cada universidade católica haja preleções, em que se tratem
principalmente questões teológicas conexas com as disciplinas das
faculdades” (C.A. 811, § 2).
Na mesma direção, vai a Constituição Apostólica do Papa João
Paulo II, Sobre as Universidades Católicas. Ao falar da identidade da
universidade católica, como universidade e como católica, destaca
algumas das características fundamentais de sua atividade acadêmica:
busca de uma “integração do conhecimento”, “diálogo entre fé e razão”,
“preocupação ética” e “perspectiva teológica”3
. A Teologia, diz o texto,
“desempenha um papel particularmente importante na investigação de
uma síntese do saber, bem como no diálogo entre fé e razão. Além disso,
ela dá um contributo a todas as outras disciplinas na sua investigação de
significado, ajudando não só a examinar o modo como as disciplinas
influirão sobre as pessoas e sobre a sociedade, mas também fornecendo
uma perspectiva e uma orientação não contidas em sua metodologia. Por
sua vez, a interação com as outras disciplinas e suas descobertas
enriquece a teologia, oferecendo-lhe uma melhor compreensão do mundo
de hoje e tornando a investigação teológica mais adaptada às exigências
de hoje”. E conclui: “dada a importância específica da Teologia entre as
disciplinas acadêmicas, cada universidade deverá ter uma faculdade ou,
ao menos, uma cadeira de teologia”4
.
Em sintonia com essas orientações e determinações do magistério
episcopal da igreja é comum encontrar-se nos vários cursos oferecidos em
universidades e faculdades católicas (Filosofia, Direito, Medicina,
Comunicação, Artes, Ciências Sociais etc.) uma disciplina teológica.
Chame-se Introdução à Teologia, Introdução ao Pensamento Teológico,
Tópicos de Teologia, Cultura Religiosa etc. Pouco importa.
O problema é como essa disciplina teológica se insere nessas
diversas áreas de conhecimento: é um corpo estranho ou tem algo em
comum com elas? Justifica-se simplesmente pela orientação e
determinação do magistério episcopal ou por um vínculo-nexo interno
entre a Teologia e as diversas áreas de conhecimento? Pode ser
estruturada e desenvolvida da mesma forma em diferentes áreas de
conhecimento ou requer uma estruturação e, inclusive, um método
específico para cada área de conhecimento?5 É, aqui, precisamente, onde
se insere o problema fundamental com a qual nos confrontaremos neste
trabalho: Teologia na Filosofia!?
Nossa pretensão é explicitar o vínculo-nexo interno entre Teologia
e Filosofia e, assim, justificar teoricamente a existência e mesmo a
necessidade de uma disciplina teológica em um curso de Filosofia, ainda
que a modo introdutório. E tanto pelo caráter interdisciplinar do saber
como um todo (tudo tem relação com tudo, de alguma forma e em certa
medida), quanto pelo vínculo peculiar entre essas duas áreas de
conhecimento (tratam de tudo do ponto de vista de seu fundamento
último).
lema propriamente teológico; em segundo lugar, com a problemática
de sua inserção no âmbito teórico-acadêmico da Filosofia; e, por fim,
apresentaremos o modo como tratamos o assunto na disciplina de
introdução ao pensamento teológico no curso de filosofia na Faculdade
Católica de Fortaleza.
– Problemática Teológica
1. Como indica a própria etimologia da palavra, a teo-logia consiste
fundamentalmente num saber/logos sobre uma realidade que de uma
forma ainda muito genérica e abstrata se pode denominar Deus/Théos. A
problemática teológica envolve, portanto, um assunto ou âmbito de
realidade (Théo/Deus) e um modo de intelecção (logos/razão).
A. Certamente, há que se determinar o conteúdo dessa realidade
que chamamos Deus: a que se refere concretamente? Que queremos dizer
quando dizemos Deus?6 Esse é um dos problemas mais fundamentais do
método teológico (a determinação de seu assunto ou âmbito de
realidade). E isso é tudo, menos evidente. Bastam ter presentes os vários
sentidos que a expressão “deus” tem nas diferentes correntes filosóficas
da Antiguidade grega (pré-socráticos, Platão, Aristóteles, estoicos), onde
surgiu a expressão Teologia, e o sentido ou, quem sabe, os sentidos que
ela tem na tradição cristã7
.
Em todo caso, a determinação desse conteúdo está possibilitada e
condicionada por seu modo de presença e atuação na história e,
consequentemente, pelo modo como o acedemos e o experimentamos. O
que sabemos ou podemos saber dessa realidade (em si) depende de se, do
que e de como ela se dá a conhecer (para nós). Numa linguagem
estritamente teológica dever-se-ia falar aqui de revelação e de fé. Por este
motivo, a revelação e a fé se tornam a condição de possibilidade
(pressuposto) e o critério (medida) de determinação da realidade que a Teologia procura inteligir [em si]8
, embora esta não se esgote naquelas:
Deus é mistério inesgotável9
. No caso da Teologia cristã, o conteúdo
dessa realidade está dado definitivamente (sem perder seu caráter de
mistério inesgotável, é claro!) na história de Israel e, em última instância,
na práxis de Jesus de Nazaré, a quem os cristãos confessam como o
Cristo, e, a partir daí, na práxis daqueles que de alguma forma o seguem
e prosseguem sua missão: salvação da história ou reinado de Deus, cujo
critério é sempre a justiça aos pobres e oprimidos deste mundo (Mt 25,
31-46). Aí, Deus se dá a nós; aí, temos acesso (também intelectivo) à
realidade de Deus.
B. Da mesma forma, há que se determinar esse modo de acesso
intelectivo que é a Teologia: -razão- um dos problemas mais complexos e
difíceis de toda e qualquer ciência, e que diz respeito tanto ao
saber/conhecimento em geral quanto a um saber/conhecimento concreto,
seja pelo caráter de momento da ação humana, seja pelo que tem de
específico frente a outros modos de saber e pelo vínculo ou nexo que
mantém com esses outros modos de saber.
Antes de tudo, é preciso ter presente o fato de que a atividade
intelectiva, por mais irredutível e autônoma que seja, não é, em hipótese
alguma, independente das demais atividades humanas, como são, por
exemplo, o sentimento e a volição. Dá-se, sempre em respectividade a
elas. A vida humana não é um armário com várias gavetas, mas uma
realidade dinâmico-estrutural: atividade/práxis de notas diversas
estruturalmente organizadas (intelecção, sentimento, vontade)10. Desse
modo, a intelecção, como momento constitutivo da ação humana11, tem
relação com o sentimento e com a volição. Por um lado, a atividade
intelectiva é uma sentiente (sentidos): intelige sentindo. Não se trata simplesmente de inteligir coisas sensíveis. Isso seria o que Zubiri chama
“inteligência sensível”12. Trata-se de algo muito mais radical: o sentir
mesmo é intelectivo ou comporta um momento inteligente e a intelecção
mesma é sentiente ou comporta um momento sentiente13. Por outro lado,
ela é uma atividade estritamente histórica, no sentido de que se dá
mediante um processo de apropriação de possibilidades intelectivas que,
por sua vez, desencadeia um processo de capacitação intelectiva14
.
Além do mais, embora no processo intelectivo15 o logos (palavra,
discurso), sobretudo o logos predicativo (predica algo de algo: A é B),
desempenhe uma função fundamental e, quiçá, preponderante, não é
senão um de seus momentos. A intelecção não arranca do logos, mas de
um modo mais primordial de saber (o mero estar presente de algo) que é,
inclusive, condição de possibilidade de toda e qualquer predicação: só
posso predicar algo de algo (A é B) se esse algo (A) de alguma forma já
está inteligido. É o que Zubiri chama apreensão primordial de realidade.
Tampouco a intelecção termina no logos. Ela marcha em busca do
fundamento último da coisa já apreendida primordial e afirmativamente
(logos): “Na marcha intelectiva, as coisas começam dando que pensar e
terminam dando [ou tirando] razão”16. É o que Zubiri chama razão, de
modo que o logos não é senão um momento do ato intelectivo, por mais
importante e determinante que seja. A redução do saber ao logos – o que
Zubiri chama “logificação da inteligência”17 – constitui um dos grandes equívocos/erros da tradição filosófica ocidental. Como modo de
intelecção, a razão ou o pensamento consiste numa atividade intelectiva:
“marcha” em busca do fundamento da realidade que está sendo
inteligida18: marcha para “além” do já inteligido (primordial e logos);
marcha “incoada”: abre uma via intelectiva; marcha “ativada” pela
realidade.
Tudo isso tem muitas implicações para o fazer teológico, como
atividade teórico-intelectiva. A Teologia aparece aqui como algo intrinsecamente vinculado a uma práxis salvífico-teologal (momento da práxis) e
se constitui como um modo específico de saber (razão) perante a outros
modos de saber.
2. Há uma mútua implicação entre a determinação do conteúdo da
realidade teologal (Deus) e a determinação do modo de acesso intelectivo
a essa realidade (razão).
No ato de intelecção, a realidade a ser inteligida e sua intelecção se
implicam e se determinam de tal modo que se pode e se deve falar de
uma coatualidade (“atualidade comum”, “comunidade de atualidade”)19
de realidade e intelecção. Determinar o conteúdo de uma realidade
qualquer é, já, uma atividade intelectiva. Carece, portanto, de sentido
falar da realidade independentemente (fora, antes) de sua intelecção. Por
sua vez, o que seja a intelecção não se sabe senão na medida em que se
intelige algo: toda intelecção é intelecção de algo. Não tem sentido,
portanto, falar de intelecção independentemente (em si) da realidade
inteligida.
Como insiste Zubiri, “saber e realidade são congêneres em sua
raiz”
20. Por isso mesmo, não se pode falar de modo consequente da
“realidade em si”, independentemente de sua intelecção (realismo
ingênuo), nem da “intelecção em si”, independentemente da realidade
inteligida (idealismo ingênuo). Agora, claro que se pode, didaticamente,
se deter na análise e formulação de um ou de outro momento no que ele
tem de mais específico. Afinal, por mais que sejam congêneres e se
codeterminem, intelecção e realidade são irredutíveis, têm a própria
especificidade. 3. Uma introdução ao pensamento teológico pode dar-se com base
na realidade pensada (realidade teologal) ou com suporte na atividade
pensante (pensamento teológico).
Embora realidade pensada e atividade pensante se impliquem e se
condicionem no pensamento, não se identificam – são relativamente
autônomas. E essa autonomia relativa de realidade e pensamento permite
que se possa tomar como ponto de partida de uma introdução ao
pensamento teológico um ou outro. Não há nenhuma razão que obrigue
partir de um ou outro: “Certamente a investigação sobre a realidade
necessita lançar mão de alguma conceituação do que seja saber”, mas
“não é menos certo que não se pode levar a cabo uma investigação acerca
das possibilidades de saber, e de fato nunca foi levado a cabo, se não se
apela a alguma conceituação da realidade [...]. É impossível uma
prioridade intrínseca do saber sobre a realidade ou da realidade sobre o
saber. Saber e realidade são, em sua própria raiz, estrita e rigorosamente
congêneres. Não há prioridade de um sobre o outro”21
.
A opção por um ponto de partida ou outro, por mais razoável que
seja, tem sempre algo de arbitrário, seja porque ambos os pontos de
partida são legítimos e possíveis seja porque, de alguma forma, se
implicam.X'.
– Teologia num curso de filosofia!?
Tendo esboçado a estrutura da problemática teológica (âmbito de
realidade – modo de intelecção), precisamos nos confrontar agora com a
problemática de sua inserção no âmbito teórico-acadêmico da Filosofia.
Uma introdução à Teologia num curso de Filosofia não pode ser um
objeto estranho, intruso e indesejável. Deve ser parte integrante deste e,
portanto, deve estar estruturalmente articulada com a reflexão filosófica.
Há que situar-se, portanto, na fronteira da Filosofia e da Teologia22. Não como uma “ponte” entre saberes que, enquanto tais, em nada se relacionou
com o outro, mas como “terreno comum” que, de alguma forma e em certa
medida, pertence a ou tem relação com ambos os saberes, sem que isso
comprometa a especificidade e autonomia de cada um.
Com efeito, é preciso começar recordando o fato de que a
articulação estrutural entre Filosofia e Teologia é um fato constatável na
história da Filosofia e da Teologia23, independentemente da apreciação
que se faça acerca desse aspecto e da pluralidade e complexidade dos
modos como se deram e ocorreu essa articulação24
.
Por um lado, a Filosofia nasceu e se desenvolveu profundamente
articulada com a problemática teológica. De fato, “a origem da filosofia
está estreitamente ligada à religião”25. Ela significou “uma forma
audaciosa de fazer a razão, investigadora da natureza e construtora da
ciência, servir ao intento de exprimir a visão religiosa do mundo”,
constituindo-se, assim, como “teologia, expressão racional do theion, do
divino”26. Nasceu como Teologia e se desenvolveu “sob o signo da teologia”. Como recorda Lima Vaz, “o pensamento de Platão é,
fundamentalmente, uma visão teológica do mundo”; para Aristóteles, a
ciência mais elevada “é aquela que está voltada para a contemplação das
realidades divinas: ciência primeira ou teologia”; a moral estoica atinge
seu ápice na Teologia, pois ela “se funda na aceitação de um logos, de
uma razão divina imanente ao universo e cuja providência conduz todas
as coisas”; mesmo o epicurismo, diz ele, “considerava que a vida humana
somente adquire sentido quando confrontada ao problema teológico” –
descoberta de “uma razão e uma ordem divina” na natureza e na vida
humana27. E, então, daí, sobretudo com o desenvolvimento da Teologia
cristã, toda a Filosofia ocidental foi desenvolvida e organizada “segundo
o esquema que M. Heidegger denominou onto-teologia”
28. Xavier Zubiri
chega a afirmar/denunciar o fato de que “a filosofia europeia, de Santo
Agostinho a Hegel, é, em última instância, uma filosofia que nem nasceu
nem viveu de si mesma. Com todas as suas limitações, a filosofia grega
pelo menos nasceu a partir de si mesma frente às coisas em contato
imediato com elas. Mas o homem da era cristã nunca se encontrou
consigo de maneira imediata, mas mediante Deus, ou seja, com a mirada
fixa no ente infinito”29. E isso não se rompe completamente nem sequer
nessa época que Lima Vaz denomina “modernidade moderna”30
.
Primeiro, porque, como lembra Pannenberg, há uma série de questões
desenvolvidas e elaboradas em diálogo estreito com a Teologia cristã que
continua central no mundo moderno (contingência, individualidade,
história etc.)31. Segundo, porque, como adverte Manfredo Oliveira, a
Modernidade não pode ser simplesmente identificada com as correntes
filosóficas anti ou pós-metafísicas; ela pode ser entendida também “como
esforço de reestruturação da filosofia enquanto teologia racional a partir das exigências que emergem do novo contexto cultural”32, ou seja, a
filosofia moderna não é necessariamente uma filosofia fechada ao
problema do fundamento último de toda realidade e, por isso, não é sem
mais uma filosofia anti-teológica.
Por outro lado, a Teologia cristã, embora fincando raízes mais
profundas no ambiente cultural semítico-judaico, teve que se confrontar
desde o início e se desenvolver em diálogo e interação com a Filosofia
grego-helenista. Esta era, aliás, uma questão de vida ou morte para o
cristianismo e sua Teologia, na medida em que se desenvolvia e se
enraizava neste novo ambiente cultural33. Na verdade, este diálogo ou esta
interação Teologia e Filosofia começa já no interior do próprio judaísmo.
“No mundo helenístico, o monoteísmo judaico já entendia a crítica
filosófica à fé popular politeísta como afirmação da fé judaica no Deus
único”. E, “assim como fizera o judaísmo helenístico, também o
cristianismo pôde recorrer, no mundo helenístico, aos filósofos em favor de
sua mensagem do Deus único de todos os seres humanos, ao qual todos
deveriam converter-se (1Ts 1,9), depois de ele ter-se revelado a todos em
Jesus Cristo”34. Indícios deste diálogo ou interação já aparecem nas
escrituras cristãs ou no Novo Testamento. Os Atos dos Apóstolos, por
exemplo, fazem referência à discussão entre Paulo e alguns filósofos
epicuristas e estoicos (At 17, 18) e, no discurso de Paulo no Areópago (At
17, 22-34), aparecem alusões a ideias populares de origem predominantemente estoica35. E com os Padres da Igreja esse diálogo se intensificou de
tal modo, que condicionou e determinou radicalmente esse modo de saber
que é a Teologia. Trata-se, sem dúvida, de um diálogo tenso e complexo36
.
Afinal, se, por um lado, a Filosofia grega foi se constituindo “na forma de
teologia”, o que possibilitou sua assimilação pela teologia ou mesmo a
construção de uma teologia filosófica37
, de outra parte, “as declarações das
diferentes escolas filosóficas sobre a realidade divina não tinham todas o
mesmo grau de afinidade com a compreensão bíblico-cristã” e “os teólogos
cristãos sempre tiveram consciência de que aquilo que os filósofos dizem
de Deus não é idêntico, em todos os aspectos, à mensagem bíblica de
Deus”38, diálogo tenso e complexo, mas constitutivo dessa forma de saber
que é a Teologia cristã, tal como é desenvolvida ao longo da história.
Certamente, há momentos altos e intensos desse diálogo ou dessa
interação, como os que se deram com o platonismo a partir do século III e
com o aristotelismo nos séculos XII e XIII39
. Ele ocorre, porém, inclusive,
naqueles casos em que se reage explicitamente contra o uso da Filosofia na
Teologia, como, por exemplo, em Tertuliano, Pedro Damião, Lutero, Barth
e Jüngel40, e continua se dando na atual reflexão teológica41, ainda que nem
sempre de modo crítico e consciente. Além de ser, no entanto, um fato constatável/verificável na
história da Filosofia e da Teologia, a relação ou interação delas parece
estar imbricada na natureza ou na estrutura mesma de seus discursos, ou
seja, parece ser algo constitutivo de ambas as ciências e, assim, uma
necessidade que brota da própria estrutura interna dos discursos teológico
e filosófico, ainda que por motivos e de modos diferenciados.
Da parte da Teologia, não se pode esquecer de que ela se constitui
como um saber radical ou fundamental, isto é, um saber que se volta para
as raízes ou para os fundamentos da realidade que procura inteligir, qual
seja, a presença e ação salvíficas de Deus na história ou a realização
histórica do reinado de Deus; um modo de saber fundamentalmente
filosófico42 e um modo de saber, entre outros. É o que Zubiri chama de
razão ou conhecimento: um saber que busca conhecer as coisas em
profundidade, em sua estrutura fundamental. A Teologia não é a única
forma de saber sobre Deus. Deixando de lado os discursos mitológicos
sobre Deus, passados e presentes, basta recordar outros modos de
intelecção muito mais desenvolvidos e, quiçá, mais eficientes na vida da
Igreja, como são a liturgia, a arte, os exercícios de piedade, etc.43. A
Teologia é apenas um modo de saber – por mais importante que seja e
por mais vinculado que esteja ou deva estar a outros modos de saber – e
um modo de saber que tem uma estrutura semelhante ao modo de saber
que é a Filosofia, sem que isso negue a especificidade da Filosofia e da
Teologia e a consequente diferença entre eles44. Por isso mesmo, ela não pode ser desenvolvida senão filosoficamente, sem que isso signifique ou
implique afiliação a uma escola ou corrente filosófica determinada45
.
Afinal, como vimos, mesmo quando se quer reagir a uma tese/postura
filosófica na Teologia, essa reação é sempre, de alguma forma, uma
reação filosófica. A Filosofia é um momento constitutivo da reflexão
teológica. E não apenas na medida em que ela utiliza conceitos filosóficos
ou, em todo caso, conceitos carregados de conseqüências filosóficas – o
que já seria muito46; mas, sobretudo e mais radicalmente, na medida em
que ela se constitui como um modo de saber semelhante ao modo de
saber filosófico: saber que vai às raízes, aos fundamentos, que procura
explicitar a estrutura essencial da realidade a ser conhecida; saber crítico,
sistemático, autorregrado; numa palavra, saber racional.
Da parte da Filosofia, além de sua histórica vinculação com as
tradições religiosas do mundo grego e, de modo especial, com o
cristianismo, como vimos, convém lembrar que ela (como a Teologia) não
tem um assunto específico que a distinga das demais ciências; ela trata ou
pode tratar de todas as coisas e, assim, distingue-se das outras ciências,
não pelo assunto/objeto/tema, mas, pelo modo de tratamento. E daqui
decorrem duas consequências fundamentais para a relação ou interação
Filosofia e Teologia. Em primeiro lugar, as experiências/tradições
religiosas podem e de fato têm sido ao logo da história assunto da
Filosofia. Ela sempre se confrontou e continua se confrontando com o
fenômeno religioso, procurando compreendê-lo em sua raiz e em seu
fundamento último, criticando seu caráter mitológico e/ou ideológico e perguntando-se por sua função na atividade individual, social e histórica
da humanidade47. Desse modo, o assunto da Teologia cristã (a experiência
cristã de Deus e sua plasmação no cristianismo) pode ser também assunto
da Filosofia. Ela trata de tudo e, portanto, também cuida da experiência
cristã de Deus. Em segundo lugar, na medida em que trata de todas as
coisas desde o seu fundamento último, quando radicalizada e levada às
últimas consequências, desemboca, não raras vezes, naquela realidade
absolutamente absoluta que a tradição judaico-cristã chama Deus ou, em
todo caso, desemboca num âmbito de realidade que permite, ao menos,
postular, de modo razoável – ainda que discutível, criticável ou negável –
uma realidade absoluta como fundamento último de toda e qualquer
realidade48. Trata-se, sem dúvida, de uma questão polêmica e complexa,
tanto no que diz respeito à problemática do fundamento último quanto,
sobretudo, concernente à sua identificação/vinculação com o Deus cristão,
mas, em todo caso, de uma questão razoável e central na história da
Filosofia e na determinação da especificidade do conhecimento filosófico
ou do modo como a Filosofia trata de todas as coisas.
Com efeito, seja pelo modo de intelecção (conhecimento), seja pelo
assunto (experiência cristã de Deus), seja, inclusive e mais radicalmente,
pelo ponto de vista ou pelo modo de tratamento de todas as coisas (desde
seu fundamento último), Filosofia e Teologia estão muito mais
implicadas do que parece, não apenas do ponto de vista histórico (fato),
mas, também, sob o prisma da sua estrutura teórica (necessidade). E,
assim, justifica-se, teoricamente, transpondo as orientações e
determinações do magistério episcopal da Igreja, a inserção de uma
disciplina teológica no curso de Filosofia.
– A disciplina Introdução à Teologia no curso de filosofia.
Depois de esboçarmos a estrutura fundamental da problemática
teológica (realidade – conhecimento) e de justificarmos sua inserção no
âmbito teórico-acadêmico da Filosofia (fato historicamente constatável e
necessidade que brota da estrutura teórica da Teologia e da Filosofia),
apresentaremos o modo como tratamos essa questão na disciplina de
introdução ao pensamento teológico no curso de Filosofia .
Convém explicitar, de antemão, uma dupla dificuldade com a qual
nos confrontamos na determinação do estudo teórico dessa disciplina.
Primeiro, trata-se de uma disciplina nova, tanto como matéria (diferente da
Introdução à Teologia no curso de Teologia), quanto pelo âmbito teórico acadêmico em que ela se insere (curso de filosofia). Segundo, trata-se de
uma disciplina tão próxima da introdução à teologia no curso de teologia, que
não é nada fácil distinguir uma da outra, embora tampouco se possa
desconsiderar ou tornar irrelevante o âmbito teórico-acadêmico onde elas
se inserem sem falar que se trata de uma disciplina de apenas dois
créditos, portanto, de um caráter meramente introdutório.
Em todo caso, cremos que essas dificuldades, na medida em que são
explicitadas e formuladas, contribuem, positivamente, na determinação do
estatuto teórico da disciplina e, consequentemente, em sua estruturação e
organização.
1. Antes de tudo, é uma disciplina de Introdução à Teologia. E no
duplo sentido que a expressão introdução tem entre nós: iniciação (ser
iniciado em) e começo (inicio dos estudos teológicos). Etimologicamente
falando, introduzir – intro (movimento para dentro), ducere (conduzir,
levar) – significa conduzir/levar para dentro de algo. Ser introduzido é ser
iniciado (na capoeira, no terreiro, em determinados ritos, na fé, na vida
religiosa, na universidade, em uma determinada ciência etc.). Acentuamos
o caráter experiencial do saber/conhecimento (conhecer homem/mulher, a
dor, o sofrimento, a amizade, o amor, Deus etc). Ser introduzido na
Teologia, nesta perspectiva, significa ser iniciado na prática teológica.
Aprende-se Teologia, fazendo Teologia. Cronologicamente falando,
introdução significa o começo temporal do processo de iniciação
experiencial do saber/conhecimento, pelo menos num sentido mais
elaborado e sistemático, uma vez que a Teologia como ciência supõe algum
nível de saber, por mais elementar que seja.
Temos então, a primeira característica de nossa disciplina: caráter
introdutório. Ela está pensada como o começo da iniciação na prática
teológica. Como tal, ela prioriza o processo mesmo de iniciação e sabe
que não pode tratar de todas as questões teológicas.
2. Como Introdução à Teologia, a disciplina envolve um âmbito de
realidade (Théo/Deus) e um modo de intelecção (logos/razão) e pode ser
desenvolvida tanto com suporte na realidade pensada (realidade
teologal), quanto baseada na atividade pensante (pensamento teológico).
Ambos os pontos de partida, como vimos, são legítimos.
Embora consciente da congeneridade e codeterminação de
realidade e pensamento no processo de conhecimento, e considerando o
caráter introdutório de nossa disciplina, optamos por tomar como ponto
de partida de nossa Introdução à Teologia a realidade teologal. E por duas
razões fundamentais: 1) o que seja a realidade teologal é tudo menos
evidente. Com a palavra “Deus” designam-se realidades e conteúdos tão
diversos e, quiçá, contrários que põem em xeque sua aparente unidade e
evidência. Mesmo entre os cristãos, não é tão evidente o que seja Deus
(além da formalidade discursiva) ou qual seja seu conteúdo. A unidade
discursiva pode mascarar um pluralismo ou mesmo uma contradição de
fato. 2) Sobretudo no âmbito da Filosofia, “Deus” perdeu sua evidência.
Se, antes, a afirmação de Deus era o ponto de partida da Filosofia, hoje,
sequer chega a ser, muitas vezes, ponto de chega da reflexão filosófica.
Não se trata simplesmente da inevidência do que seja Deus (seu
conteúdo). Trata-se, mais radicalmente, da inevidência de Deus mesmo
(sua realidade).
Dada a importância fundamental da realidade teologal no próprio
processo de intelecção/pensamento (se é verdade que a intelecção de
uma realidade qualquer depende em grande parte das possibilidades
intelectivas do homem, também é verdade que o próprio processo de
intelecção está determinado pelo que seja e como se deixa apreender a
realidade em questão) e sua inevidência cultural-filosófica e, inclusive,
religiosa, convém (justifica-se!) tomá-la como problema ou via central de
nossa introdução ao pensamento teológico. É, certamente, uma
possibilidade; e uma possibilidade estruturalmente articulada à outra
possibilidade (atividade pensante). Uma possibilidade, porém, que, não
obstante sua congeneridade com a outra possibilidade e nessa
congeneridade, tem uma certa primazia (prios)
49: “Na marcha intelectiva,
as coisas começam dando que pensar e terminam dando [ou tirando]
razão”50
.
Temos explicitada, aqui, a segunda característica de nossa
disciplina: a introdução na problemática teológica dá-se com origem no
âmbito de realidade ou do assunto que a Teologia procura inteligir,
presença e ação de Deus na história.
3. Por fim, falamos de uma disciplina de Introdução à Teologia no
âmbito teórico-acadêmico da Filosofia, o que significa, como vimos, que deve estar estreitamente articulada com a reflexão filosófica ou, melhor, que há
de explicitar e desenvolver muito mais os pressupostos e as
consequências filosóficas do que fazer teológico. Se o estudo da Teologia
em geral não pode prescindir sem mais da filosofia, sob pena de perda de
criticidade e rigor teórico, menos ainda o estudo da Teologia na Filosofia.
Esta é, aliás, uma ocasião privilegiada para se confrontar de modo mais
explícito e consequente com os pressupostos e as consequências
filosóficas da reflexão teológica.
Tal confronto pode se dar, no caso de uma introdução à Teologia,
tanto na determinação do modo de saber que é a Teologia (conhecimento),
quanto na abordagem de seu âmbito de realidade (presença e ação de Deus
na história). No caso de nossa disciplina, conforme indicamos no item
anterior, isso se dará, sobretudo, no contexto da determinação do assunto
da Teologia.
Essa é a terceira característica de nossa disciplina: abordagem
filosófica do âmbito de realidade onde emerge a problemática
propriamente teologal e confronto com os pressupostos e as consequências
filosóficas da reflexão teológica.
Com arrimo nessas características, podemos compreender a
ementa e a estrutura da disciplina: inserida no âmbito teórico-acadêmico
da Filosofia, a disciplina Introdução ao pensamento teológico situa-se na
fronteira da Filosofia e da Teologia e tem um caráter duplamente
introdutório: iniciação, começo. Ela visa a introduzir o aluno no
pensamento teológico com procedência na problematização e explicitação da
realidade a ser pensada teologicamente, como condicionante e determinante
(não exclusiva nem absoluta!) do pensar teológico: “problema teologal do
homem”, revelação e fé cristãs, relação teoria – práxis.
Partindo da problematização do estatuto teórico da disciplina,
como fizemos neste trabalho (1), confrontamos o “problema teologal do
homem”, uma análise filosófica do problema de Deus na vida humana
(2), com a experiência cristã de Deus: revelação e fé (3) e concluímos com
a problemática da relação teoria teológica – práxis teologal, cerne da
problemática teológica (4). É a nossa disciplina Introdução ao
pensamento teológico:
I – A modo de introdução
♦ Pensamento teológico – realidade teologal
♦ Caráter introdutório
♦ Natureza do curso: Filosofia-Teologia
♦ Estrutura do curso: problema teologal, especificidade cristã,
relação teoria-práxis
II – “O problema teologal do homem” (Xavier Zubiri)
♦ A realidade humana: religação, marcha intelectiva, experiência
♦ A religião
♦ O cristianismo
III – A revelação e a fé cristãs
♦ “As etapas pré-cristãs da descoberta de Deus” (J. L. Segundo)
♦ Cristologia – Teologia – Antropologia - Eclesiologia
♦ O caráter práxico-salvífico da revelação e da fé cristãs
♦ A parcialidade pelos pobres
______________________________________________
1 CONCÍLIO VATICANO II. Declaração Gravissimum Educaionis sobre a educação cristã, Nº
10, in VATICANO II. Mensagens, discursos e documentos. São Paulo: Paulinas, 2007.
2 Cf. CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. São Paulo: Loyola, 1997.
3
JOÃO PAULO II. Constituição Apostólica sobre as universidades católicas. São Paulo:
Paulinas, 2004, Nº 15.
4
Ibidem, Nº 19. A segunda parte do documento apresenta algumas normas gerais. No § 5 do
artigo 4, que trata da comunidade universitária, afirma: “A educação dos estudantes deve
integrar o amadurecimento acadêmico e profissional com a formação nos princípios morais
e religiosos e com a aprendizagem da doutrina social da Igreja. O programa de estudos para
cada uma das diversas profissões deve incluir uma formação ética apropriada à profissão
para a qual ela prepara. Além disso, a todos os estudantes deve ser oferecida a
possibilidade de seguir cursos de doutrina católica”(Ibidem, Art. 4, § 5).
5 A Coleção Teologia na Universidade das edições paulinas, por exemplo, reflete o atual
esforço de pensar e elaborar essa problemática nas diferentes áreas de conhecimento (Cf.
PASSOS, João Décio. Teologia e outros saberes: uma introdução ao pensamento teológico. São
Paulo: Paulinas, 2010; SOARES, Afonso Maria Ligorio – PASSOS, João Décio (orgs.). Teologia
e direito: o mandamento do amor e a meta da justiça. São Paulo: Paulinas, 2010; BAPTISTA,
Paulo Agostinho – SANCHEZ, Wagner Lopes. Teologia e sociedade: relações, dimensões e
valores éticos. São Paulo: Paulinas, 2011; CRUZ, Eduardo Rodrigues da – DE MORI,
Geraldo. Teologia e ciências da religião: a caminho da maioridade acadêmica no Brasil? São
Paulo: Paulinas, 2011; MARTINS, Alexandre – MARTINI, Antonio. Teologia e saúde:
compaixão e fé em meio à vulnerabilidade humana. São Paulo: Paulinas, 2012;
ALTEMAYA, Fernando – BOMBONATTO, Vera Ivanise. Teologia e comunicação: corpo,
palavra e interfaces cibernéticas. São Paulo: Paulinas, 2012; CRUZ, Eduardo Rodrigues da.
Teologia e ciências naturais: teologia da criação, ciência e tecnologia em diálogo. São Paulo:
Paulinas, 2012; MARIANI, Ceci Baptista – VILHENA, Maria Ângela. Teologia e arte:
expressões de transcendência, caminhos de renovação. São Paulo: Paulinas, 2012).
6 “Em sua significação etimológica ‘teologia’ quer dizer, de modo muito geral, um discurso
sobre Deus, sem que com esta palavra fique definidia a índole do discurso ou da realidade
religiosa que o termo ‘deus’ significa” (RITO, Frei Honório. Introdução à teologia. Petrópolis:
Vozes, 1999, 25).
7 Cf. CONGAR, Yves. La foi et la théologie. Tournai: Desclée, 1962, 125s; LIBANIO, João
Batista – MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo: Loyola,
1996, 62-76; RITO, Honório. Introdução à teologia. Petrópolis: Vozes, 1999, 25-36; BOFF,
Clodovis. Teoria do método teológico. Petrópolis: Vozes, 1998, 548-560
8 O que Deus revela de si é o que ele é em si: “A trindade ‘econômica’ é a trindade ‘imanente’
e vice-versa” (RAHNER, Karl. “O Deus Trino, fundamento transcendente da história da
salvação”, in FEINER, Johannes – LOEHRER, Magnus. Mysterium Salutis. Fundamentos de
dogmática histórico-salvífica II/1: A História da salvação antes de Cristo. Petrópolis: Vozes,
1978, 283-359, aqui 293).
9 Cf. IDEM. “Conceito de Mistério na teologia católica”, em O dogma repensado. São Paulo:
Paulinas, 1970, 153-216.
10 Cf. ZUBIRI, Xavier. Sobre El hombre. Madrid: Alianza Editorial, 1998, 11-41; IDEM.
Inteligencia sentiente. Inteligencia y realidad. Madrid: Alianza Editorial, 2006, 281-285.
11 “A inteligência humana tem, sem dúvida, uma estrutura própria, pela qual se diferencia de
outras notas da realidade humana [...]. Mas o que a inteligência faz, por muito formalmente
irredutível que seja, o faz em unidade primária com todas as demais notas da realidade
humana” (ELLACURÍA, Ignacio. “Hacia una fundamentación del método teológico
latinoamericano”, in Escritos Teológicos I. San Salvador: UCA, 2000, 187-218, aqui 206).
12 Cf, ZUBIRI, Xavier. Inteligencia sentiente. Inteligencia y realidad. Op. cit., 82, 86, 104.
13 Cf. Ibidem, 85s, 99ss.
14 “A constituição da possibilidade real é ela mesma processual e é isso o que se há de
entender formalmente por capacitação; a capacitação é um processo pelo qual se vai
incorporando ao sujeito em questão um poder-poder, um poder possibilitar, um poder fazer
possíveis” (ELLACURÍA, Ignacio. Filosofía de la realidad histórica. San Salvador: UCA, 1999,
554). “O conceito de capacidade busca expressar essa constituição do poder enquanto logra
fazer um poder [...] Com ela, assistimos não simplesmente a algo que diz respeito ao
exercício de uma potência, mas a algo que abre um âmbito ou outro de possibilidades: mais
que atualização de uma ou outra possibilidade, no caso das capacidades, encontramo-nos
com a constituição do âmbito mesmo de um tipo de possibilidades ou outro. Neste sentido,
não apenas se faz algo novo, não apenas se atualiza uma possibilidade, mas se constitui o
princípio histórico do humanamente possível” (Ibidem, 560).
15 Cf. ZUBIRI, Xavier. Inteligencia sentiente. Inteligencia y realidad. Op. cit.; IDEM. Inteligencia y
logos. Madrid: Alianza Editorial, 2002; IDEM. Inteligencia y razón. Madrid: Alianza Editorial,
1983. Para uma visão global e sintética do processo de intelecção na perspectiva de Xavier
Zubiri e Ignácio Ellacuria, cf. AQUINO JÚNIOR, Francisco de. A teologia como intelecção do
reinado de Deus: o método da teologia da libertação segundo Ignácio Ellacuria. São Paulo:
Loyola, 2010, 215-245.
16 ZUBIRI, Xavier. Inteligencia y razón. Op. cit., 71.
17 Cf. IDEM. Inteligencia sentiente. Inteligencia y realidad. Op. cit., 86, 167s
18 Cf. IDEM. Inteligencia y razón. Op. cit., 27-38.
19 Cf. IDEM. Inteligencia sentiente. Inteligencia y realidad. Op. cit., 155ss.
20 Ibidem, 10. Ao contrário do que pensa Clodovis Boff, para quem saber e vida, teoria e
práxis são realidades essencialmente “heterogêneas, ainda que combináveis” (BOFF,
Clodovis. Teoria do Método Teológico. Op. cit., 391).
21 ZUBIRI, Xavier. Inteligencia sentiente. Inteligencia y realidad. Op. cit., 9s. “A suposta
anterioridade crítica do saber sobre a realidade, isto é, sobre o sabido, no fundo, não é senão
uma espécie de titubeio escrupuloso no arranque mesmo do filosofar. Algo assim como se
alguém que quer abrir uma porta passasse horas estudando os movimentos dos músculos
de sua mão; provavelmente não chegará nunca a abrir a porta. No fundo, essa idéia crítica
de anterioridade, por si só, nunca levou a um saber do real e quando o logrou, em geral, foi
por não ter sido fiel à crítica mesma” (Ibidem, 10).
22 “Problemas de Fronteira” é, aliás, o subtítulo de uma das obras de Lima Vaz que aborda
temas situados “nesse território de fronteiras incertas entre filosofia e teologia que se
constitui, ao longo da tradição, em terra natal do pensamento cristão” (LIMA VAZ,
Henrique Claudio de. Escritos de Filosofia: problemas de fronteira. São Paulo: Loyola, 1986, 7).
23 Cf. PANNENBERG, Wolfhart. Filosofia e teologia: tensões e convergências e de uma busca
comum. São Paulo: Paulinas, 2008; LIMA VAZ, Henrique Claudio de. Op. cit.; OLIVEIRA,
Manfredo Araújo de. Diálogos entre fé e razão. São Paulo: Paulinas, 2000; JOÃO PAULO II.
Carta Apostólica Fides et Ratio: sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Loyola, 1998.
24 Quanto à relação entre Filosofia e Teologia, Pannenberg apresenta, com propósitos
sistemáticos, quatro definições de “relação formalmente possíveis” entre elas: “Por um lado,
a relação entre filosofia e teologia foi concebida como oposição e, por outro, procurou-se
identificar ambas. Além disso, subordinou-se a filosofia à teologia ou, inversamente, a
teologia à filosofia”. Mas, adverte: “um exame mais acurado mostrará que essas definições
formais da relação, na melhor das hipóteses, podem assumir o significado de ponderações
prévias e que chegam ao seu limite quando se deparam com a complexidade das maneiras
com que a relação entre filosofia e teologia de fato tomou forma na história”
(PANNENBERG, Wolfhart. Op. cit., 17).
25 Ibidem, 10. “Esse é um dado fundamental para a questão da relação entre filosofia e
teologia. Os filósofos nem sempre estiveram conscientes dele ou, em todo caso, de toda a
sua importância. A filosofia antiga, desde Xenófanes, tendeu antes a conceber esse dado de
modo inverso, ou seja, como revestimento sensível das verdades filosóficas pelas tradições
religiosas. A dependência em que a filosofia se encontra do fato religioso historicamente
anterior a ela só foi apreciada em sua relevância fundamental com o surgimento da
consciência histórica na era moderna, especialmente com Hegel, com sua tese de que a
filosofia confere uma definição precisa à religião que a precedeu historicamente. Desse
modo, Hegel atribuiu à filosofia uma função parecida com a da teologia” (Ibidem, 11)
26 LIMA VAZ, Henrique Claudio de. “Teologia medieval e cultura moderna”, in IDEM. Op.
cit., 71-86, aqui 74. É o que demonstra a obra do grande historiador do pensamento antigo
Werner Jaeger sobre a Teologia dos primeiros filósofos gregos (Cf. JAEGER, Werner. La
teología de los primeros filósofos griegos. México: Fondo de Cultura Econômica, 1998). A
Teologia, diz ele, “é uma criação específica do espírito grego”. Ela é “uma atitude do
espírito que é caracteristicamente grego e que tem alguma relação com a grande importância que os pensadores gregos atribuem ao logos, pois a palavra theologia quer dizer
a aproximação a Deus ou aos deuses (theoi) por meio do logos. Para os gregos, Deus se
tornou um problema” (Ibidem, 10).
27 LIMA VAZ, Henrique Claudio. Op. cit., 74s.
28 IDEM. “Filosofia e modernidade filosófica”. Síntese Nova Fase 53 (1991) 147-165, aqui 153.
29 ZUBIRI, Xavier. Sobre el problema de la filosofia y otros escritos (1932-1944). Madrid: Alianza
Editorial, 2002, 123s. Como bem adverte Antonio González, “não se trata [aqui] de uma
crítica do Cristianismo nem de uma crítica da teologia enquanto tais, mas de uma crítica da
função filosófica que a teologia desempenhou no Ocidente” (GONZÁLEZ, Antonio. La
novidad teológica de la filosfía de Zubiri. Madrid: Fundación Xavier Zubiri, 1993, 6).
30 LIMA VAZ, Henrique Claudio de. Op. cit., 152, 154. Segundo ele, “a ‘modernidade
moderna’ irá reformular de maneira profunda e, mesmo, radical, o modelo das relações até
então vigentes entre filosofia e religião. Essa reformulação consistirá, em suma, na abolição
da estrutura onto-teológica e na sua substituição por uma estrutura que propomos designar
como onto-antropológica” (IBIDEM, 154s).
31 PANNENBERG, Wolfhart. Op. cit., 99-119
32 OLIVEIRA, Manfredo – ALMEIDA, Custódio (orgs.). O Deus dos filósofos modernos.
Petrópolis: Vozes, 2002, 9; Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. “Mediação filosófica no
trabalho teológico”, in A filosofia na crise da modernidade. São Paulo: Loyola, 1990, 173-181;
IDEM. “Filosofia da religião e teologia”, in Op. cit., 183-195; IDEM. “Ética e religião”, in
Ética e racionalidade moderna. São Paulo: Loyola, 174-189; IDEM. “‘É necessário filosofar na
teologia’: unidade e diferença entre filosofia e teologia em Karl Rahner”, in OLIVEIRA,
Pedro Rubens – PAUL, Claudio. Karl Rahner em perspectiva. São Paulo: Loyola, 2004, 201-218;
HÖSLE, Vittorio. “Religião, teologia, filosofia”. VERITAS, 47 (2002) 567-579.
33 Cf, OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. “O Ocidente enquanto encontro entre a metafísica
da natureza e a metafísica da liberdade: o exemplo de Agostinho”, in IDEM. Diálogos entre fé
e razão. Op. cit., 51-73, aqui 51-62.
34 PANNENBERG, Wolfhart. Op. cit., 12.
]
35 Cf. FABRIS, Rinaldo. Os Atos dos Apóstolos. São Paulo: Loyola, 1991, 327-336,
especialmente, 333s.
36 “Quando se percorre a história do encontro entre o cristianismo e a cultura grega desde os
primeiros séculos de nossa era, é possível distinguir duas linhagens de cristãos: uns, desde
Tarciano (c. 120) até Kierkegaard (1813-1855), para dizer o mínimo, propensos a acentuar a
distância e mesmo a separação entre o cristianismo e o mundo ou a cultura profana. Outros, de Justino (c. 105-c.165) a, digamos, Hegel (1770-1839), inclinados a ver no Cristianismo o
ponto mais alto e a consumação do que a cultura não cristã buscava um pouco às escuras”
(NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. Um mestre do ofício: Tomás de Aquino. São
`Paulo: Paulus, 2011, 104).
37 LIMA VAZ, Henrique Claudio de. “Teologia medieval e cultura moderna”. Op. cit., 73.
“Justamente porque a filosofia antiga era teológica, a teologia cristã pôde tornar-se filosófica”
(IDEM. “Filosofia e modernidade filosófica”. Op. cit., 153).
38 PANNENBERG, Wolfhart. Op. cit., 12s.
39 Segundo Lima Vaz, se a teologia cristã se torna “a expressão intelectual mais alta” do
novo ciclo civilizatório que se inicia no ocidente com o cristianismo, isso “se deve ao fato de
ter sido realizada com êxito, a partir do século III em Alexandria, a delicada tarefa de
recepção e assimilação do platonismo pelo cristianismo, da qual nasceu a primeira grande
teologia cristã; operação retomada, com êxito talvez ainda maior, com relação ao
aristotelismo nos séculos XII e XIII” (LIMA VAZ, Henrique Claudio de. Op. cit., 153).
40 Assim, “a teoria estóica do espírito e sua visão de corporeidade do espírito”, permitiu a
Tertuliano afirmar também “a corporeidade de Deus”; embora Pedro Damião rejeite a
autonomia irrestrita da dialética frente à teologia, não rejeita “a dialética em si”; Lutero,
além de ter professado em seu período inicial ser ockhamista, “chegou a defender a tese
estóica de Lorenzo Valla e John Wiclif de que tudo acontece por necessidade, como
descrição do agir onipotente de Deus e de sua providência” (PANNENBERG, Wolfhart. Op.
cit., 18-20); Karl Barth “concebe o Deus cristão utilizando a categoria filosófica de sujeito” e
mesmo quando Jüngel “recorre à revelação cristã para eliminar aqueles conceitos
metafísicos que resultam incompatíveis com as exigências conceituais dessa revelação”,
continua sendo condicionado por “certos pressupostos filosóficos” como, por exemplo, “a
idéia do mal como negatividade” (GONZÁLEZ, Antonio. Teología de la praxis evangélica:
ensayo de una teología fundamental. Santander: Sal Terrae, 1999, 73s).
41 Cf. GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998.
42 Cf. Nota 25. Na verdade, como afirma Lima Vaz, esse modo de saber que é a Teologia se
enraíza em “duas tradições didáticas de grande riqueza: a tradição rabínica com sua apurada
técnica de exegese e interpretação da escritura e a tradição das escolas greco-romanas” (LIMA
VAZ, Henrique Cláudio de. “Teologia medieval e cultura moderna”. Op. cit., 73).
43 Cf. ELLACURIA, Ignacio. “La teología como momento ideológico de la praxis eclesial”, in
Estritos Teológicos I. San Salvador: UCA, 2000, 163-185; GONZÁLEZ, Antonio. Introducción a
la práctica de la filosofia: Texto de iniciación. San Salvador: UCA, 2005, 87.
44 Especificidade e diferença que se revelam, dentre outros aspectos, pelo ponto de partida e
pelo procedimento de cada uma dessas ciências. Enquanto a Teologia parte de uma
experiência concreta de Deus, a Filosofia pode chegar à sua afirmação ou postulação.
Enfrentando-se com uma realidade qualquer, na busca de conhecê-la em suas últimas
determinações, a filosofia chega ou pode chegar à afirmação ou postulação de uma
realidade absoluta como fundamento último de todas as coisas, de alguma forma
relacionável/identificável ao que a Teologia chama Deus. A Teologia, por sua vez, partindo
de uma experiência concreta de Deus, no caso, a experiência cristã de Deus, procura
compreender e interpretar toda e qualquer realidade a partir e em função dessa realidade
experimentada. Neste contexto, é importante ter presente a distinção que Manfredo
Oliveira faz entre uma “teologia filosófica (teoria do Absoluto)” e uma “teologia das
religiões (teoria de Deus)”. Elas possuem “uma unidade temática, ou seja, falam em última
instância da mesma realidade, e uma diferença de horizonte uma vez que uma trabalha esta realidade fundamental a partir unicamente da reflexão humana a respeito do ser em si
mesmo e em seu todo e a outra tematiza as determinações maiores desta mesma realidade,
sobretudo, no caso do judaísmo/cristianismo, a partir da autocomunicação livre de Deus.
Esta diferença se exprime terminologicamente através das expressões Absoluto [própria da
filosofia] e Deus [própria das religiões e suas teologias] (OLIVEIRA, Manfredo Araújo de.
“Filosofia e teologia” – a ser publicado em breve).
45 O próprio Papa João Paulo II diz claramente em sua Carta Apostólica Fides et Ratio que “a
Igreja não propõe uma filosofia própria, nem canoniza uma das correntes filosóficas em
detrimento de outras” (JOÃO PALO II. Op. cit., Nº 49).
46 Como isso se dá sempre, consciente ou inconscientemente, “é preferível um recurso explícito
à filosofia, pois ele nos permitirá determinar com o maior grau possível de consciência qual é o
instrumental filosófico que vamos utilizar” (GONZÁLEZ, Antonio. Teología de la praxis
evangélica: ensayo de una teología fundamental. Op. cit., 74). E, provavelmente, essa é uma
tarefa muito mais da filosofia que da teologia. “É perfeitamente legítimo que a filosofia analise
os conceitos que a teologia pressupõe, precisamente porque eles por si mesmos não
constituem o objeto da teologia”. Além do mais, “ao determinar com rigor o sistema conceitual
utilizado, a Filosofia liberta a Teologia da servidão de conceitos filosóficos incontrolados,
possibilitando à revelação cristã a utilização consciente daquelas categorias que considere
necessárias para sua própria compreensão” (IBIDEM, 75).
47 Cf. IDEM. Introducción a la práctica de la filosofia: Texto de iniciación. Op. cit., 353-400.
48 Cf. ZUBIRI, Xavier. “O problema teologal do homem”, in OLIVEIRA, Manfredo –
ALMEIDA, Custódio (orgs.). Op. cit., 13-20.
49 ZUBIRI, Xavier. Inteligencia sentiente. Inteligencia y realidad. Op. cit., 160.
50 IDEM. Inteligencia y razón. Op. cit., 71.
Fernando Vanini de Maria
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