Significado da palavra “Páscoa”. A grande solenidade pascal judaica, aniversário de sua libertação da escravidão egípcia. Como Deus desenvolveu a festa e banquete pascal patriarcal na páscoa hebraica. Os hebreus libertados para prefigurar como a humanidade havia de ser libertada da escravidão do demônio. As ordens pormenorizadas que Deus deu a Moisés. A páscoa egípcia e a festa dos pães ázimos, prefiguradoras da Crucificação e da Missa. O cordeiro. Hora, lugar e cerimônias do sacrifício. O sangue sobre os umbrais das portas era figura típica da Cruz. A páscoa egípcia e a perpétua; a primeira e segunda páscoas. Tempos em que a páscoa foi imolada no decorrer da história dos hebreus. Como o cordeiro prefigurava Cristo. Origem da Páscoa cristã. Como eles crucificavam o cordeiro. Como Deus expandiu a páscoa patriarcal no tabernáculo e no Templo, e o pão e vinho na festa dos ázimos. Sentidos místicos dos alimentos na antiga páscoa. A rejeição dos sacrifícios judaicos. Josefo sobre a páscoa hebraica. Uma descrição da páscoa tal como celebrada hoje pelos samaritanos. A páscoa celebrada por treze judeus em Sião a que o autor esteve presente, etc.
NA ÚLTIMA CEIA, Cristo celebrou a páscoa judaica segundo o rito hebreu histórico, que remonta aos tempos patriarcais passando por Moisés e pelos profetas, e transformou-a na Missa. Vejamos, pois, a história da antiga páscoa.
A palavra vertida em nossas traduções da Bíblia como “páscoa”, “paschah”, designa a páscoa judaica. A palavra vem do hebraico péssach (“passar adiante de”), porque o Senhor “passou adiante” das casas dos israelitas, no Egito, assinaladas com o sangue dos cordeiros pascais, quando ele matou os primogênitos de todas as famílias e de todos os animais, na noite em que os hebreus foram libertados da escravidão (Ex 12, 29; S. Agostinho, Enar. I in Psal. lxviii; Ser. I, n. ii; Enar. in Psal. cxx, n. v; Enar. in Psal. cxxxvii, n. viii.). Santo Agostinho e São Jerônimo sustentaram que a palavra significa “padecer” (In Joan., t. LV, n. I, etc.; Sermo xxxi, De Pascha, xi, n. I) e que prenunciava a Paixão de Cristo.
Nossa Bíblia diz:
A palavra hebraica quer dizer: “ele saltou”, ou: “não pisou em cima” (S. Agostinho, ibidem.). Tem ainda outro significado, porém: “poupar” ou “usar de misericórdia com”, pois o Divino Filho, naquela noite, “poupou” e “usou de misericórdia com” os hebreus (S. Agostinho, Enar. I in Psal. lxviii; Sermo I, n. ii, iii; Sermo vii, De Pascha, n. I, etc.). A palavra “páscoa” ocorre quarenta e sete vezes no Antigo Testamento (Ver Migne, Cursus Comp. S. Scripturæ, vol. II, p. 182; vol. III, 1141, etc.).
A páscoa que os judeus consideram e celebram até hoje como sua maior festa religiosa — o aniversário da libertação de seus pais da servidão egípcia — cai todo ano na tarde da 14ª lua do mês lunar de ab ou nisan (“germinação”). Os rabis chamam-na de tekufá (“equinócio”); o mês em questão corresponde a fins de março e aos primeiros dias de abril (Zanolini, De Festis Judiorum, c. 4.). É a Páscoa deles, a chave de seu calendário, e rege todas as suas festas móveis e jejuns tal como nossa Páscoa cristã, à qual a deles deu origem, governa nossas festas, jejuns e os tempos móveis do ano litúrgico da Igreja.
Recuando para além da história, nos tempos pré-históricos os patriarcas, munidos de cordeiro assado e de pão e vinho, celebravam páscoa. Mas na noite da fuga do Egito, quando os hebreus se tornaram uma nação, Deus proveu detalhes mais pormenorizados que prefiguravam tipicamente a Paixão do Redentor, a Crucificação e a Missa. Os profetas e santos videntes do Antigo Testamento, guiados pelo Espírito Santo na forma de Shekiná, fizeram adições ao cerimonial pascal até que, no tempo de Cristo, esta festa tinha se tornado um rito elaborado e admiravelmente simbólico.
Devemos ter em mente que, nos escritos bíblicos, três objetos principais eram vistos nesta festa e banquete: o cordeiro pascal da primeira noite, o pão e o vinho; e na festa dos ázimos, que durava uma semana, somente pão e vinho. O primeiro festim caiu na Quinta-Feira, a véspera da Crucificação, e está consagrado para sempre nos escritos cristãos com o nome de Última Ceia ou Ceia do Senhor, que ele consumou e transformou na Missa (Ver S. TOMÁS, Sum. Theo., III, q. 46, Art. 9 ad 1 et q. 74, Art. 4 ad 1, etc.,etc.).
Dado que a Última Ceia foi aquela páscoa hebraica com todo o seu elaborado cerimonial, nós primeiro veremos sua história, seguiremos seus vestígios ao longo das eras e então descreveremos como os judeus de Jerusalém e os samaritanos celebram esta solenidade em nossos dias.
Primeiramente, a Bíblia faz uma descrição completa da festa (Ex 12, 1-51) tal como foi celebrada no Egito. Depois, o pão ázimo (sem fermento) é mencionado junto com a consagração dos primogênitos (Ex 13, 3-10). Sob o nome de festa dos ázimos, ela é unida às duas outras grandes solenidades, a de Pentecostes e a do shabat, em que o cordeiro (em hebraico taleh) é chamado de “meu sacrifício” (Ex 23, 14-19). É feita a relação entre o festival e a redenção dos primogênitos, e as palavras que especificam o cordeiro pascal (Ex 23, 18) são reiteradas (Ex 24, 18-26). A menção ocorre novamente a propósito dos dias de convocação, e das leis relativas à oferta das primícias dos produtos da terra, os bikurim, junto com as ofertas que os acompanharam quando os hebreus fizeram a travessia para a Terra Prometida (Lv 23,4-14). Uma vez mais, a Shekiná (“a Presença Divina”) repete a lei referente à páscoa hebraica no começo do segundo ano após a saída do Egito (Nm 9,1-14), e a segunda páscoa, um mês depois, é preceituada para os que não puderam celebrar a primeira. Regulamentações são reveladas quanto às ofertas sacrificais feitas em cada um dos sete dias do festival (Nm 28,16-25). A última diretiva divinamente outorgada declara o local do sacrifício que o Senhor mais tarde escolherá na “Terra da Promissão”, isto é, ali onde a arca permaneceu até ser posta no Templo em Jerusalém, onde a páscoa judaica era celebrada no tempo de Cristo (Dt 16,1-8). Aqui são citados detalhes mais particularizados do cerimonial festivo.
No décimo dia do mês de nisan os hebreus deviam selecionar o cordeiro, pois neste dia Cristo foi condenado à morte pelo sinédrio em Jerusalém (Ex 12,3). Eles tinham recebido ordens de escolher um carneirinho e conservá-lo até o décimo quarto dia do mesmo mês ao anoitecer, porque à meia-noite depois desse dia, 1.300 anos depois, Cristo foi preso. O festival pascal durava uma semana porque, durante a Semana da Paixão, Cristo foi sacrificado, jazeu no sepulcro e ressurgiu dos mortos (Ex 12,6).
Eles sacrificavam-no de tarde, constando do texto hebraico: “entre as duas vésperas”. As “primeiras vésperas” entre os judeus queriam dizer do meio-dia às três da tarde, e as “segundas vésperas”, das três da tarde até o anoitecer. Às três da tarde, estava-lhes prescrito sacrificar o cordeiro, porque tempos depois, às três horas da tarde, Jesus Cristo, a quem o cordeiro representava, morreu na cruz.
Encontramos essas duas vésperas mencionadas no Evangelho pela palavra “entardecer” (Mt 14,15-28). Segundo os modos hebreus de contar os dias, era ao pôr do sol que começava o dia seguinte, e não à meia-noite (Lv 23,5,6). Esta era a lei relativa às festas (Lv 23,32):
Pelo sacrifício e pelo sangue do cordeiro pascal dos patriarcas, os hebreus foram libertados da escravidão egípcia. O próprio Deus determinou a cerimônia desse sacrifício. O tipo de cordeiro, a hora, o lugar, o rito, a pessoa que devia matá-lo e as pessoas que podiam comê-lo são todos especificados com pormenores circunstanciados (Ex 12).
Três instruções prescreve Deus com respeito à vítima. Esta tem de ser macho, porque Cristo era deste sexo; precisa ter um ano de idade, para significar que o Senhor foi sacrificado na força de sua juventude; não pode ter mancha nem defeito ou nódoa, para prefigurar o Cristo sem pecado (Ex 12,3-5). Durante a noite eles fugiram do Egito; foram então libertados da escravidão egípcia, para significar como na última idade da nacionalidade hebraica na Palestina o Senhor foi preso à noite para ser sacrificado, para libertar o mundo da escravidão demoníaca.
Era primavera, o décimo dia após a lua cheia, depois do equinócio vernal, quando a Terra está entre o Sol a Lua, para todos poderem ver que o escurecimento do sol enquanto o Senhor morria não era causado por um eclipse; e as trevas daquela noite egípcia, quando os hebreus se tornaram uma nação, prenunciava as trevas durante a Crucificação.
Muito embora a ordem fosse imolar um cordeiro para prefigurar o Cristo sem pecado, contudo eles tinham permissão de sacrificar um cabrito como vítima pelo pecado, para prenunciar em sombra ou esboço sensível o Senhor carregando os pecados do mundo. Ele foi assim prefigurado tipicamente por Jacó revestido de peles de cabrito, emblemas do pecado, quando o pai deste o abençoou (Gn 27,16). Todavia, também o cabrito precisa ser de um ano de idade e sem mácula (Ex 12.5; Lv 22,19,20,21,22). Na primeira noite da páscoa judaica somente esses animais podiam ser oferecidos em sacrifício. Mas a solenidade durava do 14.° ao 21.° dia do mês de nisan, e podiam-se comer ovelhas e bois nos dias restantes (Dt 16,2; Nm 28,16 etc.. A cada entardecer desta semana eles celebravam o festim em casa e nas sinagogas. Foi por essa razão que não quiseram entrar no pretório de Pilatos, senão ficariam impuros e não poderiam celebrar os dias restantes da sua páscoa. Eles todos tinham celebrado a cerimônia do cordeiro pascal na noite anterior, e toda noite daquela semana eles deviam ofertar as vítimas dos sacrifícios pacíficos, junto com vinho e com o pão ázimo (não levedado). Essa semana era chamada festa dos ázimos.
Assim era a páscoa maior, uma semana que durava do dia 14 ao 21, observada pelos judeus em todas as suas gerações, para profetizar nossa Páscoa cristã. O primeiro e o último dia eram como os nossos domingos solenes do tempo pascal, o tempo mais santo do ano litúrgico da Igreja (Ex 12,17).
A lei era tão severa que quem não observasse a antiga páscoa devia ser morto:
No tempo de Cristo a pena era a excomunhão.
A circuncisão era um tipo profético do batismo. Somente o hebreu circunciso podia comer o cordeiro que apontava para Cristo, e somente o batizado devia receber a Comunhão (Ex 12.43.44.48).
Se um hebreu estivesse impuro, não podia participar da festa. Ele passava pela cerimônia de purificar-se e, no décimo dia do mês seguinte, podia comer o cordeiro, pois o cristão em pecado mortal, enquanto não tiver sido purificado do pecado mediante o sacramento da Penitência, não pode receber .
Em quatro lugares o cordeiro foi sacrificado. Na noite em que os hebreus saíram do Egito, o chefe de família imolou o cordeiro em casa, porque o sacerdócio hebreu não tinha ainda sido instituído e, como nos tempos patriarcais, o pai de família era então o sacerdote (Ex 12.3).
Eles ofereceram em sacrifício o cordeiro pascal seguinte no deserto do Sinai, no segundo ano depois da saída do Egito (Nm 9). Ofertaram-no novamente depois de atravessarem o Jordão em Gálgala (“o circuito”), enquanto acampavam na baixada nos confins da estepe, com os tamarindos ladeando as margens do histórico rio onde Cristo foi batizado, para prefigurar os cristãos tomando a Comunhão.
Depois de conquistarem a Palestina, eles receberam ordens de sacrificar o cordeiro somente no tabernáculo e no Templo.
Essa ordem foi dada porque o verdadeiro Cordeiro de Deus, tempos depois, havia de ser sacrificado em Jerusalém, onde se erguia o Templo. Até que Davi escolheu o monte Moriá, em Jerusalém, como lugar do Templo, o tabernáculo e a arca da aliança permaneceram, em diferentes épocas, em Gálgala, Siló, Nobé e Gabaon.
Na noite em que saíram do Egito, foi este o cerimonial: eles degolaram o cordeiro, recolheram o sangue
Quando Moisés comunicou aos hebreus a mensagem divina, inclinaram a cerviz e adoraram. Eles seguiram as instruções, imolaram e comeram os cordeiros e aspergiram o sangue. À meia- noite, na hora em que Cristo, séculos depois, era preso, quando ele começou sua Paixão para resgatar a raça humana, o primogênito de toda família e de todo animal no Egito foi morto, como profecia da morte do Primogênito da Virgem cravado na cruz. Esta é a razão pela qual Cristo é chamado o “primogênito” sete vezes no Novo Testamento.
A impressão geral é que Deus enviou um anjo, chamado “anjo da morte”, para matar, naquela noite. Mas não é assim. Porque no texto se lê:
Os autores judeus, bem como essas palavras, mostram que foi o próprio Deus que matou os primogênitos. E, lendo atentamente os escritos deles, vemos que foi o Divino Filho que passou pelo Egito naquela noite, quando libertou os hebreus como profecia do tempo em que ele, tendo se encarnado, com sua morte, libertou toda a raça humana do erro, do pecado e da escravidão demoníacos.
Os hebreus celebraram a festa no Egito na décima quarta lua de abib, ou nisan (Ex 12,6), e no dia seguinte saíram do Egito. Terminava então a escravidão deles.
Seguindo, pois, a história de seus ancestrais e os costumes transmitidos através dos tempos, o Senhor e seus discípulos celebraram a páscoa hebraica no décimo quarto dia do mês, e ele morreu no décimo quinto para libertar a raça humana da escravidão do diabo e do pecado, representada pela servidão egípcia.
Os hebreus não saíram de casa na noite em que celebraram a páscoa, porque receberam ordem de ficar dentro de casa.
No dia seguinte começaram a marcha. Tudo isso prefigurava como, séculos depois, Jesus Cristo celebraria a páscoa junto com seus discípulos; que ele seria preso de noite, e que no dia seguinte, como o primogênito, ele morreu para libertar a humanidade dos laços do pecado e da escravidão do demônio.
Durante a páscoa dos hebreus (Ex 12 e 13), Deus transmitiu instruções que eles não puderam executar naquela noite; diziam respeito às páscoas futuras. Eles não puderam observar o dia seguinte, o décimo quinto, como dia de festa solene, porque estavam em viagem na ocasião (Ex 12,16-51). Não puderam oferecer “as primícias dos frutos da terra” (o Omer) (Lv 23,10-14), porque viajavam, por então, através do deserto, onde nada frutifica. Eles não tinham como imolar os sacrifícios especiais mencionados mais tarde (Nm 28,16-25), tampouco, nem como aspergir o sangue sobre o altar em vez de sobre os umbrais das portas (Dt 16,1-16).
Por essas razões, os autores judeus distinguem meticulosamente entre a “páscoa egípcia”, celebrada naquela noite da fuga do Egito, e a “páscoa perpétua”, celebrada mais tarde na sua história. Tanto os puros como os impuros celebraram a festa naquela noite, mas depois Deus comunicou-lhes instruções especiais (Nm 18,11) e restringiu o festim aos homens somente (Ex 23,17; Dt 16,16). Assim, aconteceu que Cristo e seus apóstolos com ele, sem que mulher alguma estivesse presente, celebraram a festa e banquete no cenáculo, e ali ele ordenou homens somente, vindo daí a doutrina pela qual somente os homens são sujeitos válidos para o sacerdócio. Os salmos que formam o Halel não foram cantados naquela noite, porque só foram compostos no tempo de Davi.
O nascimento e a morte, a origem e o fim da vida eram impuríssimos para o judeu. O primeiro lembrava-os da queda do homem, de que as crianças nascem em pecado original; o último, de que desde os portões do Éden a morte, com sua mão gelada, derruba todos os membros de nossa raça (Gn 3,16-19). Durante as errâncias pelas ermas estepes, no segundo ano depois da saída do Egito, alguns homens tocaram num cadáver, ficaram manchados de impureza cultual e não puderam celebrar a páscoa (Nm 9). Deus mandou Moisés instituir uma segunda páscoa no décimo quarto dia do mês seguinte, promulgando um cerimonial como o da primeira, e esses homens se purificaram e celebraram o festim. Assim como a primeira páscoa hebraica prefigurava nossa Comunhão pascal, assim também a segunda espelhava o tempo vindouro, quando os cristãos, que por causa do pecado não possam cumprir seu “preceito pascal”, podem confessar-se e receber então o “Cordeiro de Deus”.
Os escritores judeus chamam a primeira de “páscoa maior” e a última de “pequena páscoa”, durando esta só um dia, cantando-se nela os salmos do Halel enquanto o cordeiro era sacrificado, mas não durante a ceia, nem havia então a busca por fermento (Talmude, Pesahím, IX, 3: Lex Tal., col. 1766. Ver S. AGOSTINHO, Ques. in Exod., L. II, Ques. XLII; Ques. in Num., L. IX, Ques. XV).
No decurso da história dos hebreus, eles seguiram a lei que Deus mesmo preceituou.
No deserto do Sinai, quando Deus mandou-os celebrar a festa pascal, ele disse:
Uma terceira vez repetiu o Senhor a norma referente a quebrar um osso do cordeiro ou a deixar alguma parte dele até a manhã, e conclui com estas palavras:
Os hebreus não puderam celebrar a festa da páscoa novamente até que acamparam ao redor do Sinai, no segundo ano depois de saírem do Egito, porque eles não podiam ser circuncidados enquanto estavam em marcha. Depois de serem circuncidados e de receberem a Lei e os Dez Mandamentos da ígnea Shekiná (Ex 20), o Espírito Santo, que cobriu o Monte Sinai, Deus renovou o preceito referente à páscoa (Nm 9,9), para prenunciar como Cristo primeiro pregou seu Evangelho e só então foi sacrificado. Eles não observaram a páscoa pelos trinta e três anos seguintes, na sua marcha através dos desertos arábicos, porque os homens não podiam ser circuncidados durante suas contínuas errâncias. Mas quando atravessaram o Jordão seco e acamparam em Gálgala, dentro da Terra Prometida, Josué ordenou o rito da circuncisão, e então eles celebraram a páscoa (Js 5,2).
Sob a égide dos Juízes, eles raramente celebraram a páscoa, porque estavam continuamente em guerra contra os idólatras ao seu redor. Mas assim que veio a paz eles celebraram a festa e banquete com grande solenidade, toda páscoa. Com o passar dos tempos, novos ritos e cerimônias foram adicionados à páscoa judaica, cada um dos quais uma revelação do sacrifício do Calvário e da Missa. Vamos descrever os mais notáveis.
Quando o bom rei Josias trouxe de volta os judeus, apartando- os da idolatria que tivera início sob Salomão, ele ordenou ao povo, dizendo:
Mais tarde, “o rei Ezequias enviou por todo o Israel e Judá e escreveu cartas a Efraim e a Manassés, para que viessem à casa do Senhor em Jerusalém e celebrassem a páscoa do Senhor, o Deus de Israel” (2Par 30,1-5). Conta o relato que os sacerdotes recebiam das mãos dos levitas o sangue, que era esparramado (2Par 30, 16), mostrando que somente sacerdotes podiam sacrificar o cordeiro nos tempos dos reis judeus.
Depois do cativeiro, o rei Dario da Pérsia deu ordens de procurar na biblioteca os livros santos, e decretou o renovamento dos sacrifícios.
Uma vez mais, o Senhor renovou o mandamento da páscoa por meio do profeta Ezequiel, depois de o templo de Herodes lhe ser mostrado em visão (Ez 45,21).
Os escritos hebraicos mostram que foi durante a páscoa que o evento principal da história dos israelitas aconteceu como aurora do Cristianismo a despontar sobre o mundo antes da Encarnação do Sol da justiça. À meia-noite da páscoa, Abraão dividiu seus exércitos e subjugou seus inimigos (Gn 14,15); Sodoma junto com toda a gente perversa foi destruída, enquanto Lot, que na cidade repleta de pecadores assava os bolos ázimos pascais, foi o único a ser salvo (Gn 19,8). Para Abraão, durante essa festa, apareceu o Filho de Deus com um anjo de cada lado seu (Gn 18). Durante a páscoa, Jacó lutou com um anjo e o venceu (Gn 32); o exército do príncipe de Haroset foi destruído (Jz 4); o ídolo de Bel foi derrubado, e sonhos revelaram o futuro a José.
Na noite da páscoa, o orgulhoso Baltasar, rei da Babilônia, celebrou seu festim no grande palácio às margens do Eufrates; dentro dos muros impenetráveis da cidade, ele louvou seus ídolos, zombou do Deus de Israel, pediu que lhe trouxessem os vasos sagrados do Templo de Salomão e com eles bebeu à glória de seu reinado e dos deuses da Babilônia.
Na parede do grande salão do banquete apareceu a mão de luz, escrevendo a sentença de condenação sobre ele e sobre seu reino, a qual somente Daniel conseguiu ler para o rei, os sátrapas, os governadores e as concubinas tomados de pavor, enquanto os exércitos de Ciro penetravam a cidade condenada marchando através do leito seco do rio que tinham desviado de seu curso. Naquela noite de páscoa, a Babilônia foi capturada, o rei e os nobres foram mortos. Mais tarde Ciro, vendo seu próprio nome predito por Isaías, mandou de volta os judeus para reconstruírem a cidade e o Templo destruídos (Dn 5).
Na páscoa, as terras de Mof e Nof foram varridas da idolatria, Ester orientou os hebreus a jejuar, e Amã foi crucificado. Todos os milagres que Deus realizou pelos hebreus aconteceram durante esta festa, a fim de prenunciar a libertação do gênero humano por Cristo, que havia de ser crucificado no segundo dia desta festa.
A ordem da páscoa judaica no tempo de Cristo, tal como consignada na Escritura, era a seguinte. No décimo dia (Ex 12,3) o cordeiro era selecionado, lavado e amarrado a um estaca até o 14.° dia do mês lunar, dia em que eles vasculhavam a casa à procura de fermento (Ex 12,15). Durante esta sua grande semana santa, eles só podiam comer pão sem fermento, prefigurando nossa Semana de Páscoa e a recepção dos sacramentos (Ex 12,15).
Todos os hebreus do sexo masculino, que não estivessem manchados de impureza legal, sob pena de morte deviam comparecer ao santuário nacional, o Templo santo (Dt 16,16-17), trazendo uma oferta em proporção a seus meios, prenunciando as ofertas pascais em nossas igrejas. A toda festa se levava uma oferta, mas este era o festival principal e o mais antigo, e muitos dons valiosos eram trazidos. Parte dessas contribuições era gasta com as ofertas queimadas, e o restante, com hagigá, conforme diz o Talmude (Hagigá, 1, 2 etc). Normas especiais tocavam ao primogênito (Ex 13,15).
As mulheres subiam a Jerusalém junto dos homens (1Rs 1,7; Lc 2,41-42), mas não comiam então a páscoa com os homens (Ex 23,17; 34,23; Dt 16,16, etc), nem tampouco pregavam ou participavam como lideranças na sinagoga. O festim era celebrado ao entardecer do décimo quarto dia do mês, para lembrá-los de que seus pais, no Egito, celebraram-no nesta noite.
Deus mandou que eles sacrificassem um cordeiro, porque desde os tempos de Abel os patriarcas o sacrificaram, para prenunciar “o Cordeiro de Deus sacrificado desde as fundações do mundo”. O cordeiro era tipo e emblema d’Aquele que havia de vir e carregar os pecados da humanidade, o qual era “como um cordeiro levado ao sacrifício” (Ver S. AGOSTINHO, Contra Littera. Petil., L. II, n. LXXXVII; Isaías LIII, 7). O sacrifício do cordeiro nos tempos patriarcais degenerou em ritos pagãos quando a religião de Adão tinha se obscurecido, e, no Egito e alhures, Júpiter era adorado sob a forma de um carneiro. Os animais antes oferecidos a Deus tornaram-se os deuses do paganismo.
Uma figura impressionante de Cristo era aquele cordeiro pascal. Sua imolação, pela qual os hebreus foram resgatados, prefigurava o resgate de toda a raça humana pelo sacrifício de Cristo. Seu sangue, aspergido sobre os umbrais das portas, apontava para o sangue do Senhor aspergido sobre a cruz, pela qual somos redimidos do pecado e do inferno. O “Anjo da morte”, Deus Filho ferindo os egípcios, indica a morte da alma pelo pecado quando não remida pelo sangue do Redentor. O cordeiro imolado de noite era tipo do Cordeiro de Deus preso à meia-noite, sacrificado nas trevas da infidelidade ao fim da nacionalidade hebreia, tipificada pelas trevas que caíram sobre o Egito e durante a Crucificação.
O cordeiro sendo sacrificado pelo povo inteiro apontava para aquela hora, mais tarde, em que a nação inteira bradou: “Crucifica- o.” “O seu sangue esteja sobre nós e sobre nossos filhos.” O cordeiro não podia ter mancha nem defeito, para exprimir sensivelmente um prenúncio do Salvador sem pecado. Podia-se sacrificar um cabrito na páscoa judaica, em lugar de um cordeiro, porque o bode representava Cristo carregado com os pecados do mundo, assim como o bode expiatório carregava os pecados de Israel. Jacó revestido de peles de cabrito hirsutas, quando seu pai o abençoou, prefigurava o Senhor carregando os nossos pecados. O cabrito era preparado e assado igual ao cordeiro.
O cordeirinho não podia ter mais de um ano, para prenunciar Cristo sacrificado na força de sua juventude, e tinha de ser sem defeito, emblema do Cristo sem pecado. Era separado do rebanho no décimo dia de nisan, ou abib, porque nessa Segunda-Feira o sinédrio ou tribunal local de Jerusalém havia de condenar à morte o Senhor, e nesse entardecer Cristo escondeu-se na Gruta no monte das Oliveiras. Esses pormenores encontramos na Lei de Moisés. Mais tarde os profetas e grandes Videntes de Israel, seguindo as instruções da Shekiná, adicionaram mais pormenores ao cerimonial. O líder do grupo de judeus seleciona o cordeiro; lavam-no as mulheres, assim como Cristo se abluziu com um banho antes da páscoa. Enviavam-no com perfumes para exprimir visivelmente, embora em sombra, como um presságio do odor das boas obras da humanidade do Senhor. Amarram-no a uma estaca colorida, assim como Cristo foi fixado à sua cruz. Uma vez selecionado, chamavam- no de “cordeiro de Deus”, nome com que João Batista chamou o Salvador (Jo 1,29). Untavam-no com óleo, assim como o Senhor foi ungido pelo Espírito Santo para ser o Messias (“o Jehová Ungido”, em grego: “o Cristo”). Porque o sumo sacerdote, o rei, o juiz e o governante de Israel eram ungidos e mãos de ordenação impunham-se sobre ele (Ver MIGNE, Cursus Comp. S. Scripturæ, vol. II, 863, 873.).
O cordeiro era a imagem mais impressionante de Cristo dentre todos os diversos sacrifícios do Templo. Assim, de manhã e de tarde, com um cerimonial esmerado como uma Missa solene pontifical, presidindo o sumo sacerdote, um cordeiro era sacrificado no Templo. A imolação diária do cordeiro no Templo e a manducação de sua carne faziam as vezes então do que são hoje a Consagração e a Comunhão durante a Missa. Mas o sacrifício do cordeiro pascal era ainda mais impressionantemente típico de Cristo.
O cordeiro era imolado pelos sacerdotes no Templo, para prefigurar como o sacerdócio judaico mais tarde havia de exigir de Pilatos a execução do Salvador. O sangue era aspergido sobre o grande altar dos holocaustos, tal como o sangue de Cristo foi salpicado sobre a sua cruz. O cordeiro era esfolado, assim como Cristo foi flagelado. Em seguida o cordeiro morto era levado para a casa da família judia.
Ali eles atravessavam seu corpo de cima abaixo com uma vara de romãzeira, enfiando-a por baixo até sair pelos tendões das patas dianteiras. Eles estavam proibidos de usar espeto de metal, porque o Senhor havia de ser crucificado numa cruz de madeira. Abriam cuidadosamente o corpo e enfiavam de través uma vara de romãzeira nos tendões das patas dianteiras, como fazem os açougueiros hoje em dia. Chamavam essa operação de “a crucificação do cordeiro”, para prefigurar Cristo com as mãos e os pés pregados na cruz. A vítima, agora, eles chamavam de “o Corpo do Cordeiro”, ao que Cristo aludiu na Última Ceia, quando disse: “Isto é o meu Corpo”. Era desse modo que o cordeiro era preparado, séculos antes de Cristo.
Assar era a maneira original de cozinhar carne, e os patriarcas, que eram pastores, prendiam a carne na ponta de espetos, cuja extremidade oposta era fincada no solo, a fim de que a carne assasse sobre a fogueira na frente da tenda deles. Desse modo costumavam assar cordeiros, frangos e animais inteiros. Na Arábia, no Egito e no Oriente em geral, tu verás os beduínos assando carne dessa forma.
O cordeiro crucificado era em seguida colocado no forno, suspenso na sua cruz, sem deixar a carne dele tocar no forno, para prefigurar como Cristo ficou completamente pendurado na cruz. Assim o cordeiro era assado, para que seu corpo fosse penetrado pelo fogo, tal como o fogo da Shekiná, do Espírito Santo, enchia Cristo de amor pela raça humana, impelindo-o a morrer por nossa salvação. Depois de cozinhado, o cordeiro era posto sobre a mesa, e era um impressionante retrato profético do corpo de Cristo morto na cruz, sua pele toda arrancada pela flagelação, com o soro amarelo escoando, e ressecado, fazendo-o parecer como se tivesse sido assado.
A carne só podia ser comida dentro de casa, nenhuma parte podia ser transportada para fora (Ex 12,46), porque a Comunhão só se recebe na Igreja Católica, e não nas seitas, que não têm ordens sacras — um sacerdócio ordenado. Não menos de dez nem mais do que vinte membros formavam um “grupo” para comer o cordeiro, para espelhar a assembleia reunida para a celebração da Eucaristia. No décimo dia de nisan (Ex 12,3) em que os hebreus celebraram sua primeira páscoa, eles sacrificaram o cordeiro no shabat, para prenunciar que no domingo, o shabat cristão, o verdadeiro Cordeiro de Deus seria sacrificado em nossas igrejas.
As águas do Nilo foram transformadas em sangue; no cerimonial do tabernáculo e do Templo, o sangue das vítimas era derramado sobre o altar; eles estavam proibidos de comer carne com sangue. Mesmo em nossos dias, os judeus se queixam de que a carne “koshef, completamente drenada de todo sangue, é sensaborona. O que esses ritos da religião judaica significavam? Destinavam-se a propor à inteligência deles o valor da vida humana. Eles se esqueceram de todas essas coisas naquela fatídica Sexta-Feira, quando a inteira nação exclamou:
O sangue do cordeiro pascal foi aspergido sobre os umbrais das portas de suas casas, como um tipo, uma profecia, do sangue de Cristo aspergido sobre sua cruz. Os primogênitos das famílias que moravam nas casas marcadas com o sangue foram salvos, naquela noite. E Moisés com o sangue do cordeiro aspergiu Aarão, os filhos deste e todos os utensílios do tabernáculo.
O cordeiro inteiro era ingerido, com cabeça, patas, entranhas, etc., para indicar-nos que sob a aparência do pão e do vinho nós comungamos Cristo inteiro, recebendo ambas a sua divindade e a sua natureza humana. O que tinha sobrado após o festim não pode em absoluto ser levado para fora de casa, mas destinava-se a ser queimado naquela noite (Ex 12,8,9,10), para prenunciar como o corpo do Senhor foi removido naquela tarde em que ele morreu.
O cordeiro era comido pelos judeus tendo eles a cinta afivelada, os pés calçados, cajado em mãos, vestidos como para viajar, porque nós, como sacerdotes, tomamos da Comunhão revestidos dos paramentos litúrgicos, em viagem rumo à nossa casa, não na Palestina como os judeus, mas no céu, o verdadeiro lar e pátria do cristão.
No décimo quinto dia, o dia seguinte, no tempo de Cristo os hebreus congregavam-se no Templo para participar da grande celebração, faziam reuniões santas em suas sinagogas, guardavam o dia como um shabat e não faziam trabalho algum, salvo o necessário para preparar a comida (Ex 12,16). Neste dia e nos seis dias seguintes, dois novilhos de touro, um carneiro, e sete cordeiros, de um ano de idade, eram ofertados no Templo (Nm 28,16-21). Com farinha temperada com azeite, eles faziam bolos de pão não levedado e ofereciam-nos no Templo, para prefigurar a Missa. No décimo sexto dia acontecia a cerimônia do Omer, uma figura impressionante da prisão de Cristo na noite em que foi traído.
Na história de Abraão e de sua descendência, o “Germe da mulher que havia de esmagar a cabeça da serpente”, Deus compendiou em história profética o futuro das nações. Natureza, história, bênçãos, símbolos, cerimônias e graças fundem-se para dar um sentido especial à grande festa e banquete. O Novo Testamento está repleto de alusões à saída do Egito, solenidade festiva que aparece sob os nomes de “paschah”, a páscoa, o cordeiro pascal, o pão e vinho, a Última Ceia, o Sacrifício Eucarístico.
Nas regiões que fazem fronteira com desertos, como a Palestina, as plantações são feitas no outono e a colheita se faz na primavera, e assim a páscoa dos hebreus — quando Deus reuniu consigo Israel tirando-o da escravidão na terra do Nilo, e para prefigurar quando havia Cristo de resgatar a humanidade da perdição — caía no meio do mês de abib, mais tarde chamado nisan, ambas palavras com o sentido de “germinação”, “espigas verdes” . Era “o princípio dos meses, o sétimo mês” — o mês sagrado, lembrando-nos dos sete dons do Espírito Santo, dos sete sacramentos. A Bíblia toda é perpassada pelo símbolo sagrado sete, e em setes foram escritos os Evangelhos no original grego. Da maneira mais espantosa estão entrelaçados como se o primeiro Evangelista tivesse escrito por último, e o último por primeiro, e inteiramente entremeados uns com os outros sob a inspiração do mesmo Divino Espírito. Desde os tempos dos Apóstolos os Evangelhos provaram-se inexpugnáveis ante os ataques dos infiéis.
Desde os tempos de Adão que, nos Livros da Bíblia, a festa primaveril da páscoa foi celebrada pelos patriarcas com cordeiro, pão e vinho. Quando Deus instituiu o cerimonial hebraico, ele ampliou o rito pascal tornando-o no grandioso cerimonial do tabernáculo e do Templo de Salomão. A majestosa liturgia e serviço do Templo da época de Cristo nada mais era que uma extensão da páscoa dos patriarcas.
A páscoa patriarcal, com o cordeiro assado prenunciando a Crucificação e com o pão ázimo da Última Ceia e da Missa, fora transmitida desde tempos pré-históricos até chegar aos hebreus que viviam na servidão egípcia. Contudo, na noite de sua libertação, Deus ordenou que ervas amargas se adicionassem ao rito, para lembrá-los da amarga escravidão que a raça deles tinha sofrido na terra do Nilo. Mais tarde, Deus revelou-lhes as leis dele e estabeleceu o cerimonial do tabernáculo, calcado no cerimonial mais simples de seus antepassados, os patriarcas. Todavia, com a passagem das eras pelo mundo, profetas inspirados adicionaram novos ritos, novos objetos e uma riqueza de pormenores à páscoa hebraica e ao culto praticado no Templo, uma e outro repletos de tipos, figuras e emblemas da Crucificação e da Missa.
O pão não fermentado prolongou-se na festa dos ázimos, celebrada durante uma semana. Entretanto, para mostrar que a Crucificação e a Missa eram um só e mesmo sacrifício, essa série de grandes festejos foi atrelada à páscoa celebrada na primeira noite. Assim, a páscoa e a festa dos ázimos, muitas vezes chamadas pelo mesmo nome, jamais estiveram separadas, mas sempre entrelaçadas uma com a outra.1 Vejamos agora os outros alimentos que se consumiam na páscoa judaica e o seu sentido místico, notando que a história nada diz sobre a época em que foram introduzidos.
O beemot (“uma fera enorme”), representado durante a páscoa dos hebreus por uma travessa de carne, designava ou o hipopótamo (“cavalo fluvial”), ou o elefante (“animal principal”). O primeiro é uma variedade corpulenta da família da vaca, assim como o búfalo, e os Padres afirmam que prefigurava o demônio subjugado, não por Jó com sua doença de pele, mas por Cristo na sua Paixão e morte.
Os escritores judeus, o Talmude e outras obras apresentam exageradíssimas descrições e histórias atinentes a esta fera. Segundo eles, era o maior de todos os animais quadrúpedes que Deus fez, no princípio, macho e fêmea. Ele matou a fêmea, preservando sua carne para os escolhidos, quando da vinda do Messias; o macho vive ainda e será abatido pela raça dos hebreus, quando ressurgirem dos mortos, no fim do mundo. Eles têm muitos sonhos extravagantes desse tipo, acerca desse animal.
O Senhor falou a Jó do Leviatã (Jó 40,41), chamado em hebraico Ivyathan (“grande animal aquático”), a baleia ou outro bicho marítimo, que Jó não conseguia pescar com um anzol (jó 40,20).
O prato de carne e os peixes da mesa pascal judaica eram figura do elefante e da baleia, significando, para os hebreus, o primeiro a Assíria e a última o Egito, ambos antigos inimigos de seus ancestrais. Mas uma leitura atenta de Jó (40) mostra que não só esses países são significados, como também os demônios, inimigos da raça humana. Jó, com sua terrível doença cutânea e sua paciência nos sofrimentos, não subjugou os demônios, que na inocência dele provocaram-lhe todos esses sofrimentos, mas ele aponta para Cristo, com a pele dilacerada na flagelação, morto pelos homens, pois Cristo havia de subjugar os demônios, representados por essas enormes feras da Escritura. Nesse sentido, Isaías prediz que “O Senhor com sua espada grande e rija visitará Leviatã, a serpente fugidia, e Leviatã, a serpente tortuosa, e matará a baleia que está no mar” (Is 27,1), manifestando que mesmo com toda a força e com as malignas artimanhas com que ele, na serpente do Éden, enganou a humanidade, ele seria derrotado pelo Redentor, ou seja, ele teria o seu poder arruinado.
No tempo de Cristo, cada gesto ou ação, cada rito, cada objeto e todas as cerimônias traziam à vista deles mais clara e distintamente o seu Messias, predito a vir, a morrer em expiação pela maldade do mundo, e a levar nossa raça de volta para a inocência perdida no Éden. Mas para além da Crucificação, enquanto viver a nossa raça, a história devia continuar na Missa, com seu rito e cerimonial elaborados.
A Última Ceia de Cristo e sua morte no dia seguinte haviam de realizar, consumar, encerrar a páscoa judaica, o Templo, o Antigo Testamento e tudo o que estes prenunciavam. Ora, o último dos videntes inspirados hebreus revelara o repúdio do Templo judeu e de seus sacrifícios, porque o sacerdócio judaico repudiaria Cristo, que então passou para a vocação dos pagãos, para as ofertas sacrificais do sacerdócio cristão, para a Missa em meio às nações.
Vejamos agora o que o célebre historiador judeu diz sobre a páscoa judaica.
Josefo escreve o seguinte:
Agora veremos como os hebreus de nossos dias celebram a antiga páscoa.
Rebelando-se contra a tirania que Roboão, filho de Salomão, ameaçava instaurar, mais de mil anos antes de Cristo, os samaritanos separaram-se dos judeus, e adoravam num templo próprio, que eles construíram sobre o monte Garizim, na Samaria. Rivalizava com o Templo santo, em Jerusalém. Separados dos judeus quanto às crenças e questões religiosas, considerados por estes últimos como “mais vis do que os porcos”, uma hostilidade mútua existiu entre as duas religiões através dos séculos até ao tempo de Cristo, e mesmo até o presente. Ano passado (em 1903) a última família de puro sangue samaritano extinguiu-se, cerca de 250 membros de sangue miscigenado permanecem. Eis o modo como os samaritanos celebraram a antiga páscoa nos tempos modernos. Visitando Naplusa em 1861, George Grove escreve:
O autor citado não observou que os dois espetos formavam uma cruz. A vara transversal abria as costelas como se vê hoje nos açougues ao redor do mundo.
Junto do Rei Eduardo VII, então Príncipe de Gales, na páscoa hebraica de 1862, Dean Stanley chegou à Samaria. No cimo do Garizim haviam se congregado 152 pessoas, os últimos dos samaritanos. As mulheres ficaram fechadas dentro das tendas, os homens se reuniram perto do vértice do pico rochoso de sua montanha sagrada. Quinze homens e seis moços, sacerdotes e levitas, trajavam paramentos sagrados, e os outros homens estavam vestidos de trajes formais de assistir a solenidades religiosas.
Há três mil anos, os samaritanos se separaram da monarquia e religião hebraicas e fundaram sua própria sinagoga cismática. Através dessas eras, o ódio mútuo entre Jerusalém e Samaria foi tão arraigado que mal se falavam uns com os outros. A mulher no poço ficou surpresa quando Cristo pediu-lhe um gole d’água (Jo 4,9). A partir da páscoa samaritana que descrevemos, embora pareça grotesca e peculiar, podemos julgar como era celebrada nos dias de Davi e de Salomão.
O lugar é escolhido fora das portas (Lv 9, 11, etc). Eram muitos os sacrifícios que eles ofereciam fora do acampamento, para prenunciar Cristo crucificado fora dos muros da cidade.
Os homens somente, com exclusão das mulheres, imolavam os cordeiros (Dt 16,16), porque unicamente homens haviam de ser ordenados ao sacerdócio. A hora em que se imolava o cordeiro era de tarde, ao pôr do sol (Dt 16,6), porque nessa hora morreu Cristo. A páscoa se celebrava de noite, antes da meia-noite, que foi quando Cristo celebrou a Última Ceia, e pouco antes da meia-noite ele foi preso (Dt 12,26-27).
Eles comiam o cordeiro pascal com pães ázimos e ervas amargas, chamadas de alfaces bravas pelos hebreus (Ex 12,8). O modo como era assado (Ex 12,8-9), a cautelosa exclusão dos estrangeiros e das mulheres (Ex 13,43), a pressa com que a ceia era comida (Ex 12,11), e aquelas vestes, com a cabeça coberta, de cajado na mão, o cuidado de consumir tudo, a combustão das sobras e dos ossos naquela noite (Ex 12,10), a volta para casa antes do amanhecer (Ex 12,22), mostram-nos como a páscoa era celebrada nos dias dos reis hebreus.
Os levitas, os jovens, sacrificavam o cordeiro e entregavam o sangue aos sacerdotes (2Par 30,16). Eles esfolavam o animal (2Par 35,11), e a crucificação dos cordeiros, a recitação da história da páscoa dos hebreus no livro do Êxodo, as orações e a liturgia — tudo isso dá mostras de remontar aos tempos antes de os samaritanos se separarem dos hebreus.
Na praça diante da Igreja do Santo Sepulcro, no Sábado Santo de 1903, sentou-se o autor, em colóquio com um inglês e seu guia sobre sua jornada, descendo até Jericó e o Mar Morto. O guia observou:
Mas ele não veio. Contratando outro “dragomano”, nós partimos rumo à casa comercial de um judeu de origem americana, ex-oficial de nossas forças armadas, que havia se reformado e ido para a terra dos seus ancestrais. “Eu sei onde ele mora”, disse o guia. Partimos de carruagem, saindo pela porta de Jafa, descendo para oeste, atravessando as ruas novas onde mora quase tanta gente quanto dentro dos muros de Jerusalém; nós encontramos o americano no ato de trancar sua casa, a caminho de participar do festim.
“Sim, eu os levarei para ver a páscoa”, disse ele depois de nos apresentarmos.
Apressamo-nos até à casa do rabino-chefe de Jerusalém. Ele não morava num grande palácio, como fazia José Caifás, naquela noite fatídica em que Jesus Cristo foi conduzido perante ele. Sua casa era uma choupana — um cortiço, nos quarteirões judeus fora dos muros. Os judeus são pobres e perseguidos na terra de seus ancestrais. Toda a glória de Israel se foi, como predisseram os profetas.
Mas nos esquecemos dos arredores quando ficamos em presença desse venerando personagem. Alto, de boa aparência, esbelto, de finas feições, com a inteligência escrita em cada traço de seu rosto, o sangue dos reis, profetas e videntes da raça escolhida correndo em suas veias — ele parecia um novo Abraão. Com acolhida patriarcal, recebeu-nos ele à porta trajando vestes ondulantes de suave cor de malva, com o corte e o formato exatos da túnica talar do sacerdote católico. Uma dignidade bondosa e gentil emanava de sua figura, iluminada pelas velas que ainda ardiam sobre a mesa, enquanto ele nos dizia, em francês polido, que havia acabado de terminar a páscoa. Ele ficaria contente de nos deixar assistir ao festim, mas já tinha acabado, e todos os convidados tinham ido embora.
Fomos até outra casa. Não, ele não nos deixaria ver a páscoa. Ele próprio não tinha qualquer objeção, mas a esposa dele, sim. A mesa estava toda preparada, eles estavam prestes a sentar-se. Conversamos com a esposa dele, oferecemos qualquer quantia de dinheiro, usamos de tudo quanto é argumento.
Fomos ao Hotel Jerusalém, mantido por judeus, e eles recusaram.
Estava ficando tarde; o judeu americano se recusava a andar de carruagem, mas acompanhava a pé ao lado, porque eles não andam de cavalo no shabat. Depois de escurecer, quando terminou o shabat, ele entrou, e nós voltamos depressa para a cidade, subimos a comprida rua de Davi, passando pela Torre de Davi, e paramos diante da rua que segue entre duas casas onde, numa esquina, viveu São Tiago enquanto bispo de Jerusalém, sendo a outra esquina o local da casa do apóstolo São Tomé. Aqui, dispensamos a carruagem e entramos na ruela estreita, indo para o leste uns dois quarteirões. Estávamos no alto de Sião, não longe do cenáculo.
Subindo degraus de pedra do lado de fora, como os que sobem até o cenáculo, vimo-nos num amplo salão, de cerca de seis metros por quatro metros e meio, com uma mesa comprida no centro, coberta com uma branca toalha de mesa. A travessa de cordeiro assado, as ervas amargas, os três bolos de pão sem fermento e outras coisas para a páscoa judaica estavam sobre a mesa.
“Sim”, disse em francês o chefe da casa, depois de sermos apresentados.
Ele era um jovem de uns trinta e três ou trinta e cinco anos, e doze judeus sentaram-se à mesa junto com ele. O judeu nascido nos E.U.A. sentou-se à mão direita do autor, instruindo-o enquanto este tomava notas. O chefe da casa sentou-se à cabeceira da mesa. À direita dele tomaram assento sua esposa, logo ao seu lado, depois o autor e o ex-militar. Os outros convivas tomaram seus lugares dos dois lados da mesa. Os homens tinham em mãos o cerimonial da páscoa judaica. Ao mesmo tempo que o chefe da casa e dirigente do banquete entoava as palavras, eles acompanhavam-no repetindo com ele as palavras, assim como fazem os sacerdotes ao serem ordenados, quando o bispo reza a Missa de ordenação.
Sobre a mesa ardiam quinze velas e lâmpadas. Dois vasos continham flores, um prato com os três bolos ázimos estava à mão direita do chefe, havia por perto duas garrafas de vinho palestinense, uma com vinho branco, a outra com tinto. À frente do lugar de cada comensal havia um grande copo de vidro para o vinho. No meio da mesa, mas na frente do chefe, havia uma travessa com carne assada de boi e de cordeiro junto com peixinhos. Outras travessas ou tigelas tinham ervas amargas, vinagre misturado com sal, o hagigá, pepino, ovos e outras iguarias da páscoa judaica.
Sentados à mesa, cada um apoiou o cotovelo esquerdo numa pequena almofada, em recordação da posição reclinada do tempo de Cristo. Enquanto liam a liturgia, eles balançavam o corpo para frente e para trás, como é costumeiro entre os judeus durante o serviço sinagogal. O festim teve início às 20h30 e durou até às 22h45, abrangendo três seções — ou seja, com dois intervalos de descanso, durante os quais a conversa girou em torno de assuntos gerais, o chefe fumando cigarros e conversando com o autor.
Eles primeiro lavaram as mãos, depois encheram suas taças com vinho, as mulheres realizando esta função. O chefe entoou as orações da bênção sobre o vinho enquanto todos seguravam suas taças, após o que eles beberam a primeira taça. Então o chefe abençoou as luzes. O chefe corta o pepino com uma bênção, molha as ervas amargas no vinagre e passa-as para todos os comensais. Em seguida eles lavam as mãos outra vez e recitam a oração da bênção sobre os frutos da terra.
Tomando o pão, o chefe diz: “Este é o pão da aflição que nossos pais comeram no Egito”, etc. As palavras são exclamadas, enquanto eles balançam para frente e para trás, surgindo as palavras como uma explosão, um zunir de sons, as últimas palavras de toda sentença sendo prolongadas.
“Esta liturgia”, disse o judeu ao lado do autor, “remonta ao segundo Templo, ao tempo de Sedecias (Jr 38). Está escrita no hebraico antigo de Esdras, visto que o de Moisés se perdeu. Mas a cerimônia remonta ao tempo de Moisés.”
Nesta parte da cerimônia, o chefe partiu um pedaço do pão sem fermento, pôs dentro umas ervas amargas, mergulhou o bocado no vinagre e entregou-o ao autor, dizendo: “Toma isto como sinal de amizade.” Isso se fazia sempre que um estranho sentava-se à mesa, desde o tempo de Moisés. Foi este o “pão ensopado” que o Senhor entregou a Judas. Quando João perguntou: “Senhor, quem é?”, Jesus respondeu: “É aquele a quem eu der um bocado de pão molhado, e tendo-o molhado ele o deu a Judas Iscariotes.” (Jo 13,25,26).
Depois de lerem aquela parte referente às dez pragas que Deus enviou aos egípcios, cada conviva molha o dedo no vinho e deixa cair uma gota no chão. Então eles beberam a segunda taça de vinho; a primeira seção chega ao fim, e a conversa agora gira em torno de assuntos gerais.
A primeira parte da segunda seção começa lavando-se as mãos usando água de uma jarra que estava sobre a mesa. A travessa de peixes é trazida para a mesa. O chefe toma o bolo, do prato que tem diante de si, e parte-o em duas partes iguais, tal como o celebrante da Missa parte a Hóstia, enquanto o judeu diz ao autor:
A sopa, com bolos ázimos partidos dentro dela, agora é passada em redor da mesa, cada comensal recebendo à sua frente um prato com ela, enquanto eles cantam, do cerimonial, os salmos que compõem o Halel (Sl 113,114,115,117). O chefe cobriu em seguida os bolos com um guardanapo, assim como o celebrante cobre a patena com o purificatório durante a Missa. Ele pôs o xale de oração sobre os ombros do conviva mais moço, entregou-lhe o prato que continha a metade partida de bolo, e esse moço segurou esse prato com o pão, coberto com a ponta do xale, até perto do final do festim, quando levou-o para o chefe, tal como o subdiácono segura a patena coberta com o véu de patenário durante Missas solenes. Isso pôs fim à segunda seção.
A terceira seção foi inaugurada com as orações de agradecimento. Todos começam juntos o canto, o chefe conduzindo, os doze judeus ficando mais vociferantes, todos unidos em clamorosa ação de graças a Deus. Ao término dessa oração, eles todos beberam a terceira taça de vinho. Um deles foi abrir a porta fechada, que ficou aberta pelo restante do serviço pascal. Um judeu tomou um cálice cheio de vinho e o pôs na soleira da porta, para Elias, o precursor do Messias (Ml 4,5), enquanto era recitada a oração pela vinda do Redentor. Essa taça de vinho ficou em cima do degrau, na entrada da casa, até o fim. Eles não sabiam que João Batista, cheio do espírito do Elias predito, já tinha vindo como o precursor do Cristo.
O balanço dos corpos, a entonação das preces, o clamor das palavras ficam ainda mais veementes quando eles recitam juntos as orações de ação de graças do cerimonial litúrgico. Para frente e para trás, de um lado para o outro eles se movem, numa espécie de movimento comunicado ao corpo todo, segundo diziam eles para que até mesmo seus “ossos louvem ao Senhor”. Eles cantam: “Nós te rogamos, Senhor, salva-nos” como Hosana; e “Abençoa Jerusalém”, palavra esta que pronunciam como se se escrevesse “Barushilem”.
O chefe gesticulou, tomou nas mãos o bolo escondido pelo xale de oração sobre os ombros do moço, partiu e comeu uma parte, e deu a cada conviva uma porção. Bebeu um pouco do vinho, deu sua taça de vinho a cada um à mesa, “e eles todos beberam dela”. Então cantaram eles o hino que o Evangelho menciona ter sido cantado por Cristo e seus Apóstolos (Mt 26,30; Mc 14,26). Esse hino, que se encontra no ritual da páscoa judaica, foi mais regular e musical do que as outras orações. Eles pareciam cantá-lo do fundo da alma. O hebraico em que está escrito é tão regular como uma tabuada matemática. O chefe primeiramente cantou o hino seguindo notas musicais mais regulares, e o grupo respondeu na entonação anasalada peculiar dos orientais, com uma modulação que oscilava entre ascendente e descendente. Isso encerrou o festim.
Nós nos levantamos, agradecemos a todos eles, cumprimentamo-los com apertos de mão e saímos noite adentro. Os pensamentos remontavam àquela Última Ceia, na sala de cima do cenáculo, a pouquíssima distância de onde estávamos então neste andar superior em Sião, quando o Senhor celebrou com seus Apóstolos a páscoa conforme esse cerimonial, e transformou esse rito judaico na Missa.
Citamos o cerimonial da antiga páscoa tal como observado hoje na Samaria e em Jerusalém; vejamos agora o que aquela obra peculiar, o Talmude, tem a dizer acerca da festa no tempo de Cristo.
Fonte: livro Como Cristo rezou a primeira Missa ou a Última Ceia do Senhor