Significado
A palavra “Gula”, do latim, significa “goela”, “garganta”. Além disso, ela também tem um nome técnico, que os gregos utilizavam: “gastrimargia”, que quer dizer, etimologicamente, “loucura do estômago”. Esse último termo é muito interessante, porque deixa claro o que é o pecado da gula: um verdadeiro descontrole do estômago, ou seja, uma desordem no ato de comer e beber.
Vício capital
A gula é um vício capital, ou seja, é responsável por uma série de outros vícios e dela resultam sérias consequências. Para entendermos melhor de onde nasce o pecado da gula, é preciso recordar que, com o pecado original, surgiram três fontes de pecado, que são a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida. Interessa-nos compreender mais profundamente o que é a concupiscência da carne, desordem de onde nasce a gula.
A concupiscência da carne é um desejo desordenado que foi inscrito na alma humana após o pecado original. Trata-se da tendência de aproveitar de modo exagerado os prazeres relativos à nossa carne, prazeres estes que estão intimamente ligados à manutenção da nossa vida individual, ou seja, que provém da alimentação, e da nossa vida coletiva, que provém da relação sexual.
“A concupiscência da carne é o amor desordenado dos prazeres dos sentidos. O prazer não é mau em si, Deus permite-o ordenando-o para um fim superior: o bem honesto. Se liga o prazer a certos atos bons e é para os facilitar e nos atrair, assim, ao cumprimento do dever. 3
Veja que o prazer em si mesmo não é um mal e muito menos um pecado. Afinal, tudo que Deus criou é para o nosso bem e para a nossa alegria eterna. Portanto, o prazer que gozamos na comida, na bebida e no sexo são naturalmente e essencialmente bons. Ocorre que, após o pecado, nasce a concupiscência da carne, uma desordem que leva o ser humano a querer experienciar o prazer a todo custo, dissociando-o de sua finalidade.
Resumidamente, o prazer da comida e bebida é natural e bom. No entanto, quando passamos a buscá-lo acima de tudo e a todo custo, torna-se um pecado chamado gula, que provém da concupiscência da carne, originada do pecado de Adão. Percebam que o desejo de desfrutar constantemente do prazer da comida vai nos tornando escravos de nossos próprios desejos e paixões, o que pode nos levar a perder as rédeas em todas as demais áreas de nossa vida.
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A Gula na Bíblia
No Antigo Testamento e nos mandamentos a gula é tratada como cobiça, ou seja, um desejo de desfrutar dos bens materiais, dos prazeres que eles podem gerar em nós. E a cobiça nos leva pelos caminhos da inveja, faz brotar em nós o ódio por aquele que possui os bens e prazeres que não temos. Também encontramos no Antigo Testamento diversos provérbios que falam sobre a desordem da gula — “Põe uma faca na tua garganta, se tu sentes muito apetite.” 4
Outro episódio do Antigo Testamento que pode ser muito interessante para refletirmos sobre o desejo desordenado de prazer é quando os hebreus haviam saído do Egito e caminhavam no deserto rumo à terra prometida. Deus incrivelmente abriu o Mar Vermelho para que o povo pudesse passar, conduziu-os através de uma coluna de areia que durante a noite tornava-se uma coluna de fogo para aquecer e iluminar o acampamento e deu-lhes o maná que caía do céu todas as manhãs para alimentá-los.
Mesmo assim, brotou um desejo mesquinho no coração de muitos hebreus. Eles ficaram insatisfeitos com o maná e desejaram quase que desesperadamente saborear uma carne. Deus ficou furioso com o seu povo que cobiçou o prazer e menosprezou a graça que todas as manhãs recebiam d’Ele.
Foi assim que Deus pediu a Moisés que dissesse ao povo: “O Senhor vos dará carne, e comereis. E comereis não só um dia, nem dois, nem cinco, nem dez, nem vinte, mas durante um mês inteiro, até que ela vos saia pelas narinas e vos cause nojo: porque rejeitastes o Senhor que está no meio de vós e dissestes-lhe chorando: Por que saímos nós do Egito?”. 5
Por fim, também encontramos repetidas vezes no Novo Testamento, especialmente nas cartas de São Paulo, a importância de não vivermos segundo a carne, porque aqueles que vivem assim “não podem agradar a Deus”, 6 e de deixar de seguir as nossas próprias paixões humanas que almejam os prazeres dos bens terrenos, para que vivamos de acordo com a vontade de Deus. São Paulo também diz que é impuro todo aquele que peca contra o seu próprio corpo, ou seja, que busca os prazeres exagerados da comida, bebida e do sexo. 7
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Como combater a Gula?

Antes de indicarmos o verdadeiro tratamento para o vício capital da gula, vale destacar a classificação das espécies de gula, segundo São Gregório Magno e São Tomás de Aquino. São de cinco formas pelas quais a gula nos tenta, que podem ser relacionadas tanto ao alimento que comemos, quanto à ação de comer.
As duas primeiras espécies de gula são relacionadas ao alimento: a primeira está ligada ao refinamento do alimento, isto é, aos alimentos mais caros, e a segunda ao modo de preparo do alimento, que deve ser meticuloso e de qualidade máxima. Ressalta-se que o problema não está em comer alimentos caros e bem feitos, mas em desejar isso de modo desordenado, constante, comer apenas se corresponder a esses padrões.
As três demais espécies de gula são relacionadas à ação própria de comer: há aqueles que comem antes da hora, ou seja, apressam o momento de comer, aqueles que comem muito e, por último, aqueles que comem apressadamente, isto é, sem o mínimo de postura.
E, finalmente, como podemos combater os males da concupiscência da carne em nossas vidas? Através da virtude que contrapõe o desejo exagerado de prazer, a virtude que chamamos de temperança. “A luta contra a concupiscência carnal passa pela purificação do coração e pela prática da temperança.” 8. A virtude da temperança, como o próprio nome diz, é responsável e capaz de temperar a nossa relação com os bens materiais de todas as origens, seja a comida, o sexo ou o dinheiro. Por meio dessa virtude passamos a enxergar os prazeres da matéria como meios para atingir finalidades superiores e infinitamente maiores.
E uma das formas práticas de aplicar a virtude da temperança é através do jejum, por meio do qual rejeitamos a comida e a bebida a fim de nos tornar donos de nossos desejos e não sermos mais submissos a eles.
Existem várias formas de fazermos jejum. A Igreja nos obriga a fazê-lo apenas em alguns dias específicos, mas em nossa jornada espiritual podemos buscá-lo quando surgir a necessidade, ou seja, quando percebermos que estamos fraquejando na concupiscência da carne.
Assim como o jejum, a abstinência de carne todas as sextas-feiras também pode ser um ótimo meio para desenvolvermos o domínio sobre nossa vontade. Além disso, podemos escolher outros tipos de mortificações para aplicarmos em nosso cotidiano, como tomar banho gelado, dormir sem travesseiro e até mesmo comer alimentos que não gostamos. Todas essas práticas nos ajudam a elevar a nossa capacidade de sermos fortes, dominarmos nossos instintos e deixarmos de ser escravos e dependentes das nossas paixões.
Referências
- CIC 1849
- CIC nº1866
- Ponto 193, A vida espiritual explicada e comentada, Adolph Tanquerey
- Provérbios 23,2
- Números 11, 18-20
- Romanos 8,8
- 1Cor 6,18-20
- CIC, 2530
