DEI VERBUM: 50 ANOS DEPOIS, AINDA UM RENOVADO ESTÍMULO AO ESTUDO DA BÍBLIA NA IGREJA

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar a atualidade da Constituição Dogmática Dei Verbum. Esta constituição foi elaborada pelo Concílio Vaticano II. Sua versão definitiva foi alcançada após uma centena de reflexões e da revisão de quatro documentos (Schema). Seguida à sua publicação desencadeou-se uma série de interpretações e de atividades em torno da Bíblia. Na vida da Igreja desenvolveram-se métodos de análises e de estudo do Texto Sagrado. Ela recobrou seu espaço na vida Eclesial. A interpretação da Escritura na América Latina, mormente no Brasil, aproximou da população a compreensão da Bíblia. Essa abertura para uma interpretação pastoral da Bíblia constitui-se, ainda hoje, a grande atualidade da Dei Verbum. Pretende-se com isso demonstrar que esse caminho interpretativo aberto, bem como a presença da Dei Verbum nos documentos oficiais da Igreja no Brasil é a manifestação cabal da atualidade da referida Constituição Dogmática.

PALAVRAS-CHAVE: Dei Verbum. Concílio. Bíblia. Igreja. Interpretação. Atualidade. Palavra de Deus.

ABSTRACT

This article aims to present the actuality of the Dogmatic Constitution Dei Verbum. This constitution was produced by the Second Vatican Council. Its final version was reached after a hundred reflections and the revision of four texts (Schema). Following its publication a series of interpretations and activities were developed around the Bible. Methods of analysis and study of the Sacred Text were developed in the life of the Church. It has regained its place in ecclesial life. The interpretation of Scripture in Latin America, especially in Brazil, brought the understanding of the Bible closer to the population. This openness to a pastoral interpretation of the Bible is still today the great relevance of Dei Verbum. It is intended to demonstrate that this open interpretive path, as well as the presence of Dei Verbum in the official documents of the Church in Brazil, is the maximum proof of the actuality of the Dogmatic Constitution.

KEYWORDS: Dei Verbum. Bible. Council. Church. Interpretation. Actuality. God’s words.

* Pós-doutorado em Teologia na PUC RJ. Doutor em História eclesiástica pela Gregoriana, Roma e registro na USP. Líder do grupo de pesquisa no CNPq Religião e política no Brasil contemporâneo. Professor na graduação e pós-graduação na PUC /SP.

** Mestrando em Teologia PUC/ SP. É membro do grupo de pesquisa no CNPq Religião e política no Brasil contemporâneo. Especializado em Teologia, história e Cultura Judaica pelo Centro Cristão de Estudos Judaicos (CCEJ - SP) e Docência do Ensino Superior pela Faculdade de Educação São Luís.

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1 INTRODUÇÃO

Pouco mais de cinco décadas marcam a distância que se está do encerramento do Concílio Vaticano II (1962-1965). Um evento considerado uma “flor espontânea de inesperada primavera” (João XXII, 1963, p.39) que marcou profundamente a Igreja. Com ele quase cinco séculos de um conturbado, beligerante e controverso relacionamento com modernidade foi, em certa medida, mitigado, repropondo o lugar da Igreja na sociedade contemporânea.

Como fruto imediato dessa Assembleia Conciliar, as janelas do Vaticano abriram-se aos “sinais dos tempos” (João XXII, 1961), para usar uma imagem cara ao Papa que convocou o Concílio. Esse evento, legou à história eclesial e à humanidade quatro importantes Constituições, nove Decretos e três Declarações. De igual modo e, talvez mais importante, fez reverberar no interior da Igreja um profundo espírito de colegialidade, atualização e renovação sintetizado na palavra italiana aggiornamento, popularizada em diversos ambientes acadêmicos e eclesiais.

Esses longos anos aos quais se alude, no entanto, não foram suficientes para açambarcar a grandeza das reflexões no Concílio produzidas1. Não foi tempo suficiente para recepcionar, de maneira consistente e concreta, a totalidade de suas intuições. Destarte, deve-se mencionar que o Concílio ainda tem muito a ser explorado por teólogos, biblistas e pesquisadores. Conserva, portanto, uma atualidade pujante.

Dentre os documentos conciliares encontra-se a Constituição Dogmática Sobre a Revelação Dei Verbum, que é o objeto de pesquisa deste artigo. Acerca desse documento conciliar pode-se dizer que, desde as consultas preliminares feitas aos bispos, já era salientada sua necessidade. Esses queriam uma reflexão positiva e assertiva sobre a Revelação. Esse imperativo foi assumido quando em 18 novembro de 1965 veio à luz a Constituição sobre a Revelação (Dei Verbum). A magnitude e a necessidade desse documento, desde a primeira hora do Concílio, denotam sua perenidade para os anos imediatamente seguintes e para o tempo presente. 1 Para aprofundar sobre a Teologia da recepção, consultar: THEOBALD, Christoph. A recepção do Concílio Vaticano II. I. Acesso à fonte. São Leopoldo: Unisinos, 2015; CONGAR, Yves. La recepción como realidad eclesiológica. Disponível em: http://servicioskoinonia.org/relat/322.htm Acesso em: 17 jun. 2016 (08hs53).

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Este artigo, de modo específico, apresentará aspectos das contribuições e impulsos que a Dei Verbum propôs acerca do lugar da Bíblia na Igreja. Como caminho metodológico, será feita uma incursão pelo viés trilhado nas sessões Conciliares (e antes delas) pela Dei Verbum até constituir-se como documento conciliar. Desse ponto, apresentar-se-á um sumário dos capítulos e dos temas dessa constituição. Por fim sustentado pelas orientações da constituição, particularmente o capítulo VII, será apresentado como suas intuições sobre o lugar da Bíblia na vida da Igreja, particularmente no Brasil, foram absolvidos favorecendo a interpretação, o uso e a acolhida da Palavra de Deus.

2 DEI VERBUM: DAS APORIAS À CONSTRUÇÃO DE UMA CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA

A Dei Verbum é um dos dezesseis documentos emanados do Concílio Vaticano II. Associa-se a uma única outra constituição como dogmática, a Lumen Gentium. De igual modo, liga-se a Sacrosanctum Concilium e a Gaudium et spes que, embora não sejam dogmáticas, são constituições conciliares, diferentes dos decretos e declarações que despontaram no Concílio. Essa constituição é chamada de dogmática porque versa “sobre uma doutrina de valor normativo para fé da Igreja” (SILVA, 2006, p. 28), no caso a Revelação. A Constituição Dogmática Dei Verbum possui seis capítulos e vinte seis números nos quais busca sintetizar os pontos fundamentais da doutrina católica sobre a revelação Divina. O atual formato desse documento, no entanto, foi precedido por um imenso número de discussões e reflexões (SOUZA, 2015).

Passando em revista a história do Concílio Vaticano II, pode-se afirmar que a Constituição Dogmática sobre a Revelação foi aquela que teve o mais complexo processo de elaboração (LIMA, 2015, p. 249; MENDOZA, 2016, p.558; FISICHELLA, 1992, p. 272). Desde o primeiro esquema até o texto final, foram quatro redações amplamente debatidas. Ela inspirou “onze Congregações Gerais e provocou mais de 174 discursos” (SILVA, 2006, p. 30). Percebe-se, outrossim, desde o escrito inicial até a versão promulgada uma guinada significativa na concepção de revelação que ela açambarcou em seu texto (VASCONCELOS; SILVA, 2015, p. 33) As discussões sobre o esquema da Revelação tiveram debates acalorados (AS I/3, p. 55: AS I/3, p. 26. SOUZA, 2015).

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Após o anúncio da convocação do Concílio, vários passos foram dados até a sua abertura. Dentre eles, pela comissão preparatória (KLOPPENBURG, 1963, p. 109-110) foi organizada uma consulta geral aos bispos, superiores religiosos e faculdades católicas do mundo inteiro sobre eventuais temas que deveriam ser refletidos pelos Padres Conciliares. Entre as inúmeras sugestões que foram remetidas à comissão, foi pontuado que deveria ser feita uma reflexão positiva sobre a questão da revelação (RUIZ, 1969, p. 5; VASCONCELOS; SILVA, 2015, p. 31)

Na primeira sessão conciliar, o tema da revelação foi apresentado. Seu conteúdo foi consignado sob o título Schema Compendiosum Constitutionis de fontibus Revelationis,2 elaborada pela comissão teológica presidida pelo Cardeal Alfredo Ottaviani. Esse Schema, no entanto, apresentou-se como incipiente e incapaz de atender às expectativas dos Padres Conciliares (VASCONCELOS; SILVA, 2016, p. 33; LIMA,2015 p. 249) Essa insatisfação, ao ser transformada em votos, não atingiu os dois terços necessários para que ele fosse rechaçado e definitivamente abandonado. Por isso, foi preciso a intervenção explicita de João XXIII que nomeou uma comissão ad hoc (Comissão mista) para refletir sobre o tema. Ao mesmo tempo, o Romano Pontífice anunciou a elaboração de um novo texto chamado de Divina Revelatione (KLOPPENBURG, 1963, p. 191).

Esse novo texto não teve tempo hábil para ser ajuizado durante a Primeira Sessão Conciliar. Assim, durante o recesso da primeira para segunda sessão, após ser reescrito, - precisamente em maio de 1963 - ele foi enviado aos bispos para uma nova avaliação. Embora tivesse mudanças e uma reflexão mais positiva sobre a revelação, as reações foram adversas e não menos insidiosas (COSTA, 2007, p. 96). Novamente, o texto foi submetido a uma reestruturação devido às imensas críticas. Ele não será, por isso, apresentado na segunda Sessão.

No hiato entre a segunda e a terceira sessão, a Comissão teológica recebeu mais de 280 intervenções escritas (KLOPPENBURG, 1965, p. 94.). Formou-se, assim, uma subcomissão teológica composta por sete Padres Conciliares e por dezenove peritos

2 MENDOZA, Claudia. Logros e Tareas. Disponível em: http://www.academia.edu/. Acessado em: 06.05.2016. (07hs40); “Se habían presentado además a los padres conciliares otros tres esquemas (de alguna manera competidores del documento oficial): 1) Uno elaborado por el Secretariado para la unidad de los cristianos (Stakemeier, Feiner). 2) Otro redactado por K. Rahner y patrocinado por las conferencias episcopales de Austria, Bélgica, Francia, Holanda y Alemania (De reve- latione Dei et hominis in Jesu Christo facta). 3) Un tercero, breve, redactado por Y. Congar (De Traditione et Scriptura)”.

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(COSTA, 2007, p.97;). Seu intento era sintetizar e harmonizar as ponderações que haviam sido feitas bem como alinhavar um texto mais coeso que seria debatido na terceira sessão conciliar, já sob a regência de Paulo VI. Um terceiro esquema, portanto.

No início da terceira sessão Conciliar, esse esquema foi apresentado em aula pelos prelados Francisco Franié, Bispo de Split (Iugoslávia), e Ermenegildo Florit, arcebispo de Florença, Itália, representando as tendências que havia dentro da própria subcomissão (KLOPPENBURG, 1965, p. 95). De um modo geral, o texto foi acolhido com aparente tranquilidade. Esse fato, contudo, não o isentou de pedidos de emendas e alterações. Em pouco mais de vinte dias, essas alterações foram coligidas, aprovadas na Comissão Teológica e remetidas aos Padres Conciliares. O cronograma das Congregações Gerais não permitiria, todavia, que elas fossem ainda debatidas nessa sessão. Ficando, assim, para o quarto e último período do Concílio (SOUZA, 2015).

A última sessão do Vaticano II iniciou suas atividades na segunda metade de setembro de 1965. Conforme assinalado no período anterior, a discussão sobre a revelação foi reproposta e submetida a votação. O terceiro esquema, amalgamando os diversos ‘modos’ – propostas de alterações -, foi submetido à avaliação dos Padres Conciliares e votado ponto a ponto. Sendo aprovado de uma maneira geral, embora lhe tenha sido impingido ainda 1.497 votos modificativos (KLOPPENBURG, 1965, p. 348.) A eles, uma comissão especialmente formada (Comissão Parvum) verteu seus trabalhos, apresentando os resultados para serem sufragados em uma particular Congregação Geral, nomeadamente a centésima quinquagésima quinta.

Tal Congregação deliberou e votou sobre o esquema conciliar, assegurando as devidas modificações3. Discutida capítulo por capítulo, houve ao final um sufrágio do conjunto total do texto que recebeu 2.081 placet, 27 non placet e 07 votos nulos. Desse ponto ela foi remetida ao Sumo Pontífice, que a promulgou em 18 de novembro de 1965. Tendo nesse dia, na oitava sessão pública do Concílio, 2.344 votos favoráveis e 06 contrários(AS IV/5 p. 751-753). De fato, das aporias chegou-se à construção de uma constituição. Surgiu então o que hoje é conhecido como a versão final da Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a revelação.

3 Digna de nota foi a alteração que mudou o nome da constituição de “Sacrossanta Sinodus” para Dei Verbum. Essa questão recebeu 2.194 consignados em 2.169 Placet, 23 no placet e dois votos nulos (KLOPPENBURG, 1964, p. 349).

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3 CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM SOBRE A REVELAÇÃO: PERSCRUTANDO O TEXTO FINAL

A intensa discussão sobre essa Constituição Conciliar, como se apresentou no tópico anterior, não foi fruto apenas de beligerâncias ou disputas dos Padres Conciliares. Antes foi obra de reflexões ulteriores que atingiam toda Igreja. Assim, uma ligeira digressão faz-se necessária, antes de detalhar o documento final, para compreender as ideias que secundavam o Concílio e, consequentemente, forjaram a confecção do texto final (SOUZA; GONÇALVES, 2013)

A Constituição Dogmática Dei Verbum (KASPER, 2016) foi elaborada sobre a reminiscência de inúmeras querelas históricas e imediatamente próximas ao evento conciliar. Elas, de certo modo, remontam a Trento (1545-1563) como questão da reforma e contrarreforma e ao Concílio Vaticano I (1869–[?]) como a Interpretação da teoria das duas fontes da revelação. De igual modo, estão relacionadas a situações imediatamente próximas ao Vaticano II tais como a reflexão sobre os métodos exegéticos (Teoria das Fontes/formas, Formgeschichte) e a relação dos leigos com Sagrada Escritura.

Do Concílio de 1545 e do Vaticano I ainda respingava na antevéspera do Concílio Vaticano II a complexa interpretação das relações entre a Tradição e Escritura (Teoria das Duas fontes). A rigor, era o questionamento protestante, fruto da tese Sola Scriptura, sobre a legitimidade da Tradição para propor em igual autoridade verdades sobre a revelação (VASCONCELOS; SILVA, 2015, p. 37-38).

No que diz respeito aos métodos de estudo da Bíblia, o avanço das ciências em geral cobrava da Igreja uma posição sobre a questão das verdades bíblicas (inerrância da Bíblia). A teoria das formas e aceitação delas gerava, no imaginário de alguns, dúvidas sobre a inspiração divina contida nas Sagradas Letras. “Tratava-se, na verdade de colocar em discussão outro problema igualmente intricado de teologia fundamental: a relação entre revelação e inspiração” (SILVA, 2006, p. 31).

Por fim, a Igreja foi, de certo modo, convocada a refletir sobre o uso e a leitura da Sagrada Escritura (SILVA, 2006, p. 31-32). Movimentos como o de renovação Bíblica, Litúrgica e Teológica reclamavam um uso mais bem aparelhada da Sagrada Escritura na

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vida da Igreja. De outro lado, o crescente interesse dos fiéis acerca do texto bíblico, impingiam uma acurada postura do Concílio sobre a Sagrada Escritura, sobre sua correta interpretação e uso. Desse modo, supunha-se que o Vaticano II, pudesse em algum documento conciliar arguir sobre a Sagrada Escritura.

A questão das fontes da revelação, os métodos exegéticos e o uso da Bíblia refletiram diretamente no documento final Dei Verbum. Segundo Cassio Murilo, essas aporias foram sensivelmente dirimidas dentro do documento conciliar. O problema da intricada relação entre Escritura, Revelação e Tradição foi abordado no primeiro e no segundo capítulos. Os métodos exegéticos e a relação inspiração e revelação foram elucidados no terceiro capítulo. A problemática do uso e da leitura da Sagrada Escritura, por fim, teve lugar nos três capítulos finais(SILVA, 2006, p. 31s).

A Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a revelação, como já se afirmou, possui seis capítulos e vinte seis números nos quais busca sintetizar os pontos fundamentais da Doutrina Católica sobre a Revelação divina. São capítulos que “vão se sucedendo organicamente, indo do mais amplo (revelação, Palavra de Deus) ao mais específico (a Escritura) passando pelos meios pelos quais a revelação se dá ( Tradição e Escritura)” (LIMA,2015 p. 250). Cotejando-a com outras Constituições conciliares, verifica-se que ela é a menor. Seu tamanho, contudo, não reflete, necessariamente, o seu acirrado processo de confecção e a densidade do seu conteúdo.

Após um breve proêmio, no qual é afirmado que nos passos de Trento e do Vaticano I, também o Concílio Vaticano II pretende apresentar uma reflexão sobre doutrina da revelação (DV 1), inicia-se o capítulo primeiro da Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a revelação. Ele anuncia o sentido da revelação: comunicação de Deus à humanidade, desde a criação e definitivamente em Jesus Cristo (DV 4). Não haverá outra forma de revelação. A fé é a resposta do homem a essa revelação e, por meio do Espirito Santo, em seus dons, é aperfeiçoada a fé e o entendimento da revelação (DV 5). A revelação, por fim, é necessária para que o homem chegue ao conhecimento das coisas divinas, que não lhe são vedadas pela luz da razão (DV 6).

O capítulo segundo versa sobre a relação entre Revelação e Tradição. Deus revelado, confiou aos apóstolos a transmissão da fé (DV 7). Estes por sua vez, a outorgaram aos seus legítimos sucessores para que ela fosse sempre viva. O que foi transmitido é o

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conjunto de elementos que conduzem a vida de fé do povo (DV 8). Dela a Igreja retira sua doutrina, vida e culto. Tal tradição, por sua vez, progride pela assistência do Espirito Santo. É nela que se reconhece a inspiração e se compreende melhor a Escritura (DV 8). Tradição e Escritura, portanto, estão intimamente ligadas e de ambas resulta a certeza da Igreja acerca de tudo que foi revelado (DV 9). Elas são um só Sagrado Depósito confiado à Igreja, de onde o Magistério extrai seus ensinamentos. Os três elementos – Magistério, Tradição e Escritura - estão intimamente ligados e, a seu modo, colaboram para salvação das almas (DV 10).

A inspiração, a interpretação da Escritura e a questão da inerrância – termo que a Dei Verbum não utiliza para evitar maiores querelas - são descritos no terceiro capítulo da Constituição Dogmática A Revelação codificada na Bíblia é de inspiração divina e tem Deus como autor (DV 11). Desse modo, aquilo que os hagiógrafos divinos afirmam, deve ser entendido como sem erro e verdadeiro em vista da salvação humana (DV 11). A interpretação dos textos, por isso, deve levar em consideração o que Deus quis manifestar mediante as palavras do hagiógrafo (DV 12) bem como os estilos literários, o espirito que foi escrito, a unidade da Sagrada Escritura, a tradição da Igreja e a analogia da fé. Ao exegeta, cabe pesquisar o sentido dos textos bíblicos e submeter suas conclusões ao juízo da Igreja, seu último árbitro. O uso da linguagem humana para expressar a revelação, por fim, é um ato de condescendência de Deus (DV 13).

O quarto e o quinto capítulos tratam, respectivamente, do Antigo e do Novo Testamento. O Antigo Testamento, afirma o texto, é divinamente inspirado e de valor perene (DV 14). Ele revela a economia da salvação ordenada em vista da redenção de Cristo (DV 15). O Segundo Testamento, por sua vez, atesta o vigor da palavra de Deus (DV 16). Nele, o evangelho tem primazia, pois é o principal testemunho da vida e doutrina do Verbo encarnado e bem gozam de fonte Apostólica (DV 18). Sobre tais narrativas bíblicas, a Igreja atesta a historicidade de suas compilações (DV 19). Entre ambas, deve-se dizer, há uma complementaridade e interdependência (DV 16). Por fim, os demais livros do cânon são assinalados (DV 20).

O Sexto e último capítulo ocupa-se do lugar da Sagrada Escritura na vida da Igreja. Ela é venerada e, juntamente com a tradição, é regra suprema de fé (DV 21). Deve, por isso, estar ao alcance dos fiéis em traduções vernáculas feitas, inclusive em parceria com os

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cristãos e os “ irmãos separados” (DV 22). O esforço para compreendê-la deve sempre mais ser favorecido de forma que alimente os homens no amor de Deus (DV 23). Para a Teologia, a Sagrada Escritura deve ser alma e nutrir os ministérios da palavra como a catequese, a instrução Cristã e a homilia (DV 24). A leitura e o estudo das Sagradas Escrituras devem ser estimulados e sua riqueza apresentada, também na liturgia. Compete, por fim, aos bispos educar para um correto uso da Bíblia e para compreensão dela, compilando, para isso, edições dotadas de notas explicativas (DV 25). Com isso, a palavra de Deus se difundirá e trará novo impulso à Igreja (DV 26).

Percorridos os seis capítulos da Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a revelação e avançando mais de cinco décadas de sua publicação, pode-se observar o impulso que ela possibilitou ao uso e interpretação da Sagrada Escritura na América Latina, mormente no Brasil, e salientar sua vitalidade em estimular leituras dos textos bíblicos que dirimam leituras fundamentalistas que, paulatina e silenciosamente, se dilatam.

4 A ATUALIDADE DA DEI VERBUM: CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CAMINHOS TRILHADOS NO ESTUDO E USO DA BÍBLIA NO BRASIL

A lufada do Espírito Santo sobejada na Igreja com o Concílio Vaticano II inflamou, em grande medida, bispos do mundo inteiro. A partir desses ventos, organizaram-se inúmeras atividades no intuito de recepcionar aquilo que fora refletido e que precisava criar raízes sólidas na realidade concreta das igrejas espalhadas pela orbi. Tratava-se de um caminho não cheio de certezas, mas tomado pela convicção de que o que fora refletido nos quatro anos do Concílio deveria penetrar até as mais profundas camadas da Igreja.

Na América latina, especialmente no Brasil, a recepção criativa e dinâmica do Concílio deu-se em todos os níveis preconizados pelos Documentos Conciliares. Desde a Liturgia até o Ecumenismo, perpassando a eclesiologia e a formação do clero, não faltaram esforços para consumar a “flor de primavera” sonhada pelo “Papa Bom”. No que se refere à Revelação e à Sagrada Escritura, sintetizados na Dei Verbum, pode-se dizer que a Igreja na América Latina não foi menos profícua. De fato, a Bíblia na vida da Igreja situada na “Terra de Santa cruz” galgou patamares significativos, mesmo que ainda estejam aquém do ideal. Desde o acesso ao texto sagrado até a consciência de uma pastoral

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profundamente animada pelo espírito bíblico percebe-se sinais da penetração da Constituição Dogmática sobre a Revelação nessa Igreja.

Algumas afirmações e ideias expressas pela Constituição Dogmática Dei Verbum, particularmente no Capítulo VI, sustentaram uma nova postura face aos textos sagrados e forjaram corpo de uma posição mais apropriada em relação a Sagrada Escritura. A esse respeito, revela o Documento de estudo da CNBB número 97 sobre a iniciação cristã, axiomas como aquele expresso no número vinte da Dei Verbum que assegura a equiparação entre a mesa da palavra e a mesma Eucarística, possibilitou uma maior estima pela palavra de Deus. A sugestão de elaboração de traduções, a acolhida do método histórico-crítico e o incentivo à pesquisa, sugeridos nos números doze, vinte e dois e vinte três da Constituição sobre a Revelação permitiram conhecer melhor e mais profundamente a Escritura (CNBB, 206, 11s). Ações que, como se apresentarão, ganharam espaço na Igreja do Brasil.

Nessa mesma linha, o reconhecimento da primazia do texto sagrado como alma da Teologia, afirmado no número vinte e quatro da Constituição Dogmática sobre a Revelação, bem como a insistência de que ela deveria permear todas atividades eclesiais, fez com que conhecimento bíblico, também, chegasse, de forma clara, ao povo mais simples e se buscasse, sobretudo em tons vividos, passar da pastoral bíblica à animação bíblica da pastoral. Tais afirmações pontuadas, comprova-se que, historicamente, ganharam força substantiva na realidade concreta da Igreja neste país continental.

À guisa de comprovação das ideias acima mencionadas, pode-se dizer que, na área acadêmica, a pesquisa bíblica foi estimulada, programas de estudos pós-graduados com concentração em Sagrada Escritura bem como cursos livres de formação bíblica atingiram indicadores crescentes. A bem da verdade, deve-se dizer, no Brasil, o estudo e a difusão da Bíblia través de semanas bíblicas e cursos por correspondência com ampla penetração em vários estados do país já eram protagonizado pelo Frei José Pedreira de Castro (ASSIS, 1987, p. 17-21), antes do Concílio. A partir do Vaticano II, particularmente em relação à Sagrada Escritura, esse aspecto foi acentuado. Para citar apenas algumas pode-se recordar que os programa de Pós-graduação em Teologia da PUC de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul que possuem, em nível de mestrado e/ou doutorado linhas de pesquisa com ênfase em teologia bíblica. Há, ainda, as Faculdades Jesuítas de Belo

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Horizonte(FAJE) e do Recife (UNICAP) que oferecem linhas de Pesquisa em literatura bíblica.

No campo editorial, inúmeras publicações eclodiram nos anos pós-conciliares, revelando a capacidade hermenêutica latino-americana e assegurando o acesso de um público maior ao Texto Sagrado (SILVA, 2006, p. 22-53) e à literatura especializada sobre a Bíblia. Não raro, pessoas não iniciadas em bibliografia sobre a Bíblia, podem acessar introduções em língua vernácula que ajudam e ampliam a compreensão de textos bíblicos (BARBOZA, 2016). Espera-se que quiçá, do ponto de vista prático, esse aparato concorra para uma leitura dos sinais dos tempos a partir do evangelho (FIUC, 2017, p. 36s).

O apelo às traduções da Bíblia, preconizada pela Dei Verbum, ecoou de forma surpreendente no corpo eclesial. Encontra-se hoje, em diversos níveis, com várias orientações e traduções, exemplares da Sagrada Escritura. Esforços nesse sentido legaram algumas versões que são balizadores no horizonte da caminhada bíblica do Brasil. Alude-se, entre outras, a Edição Ave-maria, uma das primeiras no país, traduzida do francês (MALZONI, 2016, p.69), publicada já antes do Concílio, mas reeditada várias vezes após o Vaticano II.

No período pós-conciliar, em 1967, as Paulinas lançaram uma versão da Bíblia em português, traduzida dos originais para o italiano pelo Pontifício instituto bíblico (MALZONI, 2016, p. 78). Na sequência, a mesma editora apresentou a Bíblia de Jerusalém, traduzida a partir da versão francesa La Sainte Bible, por uma equipe de biblistas católicos e protestantes coordenados pelo Dominicano, Frei Gilberto Gorgulho (MALZONI, 2016, p. 89). Houve outras versões no Brasil decorrentes do apelo às traduções lançado pela Constituição pastoral Dei Verbum, como a Tradução Ecumênica da Bíblia, inspirada na versão francesa conhecida como Traduction oecuménique de la Bible, de 1976. Ela foi publicada no Brasil, em 1996, sob a responsabilidade de Gabriel Galanche e outros estudiosos.

Outras publicações com ideal de oferecer acesso ao estudo e à compreensão da Palavra de Deus foram despontando ao longo dos anos. Cita-se a recentemente reeditada, Bíblia pastoral, vertida desde os textos originais. Ela foi traduzida e publicada em partes (Primeiro o Novo testamento, depois a Bíblia completa). Em sua opção de tradução serviu-se de uma linguagem simples que a popularizou. Há, ainda a Bíblia do Peregrino, tradução

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da versão espanhola, que aportou com um especial subsídio à pesquisa bíblica desde 2002. Ela foi dotada em mais de um quarto (1/4) do seu conteúdo, de notas explicativas favorecendo o estudo e o aprofundamento.

Evoca-se, por fim, a edição comemorativa dos cinquenta anos da CNBB, que hoje está na sua décima quarta edição e tornou-se a base para os documentos dessa instituição. Ou ainda, edição de Aparecida e a tradução da Bíblia - por hora só o Novo Testamento - organizado pela Paulinas. São inúmeras iniciativas de tradução da Sagrada Escritura. Elas atestam a vitalidade da caminhada bíblica no Brasil sob o impulso da Dei Verbum. Não obstante, alerta Cassio Murilo, nesse esforço há, por um lado o benefício do acesso aos textos sagrados de quem não lê os originas e, por outro, o prejuízo da falta de uniformidade nas publicações que usam os textos bíblicos (SILVA, 2006, p. 48).

Na perspectiva da adoção dos Métodos para leitura bíblica, também recomendados pela Dei Verbum, no horizonte brasileiro despontou uma inovadora e promissora metodologia: A Leitura Popular da Bíblia. Sem prescindir do rigor metodológico que o estudo científico da Bíblia exige, essa abordagem aproximou sensivelmente das camadas mais simples da leitura da Bíblia, fazendo-as ler o texto Sagrado sem violentar suas intenções primeiras. Tal método tem seus postulados principais alinhavados pelo carmelita holandês, radicado no Brasil, chamado Jacobus Gerardus Hubertus Mesters ou, simplesmente, Frei Carlos Mesters.

Em linhas gerais, a Leitura Popular da Bíblia consiste em uma tríplice base, a saber: Realidade, Bíblia e Comunidade - pré-texto, texto e contexto (MESTERS, 1984, p. 42). Numa realidade complexa ou beligerante, a comunidade serve-se do texto para iluminar a própria história. Ilumina-se a vida com os textos bíblicos, faz-se uma simbiose entre ambos. Assim, o pré-texto e o contexto são chaves de leitura e lugar hermenêutico do texto sagrado. Interpreta-se a vida pela Bíblia, sem desconsiderar as contribuições da tradição e da exegese, apresentadas, de maneira elementar, às camadas mais simples.

Avaliando o método da leitura popular da Bíblia, atestava Cavalcanti “a originalidade da proposta de Mesters consiste na síntese entre a contribuição da ciência, a orientação secular da Igreja e a novidade hermenêutica gerada no meio dos pobres e oprimidos de hoje” (CAVALCANTI, 2007, p. 76-103). Essa forma de leitura da Bíblia ganhou força nas Comunidades Eclesiais de Base por meio dos círculos Bíblicos e

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representatividade e produção em instituições como Centro Bíblico (CEBI) e o Movimento Boa Nova (MOBON) para citar apenas alguns. Atualmente segue viva, também por iniciativa da CNBB, quando estimula as comunidades à Lectio Divina (CNBB, 2017). Deve-se dizer que o enfraquecimento das comunidades eclesiais de Base e o crescente fundamentalismo das leituras bíblicas, transformaram-se um entrave a uma leitura popular e correta da Sagrada Escritura.

Outro elemento sugerido pela Dei Verbum e assimilado com força na Igreja no Brasil, foi a ideia de animar toda atividade eclesial pelo espírito da Palavra de Deus (DV, 24). A Conferência Nacional dos bispos do Brasil (CNBB) já no ínterim do Concílio Vaticano II, através do Secretariado de Pastoral, empenhou-se, juntamente com a Liga de Estudos bíblicos, para “oferecer uma tradução brasileira da Bíblia” (BARBOZA, 2016) aos fiéis. De igual maneira, na tentativa de aproximar a Bíblia do povo e animar a pastoral, o Documento Catequese Renovada foi um instrumental singular e uma sensível passo no sentido de permear a pastoral pela Bíblia sobre a influência da Dei Verbum. Esse documento catequético associado à Constituição sobre a Revelação, afirma Barbosa, foi o que fundamentou a alteração do nome no plano de ação Pastoral da CNBB de Linha Catequética para Dimensão Bíblico-catequética na 29ª Assembleia da Conferência, em 1991 (BARBOZA, 2016). Tal alteração impulsionou seminários, publicações e popularização de textos4, outrora restritos ao universo acadêmico, as camadas mais simples de forma consistente e aprofundada.

No universo menos distante, na esfera institucional da Igreja no Brasil, com o intuito recobrar a vitalidade da Dei Verbum ainda se encontram diversas propostas. A Exortação Apostólica pós-sinodal Verbum Domini que em muito do seu conteúdo inspira-se na Dei Verbum, fez eclodir sob a chancela da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil o Documento 97, intitulado Discípulos e servidores da Palavra de Deus na missão da Igreja. Este texto gestado no seio da quinquagésima assembleia geral dos bispos, dividido em três partes coloca-se como uma “resposta às exortações do Sínodo” (CNBB, 2012, p.6).

4 A título de exemplo, algumas publicações: Coleção Verde de Estudos da CNBB: Crescer na Leitura da Bíblia; Ouvir e Proclamar a Palavra: seguir Jesus no Caminho; Como nossa Igreja lê a Bíblia. Versão Popular do Documento da Pontifícia Comissão Bíblica da Santa Sé. Paulinas, 1993; Ler a Bíblia com a Igreja. Versão Popular da Dei Verbum, 2005. Paulinas e CNBB; Conhecer nossas raízes. Jesus Judeu. Edições CNBB, 2004. E por último na coleção: Catequese à luz do Diretório Nacional de Catequese, o livro: A Palavra de Deus na História. Uma mensagem dos bispos para toda Igreja. Edições CNBB, 2011.

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Com esse propósito, o Documento cita oitenta e seis (86) vezes a Exortação Apostólica Verbum Domini; sete (07) vezes a Dei Verbum, quatorze (14) o Documento de Aparecida e seis(06) às Diretrizes gerais da ação evangelizadora(2011-2015). Ele está divido em três partes que recordam seguramente a metodologia do Ver, Julgar e Agir. A primeira parte aponta a novidade trazida pela Dei verbum e a Verbum Domini na qual é claro que Deus quis se comunicar com o povo e mostra-se como fundamento dessa comunicação. O como e o onde da palavra de Deus no universo eclesial através da animação bíblica da pastoral é destacado na segunda parte do texto; Por fim, a terceira parte, dividida em três eixos, salienta a necessidade do conhecimento (catequese, estudo, bibliografia), da oração e do anúncio concreto e eficaz da Sagrada Escritura.

Sobre esse documento, embora pesem críticas (SILVA, 2015, p. 369-389) que denunciam diversas de suas lacunas, ele insere-se no universo de uma das mais recentes tentativas da Igreja no Brasil em salientar o lugar da Sagrada Escritura, como palavra revelada e fonte de animação de toda atividade eclesial. Associa-se ao clamor preconizado pelo Concílio, que ainda hoje retine de forma clara ao ouvido e coração de muitos, o desejo de animar a pastoral pelo espírito bíblico, como sugere o capítulo VI da Dei Verbum.

É inegável, por fim, que o lugar da Bíblia na vida da Igreja no Brasil tenha sido adjetivado por inúmeras ações. Elas caminham entre cursos bíblicos, metodologia particular e adoção institucional da animação bíblica da pastoral. Os esforços foram hercúleos. Deram frutos sensíveis, mas ainda está longe de uma ordinária e corriqueira convivência com o texto Sagrado. Atestado explícito, portanto, de que ainda se tem muito a ser desenvolvido na relação entre Bíblia, pastoral e instituição eclesial.

5 À GUISA DE CONCLUSÃO: NOVAS VEREDAS, OUTRAS SEARAS O MESMO ESPÍRITO

A Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a revelação desencadeou uma revolução em vários níveis de sua reflexão sobre a Revelação e a Sagrada Escritura. A definitiva suplantação de uma visão instrutiva da revelação migrando para um conceito de comunicação de Deus ao homem foi um dos seus passos lapidares. O juízo sobre a questão da verdade da bíblica restringida a questão de salvação, dirimiu polêmicas seculares sobre as verdades da fé, sobre erros ou acertos que a bíblica poderia conter. Por fim, o estímulo

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à animação de toda atividade eclesial pela Bíblia e o acesso livre aos Textos Sagrados a todos os fiéis foi o epicentro de atos diversos ligados ao conhecimento, ao diálogo e à redescoberta da Sagrada Escritura.

A Dei verbum foi um passo decisivo para recolocar a Bíblia nas mãos do povo e no centro da vida da Igreja. Sua complexa elaboração denuncia o cuidado com que foi preparado sua composição. Seu texto final repleto de inúmeros adendos, melhorados por diversas intervenções revelou-se um especial instrumental de compreensão da questão da Revelação, da Tradição e do Magistério. Estabeleceu-se, em seus vários axiomas, a relação entre o Antigo e Novo Testamento. Por fim, com uma propriedade única indicou caminhos que pudessem asseguram de forma mais evidente o lugar da Bíblia no seio da Igreja.

A constituição Dogmática, no entanto, de per si, não se imporia à Igreja se não fosse a sua criativa recepção nas igrejas locais. A América latina, mormente o Brasil, foi exponencial em acolher e aplicar as orientações advindas desse documento conciliar, em particular, o capítulo VI. Tal como aludimos, no interno do Concílio e previamente a ele, havia uma intensa e inexplicável movimentação bíblica na terra de Santa Cruz. Esse fato facultou uma fecunda aplicação do lugar da Bíblia na Igreja. As diversas traduções da Bíblia, o método popular de interpretação do texto Sagrado e as Ações da Conferência Episcopal do Brasil (CNBB) atestam, com largueza – o que não quer dizer sem limites - o caminho trilhado ao longo dos cinquenta anos desde a concepção da Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a revelação.

Deve-se ainda, assegurar que os ventos novos suscitados pela Dei verbum ainda devem ser sentidos ou impulsionados em nossos tempos, sobretudo no que diz respeito à interpretação da Bíblia. Sente-se em todos os níveis, por muitas formas, a popularização de leituras fundamentalistas, espiritualistas (entenda-se alienantes) da Bíblia, inclusive em meios de Comunicação identificados como católicos. Certamente por despreparo técnico, por desconhecimento crítico e/ou por interesses escusos veem-se abertamente algumas leituras bíblicas serem usadas para sustentar convicções particulares. Trata-se do antigo artificio de recorrer a Bíblia para apoiar posturas que pouco ou quase nada tem a ver com os ensinamentos do Magistério e com a correta interpretação da Bíblia. Acerca dessas posturas é salutar retornar à Dei Verbum e aceder as suas proposições que prescrevem uma correta interpretação da Bíblia que não prescinda do aparato técnico e não fuja da

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tradição interpretativa do Magistério e esteja sob o juízo da Igreja. Posição essa, retomada em documentos posteriores do Magistério Católico.

Convém por fim, vislumbrando a capacidade técnica e criativa da Igreja no Brasil sonhar com uma forma de leitura da Bíblia que atinja várias camadas sociais de forma inclusiva. Que não polarize uma leitura somente a partir dos pobres enquanto categoria social, visto que, para alguns setores, ela é deliberadamente rechaçada por identificar-se com um modelo teológico que desagrada a alguns. Tampouco, uma leitura executada apenas do alto dos parlatórios acadêmicos, prenhe de técnicas, mas dissociada da realidade, que também não atinge os humildes.

Assim, convém pensar, iluminados pela Dei Verbum com a construção de uma nova metodologia da Bíblia que açambarque os dois polos: O compromisso concreto com todas as categorias de empobrecidos (materiais e existenciais) bem como critérios técnicos e acadêmicos. O método articulado por Carlos Mesters já leva em consideração esses aspectos, contudo sua histórica identificação com uma leitura a partir dos pobres e a visão minimalista que alguns fazem dessa categoria, não o faz palatável para uma parcela cada vez mais tradicionalista e crescente de cristãos. Dado que a mudança/conversão vem do interno dos movimentos ou pessoas, seria oportuno vestir de uma nova roupagem essa pedagogia, acrescer-lhe outros instrumentais e propô-lo às comunidades.

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Fernando Vanini de Maria

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