Igreja e Palavra, da Dei Verbum à Verbum Domini

 

Resumo: Depois de situar o contexto histórico do Vaticano II, o autor começa mostrando a relação entre a Dei Verbum, do Concílio, e a sua releitura, 45 anos depois, a Verbum Domini, de Bento XVI. Mostra que a Verbum domini acentua o processo hermenêutico, e insiste na perspectiva pastoral: a Bíblia não só deve ser a “alma da Teologia” (DV 24), mas toda a pastoral deve ser bíblica (VD 73-75), Explica como se entende “o acontecer da Palavra para nós e para o mundo”, e sintetiza as três partes da Verbum Domini: “a Palavra de Deus”, “a Palavra na Igreja”, e “a Palavra no mundo”. Concluindo, propõe o que se deve entender como “Nova Evangelização”. 

 

1 Novos “sinais do tempo”, sinais de um novo tempo... Ninguém poderá negar o impacto renovador do Concílio Vaticano

 

II. Ele respondeu ao que os sinais do tempo advertiam. Em sua esteira, um reavivamento espiritual, um novo Pentecostes renovou a Igreja. As celebrações litúrgicas, doravante celebradas com maior simplicidade, em vernáculo e de face voltada para o povo, eram sinal da nova consciência eclesial e também da percepção de um Deus próximo, o Pai de Jesus Cristo. O clero, os religiosos e os demais fiéis ficaram mais próximos uns dos outros. Multiplicaram-se as iniciativas ecumênicas. A Igreja “pobre e serva”, preconizada por padres conciliares como os Cardeais Léger e Lercaro e os bispos Helder Câmara e Proaño, para citar apenas alguns, parecia tomar corpo nas obras de solidariedade do mundo inteiro e, sobretudo, nas comunidades de base, caracterizadas por seu colorido autóctone e pela participação ativa de todos. Paróquias foram confiadas a religiosas, a ministros e ministras leigos, chamados do meio do povo eclesial. Religiosos e, sobretudo, religiosas, deixaram seus poderosos institutos para se inserirem no meio do povo simples e participarem de suas lutas. Desdobrou-se uma vitalidade sem par, com figuras emblemáticas como Dom Casaldáliga e tantos outros, nas novas  ronteiras da missão. No campo bíblico, a leitura com o povo simples se alastrou pelo Brasil e pela América Latina afora. A abertura mostrada pela Dei Verbum foi confirmada pelo documento da Pontifícia Comissão Bíblica de 1993 sobre a “Interpretação da Bíblia na Igreja”, aos cem anos da Providentissimus Deus de Leao XIII e os 50 anos da Divino Afflante Spiritu de Pio XII. Esse documento, de fato, no espírito de seus ilustres antecessores, escancarou a porta não só para os métodos histórico-crítico-literários, mas também para as questões da hermenêutica e das leituras perspectivistas (sociológica, feminista etc.). Só rechaçou o fundamentalismo... Entretanto, o mundo começou a mudar radicalmente. Já antes do Concílio alastrara-se o movimento hippie, sinal confuso de que as antigas certezas culturais não mais ditavam a norma. Depois, em 1968, eclodiu, entre os universitários de Paris-Nanterre, a Revolução de Maio. Parecia um tsuname de esquerdismo marxista. Na realidade, porém, olhando a distância, parece que foi um primeiro sinal da pós-modernidade. Os elevados discursos da social-democracia europeia concebidos nos dias do pós-guerra não convenciam mais. No plano político, os Estados Unidos estavam atolados na lama  da guerra do Vietnã. O Terceiro Mundo se erguia. A África se livrava da dominação política (da econômica, por enquanto, não). Na América Latina, o exemplo de Cuba incentivou o sacerdote guerrilheiro Camilo Torres, o emblemático Ché Guevara, os sandinistas em Nicarágua. Mas, logo, sob o pretexto do combate ao comunismo e financiada pela Comissão Trilateral, alastrava-se a reação dos governos militares, instalados no Brasil, em 1964, e posteriormente no Chile e na Argentina. As democracias populares, como, eufemisticamente, se chamavam os regimes fechados do bloco soviético, foram desmoronando. Depois das insurreições na Hungria e na Checo-Eslováquia, depois da tentativa de  abertura de Gorbachov na Rússia e a revolução nacionalista da Polônia, caiu, em 1989, o muro de Berlim. Impulsionada pelas megafusões de bancos e empresas, chegou a globalização neoliberal, transformando o mundo num grande mercado de produção para o consumo, defendido pelos Prêmios Nobel de Economia, Hayek e Friedman, e considerado, por Francis Fukuyama, “o fim da história”. O mundo foi se tornando sempre mais multicultural. Contudo, logo se percebeu que, nem o sonhado socialismo mundial, nem o neoliberalismo capitalista conseguiram expulsar a desigualdade e a miséria. Ao contrário, aumentaram. Com um agravante: até a natureza parece não mais suportar as pegadas elefantescas da humanidade, que está queimando seu próprio ambiente vital: o problema ecológico. Para reagir, surge o Fórum Mundial: um outro mundo deve ser possível, porém, somente mediante radical transformação da relação do homem com a sociedade e com a natureza. O poético otimismo dos hippies e a perspectiva ingênua de um mundo melhor transformaram-se em sentimento de crise generalizada. A depressão está se tornando, além de uma praga econômica, também a doença privilegiada do início do século XXI. O pensamento perde suas certezas. Contra o predomínio da racionalidade instrumental, preconizasse a “razão débil”, que foge das certezas absolutas. Os espíritos mais ortodoxos veem o perigo de um “relativismo absoluto”, paradoxo que aponta para o niilismo. No terreno religioso, confusão total. As religiosidades bem assentadas – o catolicismo, o protestantismo histórico, o Islã dos sábios – estão sendo acuadas por movimentos fundamentalistas e/ou pseudo-místicos. O que inicialmente parecia um retraimento do religioso – a secularização, a “morte de Deus” – deu lugar, primeiro a “um rumor de anjos”1 e, logo depois, a movimentos  religiosos delirantes e até beligerantes. Entretanto, a Igreja Católica sofre consideráveis baixas lá onde ela teve seu epicentro, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, e sinais semelhantes aparecem na América Latina2. É a esta luz que devemos ver o Sínodo sobre a Palavra de Deus (2008) e a Exortação Apostólica Verbum Domini do Papa Bento XVI  (2010). E, em seguida, o Sínodo sobre a Evangelização, em 2012. 2 A Dei Verbum e a Verbum Domini No dia 30 de Setembro de 2010, na festa de São Jerônimo, padroeiro dos biblistas, o Papa Bento XVI publicou a Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Este documento leva à Igreja inteira, com o respaldo do Sumo Pontífice, a riqueza da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, realizado em Roma em 2008, sob o lema A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. O Papa reproduz com fidelidade o pensamento dos mais de duzentos e cinquenta bispos que representaram as respectivas Conferências Episcopais, do mundo inteiro. Como expus alhures3, o Sínodo de 2008 e a Exortação Verbum Domini, para a qual ele deu a base, fornecem uma releitura da Dei Verbum, no novo contexto, quase meio século depois. Vale lembrar que o Sínodo dos Bispos é uma instituição permanente, criada pelo Vaticano II para acompanhar a recepção do Concílio e estimular sua atualização na acelerada mudança dos tempos que estamos vivendo. Assim, em 2008, a XII Assembleia Geral do Sínodo dobrou-se sobre a recepção e atualização da Dei Verbum. Esta assembleia ampliou o título do último capítulo da Dei Verbum, “A Sagrada Escritura na vida da Igreja”, no  subtítulo do novo documento: “A Palavra de Deus na vida e na Missão da Igreja”. Isto, porque a Palavra de Deus é mais do que a Bíblia; e porque a Igreja é comunidade em missão, como já tinham sublinhado 1 Cf. BERGER, Peter L. Rumor de Anjos: a Sociedade Moderna e a Redescoberta do Sobrenatural. Petrópolis: Vozes, 1997. 2 Cfr. o recente censo do IBGE http://www.ibge.gov.br/censo2010/ 3 KONINGS, J. A exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini. Revista Eclesiástica Brasileira (Petrópolis), v. 71, n. 281, p. 87-123, jan. 2011. os papas Paulo VI, na Exortação Evangelii Nuntiandi, e João Paulo II, na Redemptoris Missio.

 

A Verbum Domini atualiza o documento conciliar por alguns avanços. Em primeiro lugar, aprofunda a hermenêutica bíblica. A Dei Verbum, na linha da Divino Afflante Spiritu de Pio XII, insistiu no empenho dos exegetas em descobrir o sentido do autor nos textos bíblicos. A Verbum Domini acentua o processo hermenêutico, que permite que o ouvinte receba a palavra como palavra viva, hoje, “como o que de fato ela é: palavra de Deus, que age em vós que acreditais” (1Ts 2,13). Outro avanço é a perspectiva pastoral: não apenas o estudo da S. Escritura deve ser a alma de toda a Teologia (cf. Dei Verbum 24), mas toda a pastoral

deve ser bíblica (Verbum Domini 73-75). Tanto a Dei Verbum como a Verbum Domini insistem na alimentação

pessoal pelo contato direto com a S. Escritura e não só através das reconfigurações oferecidas pela teologia, pelo catecismo e pela leitura espiritual tradicionais, que são interpretações condicionadas pela época em que foram elaboradas. A hermenêutica sadia sempre deve voltar às origens para restabelecer seu movimento circular4. Essa preocupação foi uma das molas propulsoras da Concílio Vaticano II, tanto na dimensão bíblica como na litúrgica e na visão da vida religiosa: voltar às fontes, contato direto. Mas este contato não acontece apenas na leitura individual  ou em cursos bíblicos. A escuta da palavra bíblica na liturgia, a recitação dos salmos na oração comunitária/divino ofício e a prática da Lectio Divina são formas de contato direto com a palavra de Deus. Este contato direto, porém, é apenas um dos polos da relação hermenêutica, ou seja, da interpretação à luz da realidade hoje. Bíblia e vida se iluminam mutuamente. A Bíblia ilumina a vida, mas a vida proporciona a atenção, o interesse, o olhar aberto com o qual nos aproximamos da Bíblia – olhar aberto, não convencimento cego que projeta na Bíblia o que se quer tirar dela... Os que têm o coração puro, aberto, disponível, é que verão Deus, também na Bíblia. A reflexão em comunidade é um meio para evitar cegueira e unilateralidade. Ora, quem recebe a Palavra é responsável de que ela seja ouvida, comunicada. Essa comunicação não deve acontecer apenas em igrejas e  capelas. A atual tendência à secularização exige que nos dirijamos aos 4 Cf. KONINGS, J. Interpretar a bíblia aos cinquenta anos do Concílio Vaticano II. Perspectiva Teológica, v. 44, n. 123, p. 237-256, maio-ago. 2012. que desistiram da prática religiosa tradicional ou nunca a conheceram. Isso, porém, exige um bom preparo, que só se alcança interiorizando em profundidade a palavra de Deus. Certamente, neste tempo de confusão, de banalização até das celebrações da Eucaristia, será uma grande diaconia criar momentos de oração e de celebração moldados pela escuta  da Palavra de Deus, nos quais também os “afastados” possam participar  e, inclusive, encontrar diálogo aprofundado.

Finalmente, vale mencionar a arte da homilia, que é matriz e fruto da hermenêutica bíblica. Na homilia, o fiel deve ser confrontado com a  palavra de Deus em sua vida concreta e com o significado do mistériocelebrado. O momento contemplativo que deve estar presente em toda a vida cristã alimentará essa arte, evitando o perigo, que já citamos, de ser “vão pregador da palavra de Deus, externamente, quem a ela não presta ouvido interiormente”.

 

À luz dessa situação, aprofundemos brevemente o que diz a Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini.  3 O acontecer da Palavra para nós e para o mundoO que, para o teólogo, mais salta à vista é que o Documento fala da Palavra de Deus como um “acontecer”. Costumeiramente, ao ouvir o termo “Palavra de Deus” pensamos quase automaticamente num livro, a Bíblia; e quando se diz “o Verbo de Deus”, pensamos na segunda pessoa da Santíssima Trindade, Deus Filho. Claro, tudo isso está certo, mas o Documento quer abrir nosso olhar e nosso modo de pensar para o ato de comunicação de si mesmo que Deus realiza para conosco, sua autocomunicação ou revelação. Esta é uma realidade maior que a Bíblia. A  Bíblia faz parte da palavra de Deus, mas não é pura e simplesmente “a Palavra de Deus”. Por outro lado, o evangelista João diz que Jesus é a  Palavra de Deus em pessoa (Jo 1,14 e 16-18). E devemos completar isso pelo que diz o início da Carta aos Hebreus (Hb 1,1-2): “Muitas vezes e de muitos modos, Deus falou outrora aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, os últimos, falou-nos por meio do Filho...”. Deus não é um objeto sobre o qual possamos falar como se estivesse disponível à nossa observação. “Ninguém jamais viu Deus” (Jo  1,18; cf. 6,46; 1Jo 4,12). Mas “o Unigênito, que é Deus e está junto do seio do Pai, este no-lo deu a conhecer” (Jo 1,18). E esse “dar a conhecer” não é um ensinamento em forma de conceitos, dogmas ou teses, mas uma história que se narra ou se expõe, como diz o texto original de João 1,18 (exegésato) pela própria vida de Jesus de. Pela narração do que aconteceu em Jesus de Nazaré conhecemos a Deus, que ninguém jamais viu. Na hora de concluir sua história na terra, Jesus dirá: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9), pois naquela hora ele vai dar sua vida por amor até o fim, e assim, ele mostra Deus, pois “Deus é amor” (1Jo 4,8.16). Esta palavra feita carne é o que se celebra no Natal, festa da a “Encarnação”. “A Palavra de Deus se fez carne” (Jo 1,14), isto é,

existência humana, vivendo a sua história no meio da nossa história (“veio morar entre nós”). Esta presença da palavra de Deus na carne  tinha prazo limitado, como todos nós, em nossa existência carnal. Natal é a festa da Encarnação daquele cuja vida humana nos fala de Deus de modo decisivo, mais do que qualquer raciocínio poderia elucubrar. Mas  não esqueçamos que esta encarnação se completa na Sexta-Feira Santa, quando Jesus assume a nossa existência até o fim, dando sua vida por nós e revelando o verdadeiro rosto do Pai, que é amor. Amor até o fim. Diz uma catequese antiga: a cruz de Golgotá é da mesma árvore que o presépio de Belém.  O texto da Exortação Apostólica Verbum Domini do Papa Bento XVI divide-se em três partes principais: Verbum Dei (“A Palavra de Deus”), Verbum in Ecclesia (“A Palavra na Igreja”) e Verbum mundo (“A

 

Palavra para o mundo”). Trataremos sucessivamente destas três partes.

 3.1 Verbum Dei, nosso diálogo com Deus A primeira parte, “A Palavra de Deus”, é uma espécie de teologia

fundamental. Descreve o “acontecer” de Deus-que-fala, porém não como um comandante (embora o Antigo Testamento o chame ”Senhor Deus dos exércitos”), e sim, como um amigo (como a Moisés, segundo Ex 33,11). É também um Deus que escuta (o clamor de seu povo, Ex 3,7.9). Mas antes de tudo isso, houve a palavra de Deus que chamou à vida a criação e o ser humano. O falar de Deus é um chamar à vida, um apelo do amor de Deus ao nosso amor fraterno, um apelo de Deus-amor que nos faz amar e assim encontrar nossa vida verdadeira, como sugere 1Jo 4,10-12!

O Documento propõe até uma “cristologia da Palavra” (números 11-13). Que quer dizer isso? A cristologia, ou seja, a doutrina sobre Jesus Cristo, fica muitas vezes reduzida a algumas fórmulas misteriosas: Jesus  Cristo é a segundo Pessoa da Santíssima Trindade, tem duas naturezas em uma só Pessoa, é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem...

Tudo isso são fórmulas confiáveis para dirimir as discussões teológicas que se deram por volta do ano 400 depois de Cristo. Mas antes disso, Jesus é a autocomunicação de Deus: Deus que se dá a conhecer (portanto, é Deus) em Jesus de Nazaré (portanto, é homem), em tudo o que este diz e faz. E seu dizer é fazer, pois suas palavras são eficazes, como a chuva que não volta para cima sem fecundar a terra (cf. Is 55,10-11).

 

Isso é o que se chama a “condescendência de Deus”: Deus desce até nós para se manifestar em Jesus. Este, em sua vida humana, é a palavra divina por excelência, tudo o que Deus nos tem a dizer. Nos braços abertos de Jesus na cruz, Deus nos diz: “Eu vos amo até a morte”. Por isso, esta palavra, que Deus traz em si desde o princípio (Jo 1,1) é também   “escatológica”, final, definitiva. A partir daí percebe-se que a morte de Jesus não é simplesmente um pagamento feito a Deus por nossos pecados, como certa catequese simplória sugere, mas um ato livre de amor até o fim, quando Jesus se defrontou com a parcela do mundo que desconheceu a condescendência de Deus. A “salvação em Cristo” não consiste num pagamento que ele saldou em nosso lugar, mas no fato de nós entrarmos, pela “obediência” (= o “dar ouvidos”) da fé, nesse diálogo de amor que Deus iniciou e levou a termo em Jesus. Tal é a Palavra de Deus, e a Bíblia é seu registro escrito e privilegiado,

por testemunhar o nascimento de nossa fé em Cristo. Portanto, aquilo que na Bíblia é decisivo ouve-se no Novo Testamento. A parte maior da Bíblia, o Antigo Testamento, registrou o que o povo conseguiu entender

de Deus antes que ele tivesse falado e “dado” a sua palavra definitiva, que é Jesus. Mas o povo de Israel ainda não tinha uma visão clara. Por isso, o Antigo Testamento deve ser lido à luz do Novo. E não basta ler a Bíblia

como um livro isolado. A Bíblia vem até nos carregada pela comunidade, que a conserva no espírito que herdou de Jesus – espírito de sabedoria, para compreender, mas também espírito da prática da vida na caridade,  para fazer aquilo que ela aponta. Pois só fazendo é que se entende “deverdade”. Assim, a Bíblia faz parte da “Tradição viva”, sem a qual ela  corre o risco de ser letra morta, letra que mata (cf. 2Cor 3,6). 

A Escritura participa da “encarnação” de Jesus, que se serviu da linguagem imperfeita dos antigos israelitas. Até os erros em nossas traduções fazem parte dessa condescendência de Deus, que não se esquivou das imperfeições humanas (cf. Dei Verbum 13). Assim entende-se que não é a letra da Bíblia em si que contém a “verdade para a nossa salvação”, mas a Bíblia lida conforme a arte da boa leitura, devidamente interpretada,

no seio da comunidade e da tradição viva animada pelo espírito de Cristo. Só assim a leitura da Bíblia é atualização da presença de Jesus  no meio de nós, presença que é uma palavra de amor que nos chama arealizar nossa vida verdadeira. 3.2 Verbum in Ecclesia, palavra na Igreja A segunda parte da Exortação Apostólica Verbum Domini, do  Papa Bento XVI e dos Bispos, chama-se “A Palavra na Igreja” (Verbum in Ecclesia). A parte anterior terminou apontando o papel da Tradição viva da Igreja, como o rio que carrega a Palavra de Deus através da vida e da história. O falar de Deus para nós tem seu ponto culminante em Jesus de Nazaré, que se torna presente a nós na vida e na prática de sua comunidade. A Igreja acolhe a Palavra, e por isso somos, na vida da Igreja, contemporâneos de Cristo: ele está, hoje, presente conosco. De modo implícito, em toda a vida da Igreja, e de modo explícito, na Liturgia, que já foi chamada “a casa da Palavra”. Não é na discussão com algum fanático da Bíblia na rua que temos contato vivo com a Palavra, mas na Liturgia, nas leituras, nos salmos e nas orações, inspiradas pela Bíblia e pela vida. E, sobretudo, na memória do gesto mais bíblico que já houve: o gesto de Jesus dando sua vida por nós, e que a Eucaristia torna presente.

 

Em todos os sacramentos há um laço intenso com a Palavra – nas leituras, nos gestos, nas orações –, mas especialmente na Eucaristia. Na leitura do Evangelho, precedida das outras leituras, presenciamos a palavra de Cristo; e na consagração do pão e do vinho, o seu gesto. E os dois nos dão a conhecer a mesma coisa: Deus que nos ama até o fim, e infinitamente. Entende-se, então, que a celebração por excelência do cristão é o rito eucarístico completo, a missa, com a mesa da Palavra e  a Mesa do Pão. Pode haver também celebrações da Palavra sem eucaristia, por exemplo, por ocasião de um evento, um dia de estudo, uma formatura, um casamento, um falecimento, mas essas celebrações não são as que constituem a celebração central do cristão. Porém: por falta de sacerdotes, 70% das celebrações dominicais no Brasil são celebrações da Palavra que, de fato, substituem a missa. Ora, cada comunidade cristã tem direito a celebrar o Dia do Senhor condignamente, com uma Eucaristia  completa. Então é dever resolver a insuficiência minsterial...Para que a Palavra habite verdadeiramente nossas comunidades é preciso preparar pessoas, desde leitores até biblistas e exegetas.  E cuidado especial merece a homilia, objeto de lamentação geral! Ora, o primeiro preparo é deixar a palavra de Deus falar ao próprio coração... Daí a importância do silêncio, não apenas na celebração, mas na vida da gente.  As comunidades e dioceses precisam de uma “pastoral bíblica”  (para olhar de perto as questões pertinentes), mas o ideal é que “toda a pastoral seja bíblica”, isto é, inspirada pela Palavra de Deus, que na Bíblia tem sua expressão mais palpável e preferencial.  O Documento insiste na adequada formação dos diáconos, presbíteros, religiosos; no incentivo às comunidades, aos leigos, homens e mulheres,

para o estudo bíblico; Insiste, ainda, na interiorização da palavra por parte de quem a quer levar aos outros. E dedica uma consideração  especial à Lectio Divina, a leitura orante, que comporta: 1) a leitura da Bíblia com a inteligência e com o coração (englobando o estudo literário, histórico e teológico, à luz de nossa realidade); 2) depois, rezar o que se aprendeu, diante de Deus, na oração, interiorizando-o na meditação;   e

3) finalmente, admirar o que se leu e rezou para que seja amado à luz de Deus, na contemplação.

Aqui cabe uma observação de extrema importância. A prática que tiramos da leitura bíblica não é meramente o fruto do estudo, mas  da contemplação, porque deve ser fruto do amor. E esta contemplação amorosa é que nos levará a não fugir das consequências práticas, mas a acolher com amor o apelo de Deus para levar seu amor até os nossos irmãos, até o mundo.

3.3 Verbum mundo, palavra para o mundo Depois de considerar a Palavra de Deus em si e na Igreja, a Exortação Apostólica Verbum Domini, do Papa Bento XVI e do episcopado mundial, focaliza, em sua terceira e última parte, a Palavra de Deus como dirigida ao mundo, a toda a humanidade, que necessita de uma palavra  boa e cheia de esperança. Eis a missão da Igreja, desde os primórdios, desde Paulo e os demais apóstolos: anunciar, a todos, que Deus se deu a conhecer, se mostrou, e que agora o caminho até Ele está aberto. “A novidade do anúncio cristão não consiste num pensamento, mas num fato: Ele revelou se” (n. 92).

Até há pouco, fazia-se marcada distinção entre os cristãos estabelecidos (inclusive os padres) e os missionários, que iam ad gentes, como se diz em latim, isto é, aos pagãos (no Brasil: aos índios). Ora, sabemos

hoje que, a muitos que vivem no assim chamado “mundo cristão”, nunca se anunciou essa novidade em termos adequados. Por causa do apagamento mental que reina em nossa sociedade, mas também porque

 não se pensou em formular a mensagem de modo penetrante, visto que  todo mundo era considerado cristão, a Palavra ficou encoberta debaixo de palavras que não dizem nada aos jovens e a muitos outros. Mesmo os que foram catequizados, será que foram “evangelizados”? Será que  ouviram algo que soava como uma “boa nova”? Ou apenas moralismo, dogmatismo, rispidez? Sejamos lúcidos e honestos: nossa sociedade o é evangelizada, e cada dia menos. O pagão está ao nosso lado, até na igreja, ou, quem sabe, dentro de nós... Não é pagão aquele que, embora batizado, corre freneticamente atrás do proveito e do consumo, em vez

de encontrar sua paz e alegria em Cristo e no amor eficaz ao próximo? Por isso, os últimos Papas incentivaram uma “nova evangelização”, dirigida ao próprio mundo de tradição cristã. E participam dessa missão não só os bispos, padres e religiosos, mas todos os cristãos, animados por suas comunidades. Todo o evangelizado é evangelizador5. Ora, essa  missão não se exerce somente pelo (necessário) anúncio da Palavra pela voz e por escrito. Além de anunciar, é indispensável dar credibilidade a esta Palavra pelo testemunho vital (n. 97). Existe relação estreita entre o testemunho da Escritura e o testemunho de vida dos crentes. As Escrituras explicam o porquê desse testemunho, que parece tão estranho ao mundo. Testemunho da caridade sem limite, muitas vezes vivido até a morte violenta, também hoje – e os evangelhos explicam o porquê...

Na vida de todos os cristãos, a Palavra que Deus nos dirigiu em  Jesus é testemunhado no amor e no serviço aos mais pequeninos, no empenho incansável pela justiça (sem a qual o amor não é verdadeiro), no empenho pela paz, fruto-obra da justiça, no cuidado pela criação, que  Deus confiou à humanidade. Testemunho que deve penetrar nas culturas do mundo, porque toda a humanidade é chamada a ser aperfeiçoada pela Palavra. Isto sugere a importância de uma cultura bíblica espalhada também em ambientes não cristãos, porém, não tanto por ser a Bíblia patrimônio cultural da humanidade, mas por causa da palavra do amor de Deus que ela testemunha, quando bem apresentada.

5 Cf. PAULO VI, Evangelii nuntiandi, n. 24.

 

 Tudo isso vai muito além de ler algumas frases isoladas da Bíblia, alguns belos pensamentos que podem ser encontrados também nos livros de auto-ajuda. A Palavra de Deus é maior que a Bíblia. A Bíblia é o instrumento  para nos fazer entrar na esfera da Palavra e para reconhecer sua autenticidade, isso sim, mas a Palavra é muito mais do que aquilo que está registrado na Bíblia. A Palavra de Deus chamou à luz o céu e a terra, e ressoou definitiva e plenamente quando Jesus, na cruz, pronunciou o consummatum est: “Consumado está”. 4 A “nova evangelização” À luz do que foi dito, a nova evangelização de que falaram os

últimos Papas será a evangelização de sempre, o “evangelho eterno”, porém, num mundo totalmente modificado técnica e culturalmente. Esta modificação epocal exige “novo ardor, novos métodos e novas expressões”  (João Paulo II). Aquilo que deve ser renovado, porém, deve-se alimentar profundamente daquilo que é de “ontem, hoje e sempre”: o  diálogo de amor pelo qual Deus se manifesta nas palavras e nos gestos,

inseparavelmente unidos, de Jesus, sobretudo no seu gesto “consumador” na cruz, cujo memorial é o centro da celebração cristã. A nova evangelização não acontecerá se insistir somente nas novas expressões e não se alimentar do evangelho eterno. A Verbum Domini indica o caminho: guiados pelo aprofundamento bíblico, na leitura “orante  e contemplante” e na celebração autêntica da Mesa da Palavra e da Mesa do Pão, deixar acontecer a Palavra de Deus no meio de nós, cristãos, para o mundo, graças ao nosso testemunho, em palavras e ações, antecipando e inaugurando um mundo novo, um mundo em que os últimos sejam os primeiros, pela obra do amor que se doa até o fim, infinitamente.   

 

Fonte: Johan Konings*

 

* O autor é padre jesuíta, Doutor em Teologia pela Universidade de Louvain e Professor na Faculdade de Teologia da Companhia de Jesus, FAJE, em Belo Horizonte, MG, autor de muitos livros e artigos na área bíblica.

 

 Fernando Vanini de Maria


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