EVANGELHO SEGUNDO SÃO MARCOS


 Neste tempo de pluralismo religioso, vemos a importância de nos aproximar mais da pessoa de Jesus. O evangelho de Marcos nos apresenta Jesus humano, solidário, comprometido com a defesa da vida em oposição a tudo o que gera morte, propondo um Reino que contradiz as expectativas messiânicas da época. Nele buscamos luzes de uma espiritualidade que nos alimente e comprometa para responder aos desafios do tempo presente.

Aspectos gerais do Evangelho de Marcos

a) Datação

Há muita discussão entre os especialistas sobre a data exata da redação do Evangelho. O certo é que em Marcos encontramos a forma mais antiga da catequese da Igreja. Confirma-o o fato de que ele segue exatamente o esquema do querigma primitivo, o qual inicia a narrativa com a pregação de João e conclui com o arrebatamento de Jesus (At 1,22). Não há reflexões catequéticas sobre a infância de Jesus, nem detalhes sobre as aparições do Ressuscitado. Também não encontramos em Marcos as grandes composições de discursos de Jesus como em Lucas e, sobretudo, em Mateus e João.

A definição da data gira em torno da discussão se o evangelho foi escrito antes ou depois da destruição do Templo de Jerusalém, no ano de 70 d.C. Autores como Wellhausen (1844-1918), Brandon, Belo e G. Pixley pensam que Marcos pressupõe um conhecimento da destruição do templo (cf. Mc 13). Por isso, datam a redação do Evangelho um pouco depois de 70. C. Myers e outros, fazendo uma análise da ideologia política e econômica na narrativa de Marcos, defendem como mais provável uma data antes de 70, durante a guerra. A tese conciliatória é de que o evangelho foi elaborado durante a revolta judaica, no final da década de 60, e a redação final realizada logo após a destruição de Jerusalém. Há ainda autores que datam a primeira elaboração do evangelho pelos anos 50, na Síria, reelaborado por volta de 67 a 70. A tese se baseia num fragmento encontrado em Antioquia, que se presume tenha sido de Marcos. Como é muito pequeno, não convenceu, pois poderia ser simplesmente um fragmento de uma das fontes de Marcos.

De qualquer forma, o surgimento do texto de Marcos está relacionado a três fatos importantes: o desaparecimento da primeira geração de discípulos e discípulas; a acolhida de gentios que não conheciam a cultura judaica, motivo de crise e conflito; a guerra contra Roma que marcou a comunidade de Marcos e seu evangelho, quer tenha sido escrito imediatamente antes, durante ou logo depois da guerra.

Portanto, o texto surge a partir de um contexto marcado por intenso conflito externo (Judaísmo - Roma) e por profunda crise interna (judeus – gentios). Os conflitos externos foram gerados pelos tributos pesados e pela política da “pax romana” que arrasava violentamente qualquer oposição que se fizesse. A crise interna foi gerada pela perda da identidade solidária e pelas excludentes leis da pureza que marginalizavam as mulheres, as crianças, os estrangeiros, os doentes, os possessos, os mutilados, os publicanos e pecadores (CRB, 2006, p. 24).

b) Local

Devido à tradição dos Padres da Igreja, muitos autores pensam que Marcos teria escrito o Evangelho em Roma, quando lá esteve a convite de Paulo (Cf. 2 Tm 4,11). Argumenta-se também o fato de no texto se encontrarem vários termos latinos. Os argumentos contrários são de que as expressões latinas como legião (5,9), quadrante (12,42), centurião (15,39.44s) se explicam pela forte presença econômica e cultural na Palestina.

Outros autores localizam as comunidades de Marcos no norte da Palestina, na Galileia, devido à importância dada pelo autor à geografia e, principalmente, pela importância teológica atribuída à Galileia, terra helenizada, de cujo seio nasce o movimento de Jesus, e da qual as portas se abrem para a evangelização do mundo greco-romano (GAMELEIRA SOARES, 2002, p.14).

Mas poderia também ter sido num local próximo à Galileia, na fronteira leste do lago de Genesaré, na Decápole, onde viviam povos de outras culturas (cf. Mc 5,1-20), ou em Cesareia de Filipe, ao norte, local de diversidade étnica, onde Marcos localizou a profissão de fé (Mc 8,27-30).

c) Autoria

A opinião comum difundida desde o século II d.C. por pessoas como Papias (séc II), Santo Irineu (140-202), Clemente de Alexandria (150-215) e outros, atribui o evangelho a “João, cognominado Marcos”, intérprete, discípulo, companheiro de Pedro (SICRE, 1999, p. 57). Dados da Escritura confirmam que em sua casa se reunia uma igreja doméstica na cidade de Jerusalém (At 12,12-13). Primo de Barnabé (Cl 4,10), João Marcos foi com ele a Antioquia (At 12,25) e integrou a primeira equipe missionária de Paulo, mas separou-se logo em seguida (At 13,5.13). Mais tarde o encontramos novamente na companhia de Paulo (Cl 4,10 e Fm 24). Teve também forte vínculo com o apóstolo Pedro (relação de pai e filho, cf. 1 Pd 5,13). Como Pedro frequentou sua casa, não é estranha a antiga tradição sobre Marcos como ouvinte e redator da pregação do apóstolo. Por outro lado, a forte ênfase que o evangelho de Marcos dá ao seguimento da cruz nos faz pensar que a influência de Paulo seria bem maior do que a de Pedro.

Contudo, estudos críticos sobre a autoria de textos bíblicos mostram que autor final, pessoa (no caso Marcos), ou grupo de pessoas, já trabalha a partir de tradições orais e tradições escritas anteriormente. Os textos sistematizam a tradição catequética da Igreja, transmitida e codificada ao longo de quarenta anos, são o resultado de um processo coletivo de recolhimento das tradições orais e das coletâneas escritas. Por fim, uma ou mais pessoas fizeram a redação, deixando, a seu modo, também o seu estilo e as suas marcas.

d) Destinatários

Pela análise do Evangelho podemos deduzir que os destinatários são pessoas cristãs de origem estrangeira (“pagã”), integrada possivelmente também por cristãos de origem palestina. Percebem-se resistências internas para aceitar os não judeus com os mesmos direitos que os de origem judaica. São os próprios pagãos que ajudam a comunidade a dar esse passo, como podemos perceber na cena da mulher de origem siro-fenícia que consegue, por seus argumentos, fazer com que Jesus mudasse de opinião (7,24-30). Mas não há dúvida de que os destinatários são os de origem pagã (SICRE, 1999, p. 59). Caso contrário os autores do evangelho não teriam necessidade de explicar vários termos aramaicos como Talíta kum (5,41), Effatha (7,34), Corban (7,11), Abba (14,36), Gólgota (15,22), Eloí (15,34) e costumes judeus como comer com mãos impuras (7,3). Comparando-o ao evangelho de Mateus, percebemos que Marcos evita termos ofensivos aos pagãos, como no caso da mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30 e Mt 15,21-28) e temas que o auditório não teria entendido como a contraposição da lei antiga e lei nova, e o cumprimento das escrituras.

Tratam-se, portanto, de comunidades perseguidas, de origem não judaica, pobres, em crise, e que estão sendo chamadas a dar as razões de sua fé no Messias Crucificado e de construir relações novas em comunidades novas (CRB, 2006, p. 26).

 As fontes de Marcos

Marcos é independente de Mateus e de Lucas. É breve e imprime ao material da tradição sua própria perspectiva catequética e teológica. Seu evangelho serve de roteiro sobre o qual se constroem os outros dois evangelhos.

A velha teoria de que um só evangelho escrito em aramaico estaria na raiz dos três evangelhos sinóticos não explica suficientemente as variantes. Tornou-se mais popular a teoria de Schleiermacher (1832) do surgimento de dois documentos contemporâneos: Marcos, que vem do evangelho oral; e o documento dos ditos de Jesus, que ele chamou de fonte (em alemão Quelle, abreviado pela inicial Q), que contém uma coleção de palavras, ditos (Logia) de Jesus (Mt 8,11-12, cf. Lc 13,28s; Mt 6,9-13, cf. Lc 11,2-4).

Marcos tinha a sua disposição: (a) a tradição oral que se mantinha viva nas igrejas desde o início, com o anúncio de Jesus como o Cristo/Messias e Salvador; (b) as cartas de Paulo, escritos ocasionais que pressupõem a tradição oral, embora deixem transparecer ocasionalmente a tradição recebida (1Cor 15,3-5; 1Cor 11,23-25; 1Cor 7,10); (c) coleções sobre a paixão, morte e ressurreição de Jesus, sobre suas parábolas (Mc 4), sobre o discurso escatológico (Mc 13) e sobre sua atividade terapêutica.

Se, por acaso, teve acesso à fonte Q dos Ditos Populares, não quis fazer uso dela, pois estava mais interessado em destacar a prática de Jesus do que seus discursos. Há, contudo, autores que creem que Marcos teria conhecido e usado também esta fonte. Mas se a conheceu, por que teria omitido textos como as bem-aventuranças?

A partir da análise da estrutura do texto de Marcos, estudiosos (cf. GAMELEIRA SOARES; CORREIA JÚNIOR, 2002, p. 16 e 17) apontam três grupos de materiais: (a) Narrativas e ditos formados com base nas tradições existentes (1,1-13; 9,30-50; 10,1-31; 10,32-52; 11,1-25); (b) narrativas baseadas no testemunho pessoal (1,21-39; 4,35-5,43; 6,30-56; 7,24-37; 8,27-9,29; 14,1-16,8); (c) narrativas sistematizadas por tema, para ressaltar um dito particular de Jesus (2,1-3,6; 3,19b-35; 4,1-34; 7,1-23; 11,27-12,44; 13,5-37).

A especificidade de Marcos consistiu no modo de reagrupar as narrativas encontradas e nos resumos e ligações entre uma parte e outra (1,14-15; 3,7-12; 6,7-13; 8,22-26; 10,46-52; 13,33-37; 15,40-41).

 Objetivos de Marcos

Encontramos no evangelho, por um lado, a mensagem e os gestos de Jesus e, por outro, a mensagem, a prática e os conflitos das comunidades dos anos 60. Há um forte compromisso com a militância em favor do Reino.

Os objetivos fundamentais de Marcos são mostrar quem é Jesus de Nazaré e como ser discípula, discípulo de Jesus de Nazaré.

a) Quem é Jesus de Nazaré?

Ao todo são quinze títulos atribuídos a Jesus, desde seu nome próprio até os títulos mais sublimes (SICRE, 1999, p. 41). Marcos, o narrador, no começo o chama de “Messias” (1,1), “o Cristo/Ungido”, no qual alguns manuscritos antigos acrescentam também “Filho de Deus”; depois passa a chamá-lo de “Jesus” ou simplesmente pelo pronome “ele”. Uma vez o chama “Jesus, o Nazareno” (10,47). O acréscimo final, que não é de Marcos, os títulos “o Senhor Jesus” (16,19) e “o Senhor” (16,20).

Deus Pai o chama de “meu Filho amado” (1,11; 9,7); o anjo que aparece às mulheres o chama simplesmente de “Jesus de Nazaré” (16,6). Os demônios e espíritos impuros também o chamam com títulos sublimes: “Santo de Deus” (1,24), “Filho de Deus (3,11) e “Filho do Deus Altíssimo” (5,7).

As pessoas da multidão quase todos/as o chamam de “Mestre” (5,35; 9,7; 10,17.20; 12,32), “Jesus Nazareno” (14,67), “Filho de Davi” (10,47.48) e “Rabbuni” (10,51), e “Profeta” (6,4.15; 8,28). Somente a mulher siro-fenícia o chama de “Senhor” (7,28).

Os discípulos também o chamam de “Messias” (4,38; 9,38; 10,35; 13,1) ou a forma hebraica “Rabbi” (9,5; 11,21; 14,45). Uma vez Pedro o chama de “Messias” (8,29). Os adversários igualmente o chamam de “Mestre” (12, 14.19) e se escandalizam com o título de “Filho de Deus” (14,61) e zombam com o título “Rei dos judeus” (15,2.9.12.18.26; 15,32).

Ele é o Filho de Deus, conforme diz o título (1,1), confirmado no Batismo (1,11) e na Transfiguração (9,7). Os espíritos impuros o reconhecem como tal (3,11; 5,7). O ponto alto se dá quando o oficial romano professa a fé: verdadeiramente ele era o Filho de Deus (15,39). 

Jesus mesmo prefere o título de Filho do Homem (2,10.28; 8,31.38; 9,9.12.31), para designar a missão de concretizar o Reino de Deus, de vida plena em meio às criaturas humanas. O título é tirado do livro de Ezequiel e significa criatura humana (Ez 2,1-8), e do livro de Daniel, com o significado de povo fiel a Deus (Dn 7,13-27). Poderia designar simplesmente “este homem”. Uma vez se autodenomina “Mestre” (14, 14), uma vez Messias de forma indireta (9,41), “o Filho” (13,32) e “Senhor” (11,3).

Há uma pergunta que permanece no ar: O que é isso? Um ensinamento com autoridade! (1,21-22,17; 11,17). Quem é esse que perdoa pecados (2,5-10), cura doentes (1,32-34), vence as forças do mal (1,27; 3,27) e acalma o mar (4,41)?

Marcos vai respondendo ao mistério de “quem é Jesus” paulatinamente, ao longo do Evangelho. Sinal de que isto não estava tão claro assim, o que não é de estranhar, pois a discussão cristológica se estendeu até o Concílio de Calcedônia, em 451 d.C., e continua a nos desafiar hoje.

Não encontramos a resposta simplesmente nos títulos cristológicos, mas também por meio de sua prática libertadora que cria novas relações de comunhão com os gentios, pecadores e excluídos da comunidade judaica. Ele expulsa demônios e liberta as pessoas de sua alienação (1,21-28; 5,1-20); perdoa pecados sem a mediação do templo e de sacerdotes (2,5-10); toca os “leprosos” (1,40-45) e ergue doentes, paralíticos e crianças adormecidas (1,31; 2,11; 5,41); resgata a dignidade das pessoas (5,25-34), é sensível aos apelos de mulheres estrangeiras e rompe as fronteiras de discriminação étnica (5,24-30); reinterpreta a lei da pureza e a lei do sábado (7,14-23; 2,27); pede ajuda aos discípulos para atender os famintos (8,1-10), partilha o pão e dá sua própria vida.

Por isso, o fim do evangelho (16,7) remete ao “começo do evangelho” (1,1), a ser vivido e atualizado pelos seguidores e seguidoras de ontem e de hoje.

b) Como ser discípulo, discípula de Jesus de Nazaré?

Jesus inicia a missão convidando pessoas para o seguimento. Eram homens (1,1-20, 2,14) e mulheres (1,31;15,40-41).

Chamar discípulos e discípulas é a primeira e última ação de Jesus (1,16-20; 16,7.15). São chamados para estarem com ele e serem enviados a pregar o Reino e colocá-lo em prática (3,14). Aprendem, inicialmente, pela convivência. 

Vendo a dureza de seus corações em entender a dinâmica do Reino e da prática de Jesus (8,14-21), passa a ensiná-los a segui-lo pelo caminho do serviço e da doação da vida. O caminho da cruz-ressurreição, que tem como moldura duas curas da cegueira: o cego de Betsaida (8,22-26) e o cego Bartimeu, de Jericó (10,46-52). Com o ensino e a prática libertadora de Jesus passam a ver pessoas que nem árvores andando (8,24), mas com a fé na presença de Jesus ressuscitado, passam a ver tudo claramente (8,25). Na prática, Pedro (8,32-33), os Doze (9,32-34), Tiago e João (10,35-40) continuam a negar este caminho. Mesmo assim Jesus não desiste deles. Prepara-os para o momento decisivo (14,26-31), para que pudessem compreender o messianismo que passa pela cruz-ressurreição.

No primeiro resumo que Marcos nos faz (1,14-15) o discípulo e a discípula aprendem o que fazer: completou-se o tempo, o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na Boa Nova; e no último resumo (15,40-41) Marcos nos dá uma síntese de como fazê-lo: seguir, servir, subir com Ele para Jerusalém como as discípulas o fizeram.

Diferentes enfoques estruturais do Evangelho

O roteiro da narrativa de Marcos segue a estrutura do querigma nos discursos de Pedro, nos Atos dos Apóstolos (At 2,14-36; 3,12-26; 10,34-43). Marcos também nos dá a “espinha dorsal” dos evangelhos sinóticos: pregação de João, Batismo, deserto, Galileia, subida para Jerusalém, paixão, morte e ressurreição.

A linguagem é simples, em forma de narrativa, e dramática. O drama tem um crescendo de suspense, tanto em relação à morte que se aproxima, e a falta de entendimento dos doze. À primeira vista pode parecer que o narrador não segue um esquema de fundo, mas podemos encontrar várias referências que nos ajudam a nos localizar na caminhada.

Uma primeira referência é o espaço geográfico, como destaca a tradução da Bíblia de Jerusalém: preparação do ministério de Jesus (1,1-13), ministério de Jesus na Galileia (1,14-7,23), viagens de Jesus fora da Galileia (7,24-10,52), o ministério de Jesus em Jerusalém (11,1-13,37) e a paixão e ressurreição de Jesus (14-16).

Uma segunda referência são dois cenários bem delimitados: O primeiro se dá na Galileia e nos seus arredores. As cenas se dão ao redor do Mar da Galileia, sinagoga, casa, lugares desertos, multidão, barco, curas e controvérsias. Ocupa a primeira parte do evangelho (1,1-8,21). Na segunda parte (8,27-16,8) o cenário muda totalmente: Tudo acontece na grande viagem de Cesareia de Felipe até Jerusalém. Jesus se dedica a ensinar os discípulos para o que eles estavam com o coração endurecido. Por três vezes Jesus repete o ensinamento (8,31; 9,31-32; 10, 33-34) e por três vezes os discípulos resistem fazendo o contrário. Há poucas curas. Em vez de casas e sinagogas as cenas decorrem no caminho. O destino é Jerusalém, mas passa as noites em Betânia, exceto a noite em que é preso. Todos o abandonam, exceto José de Arimateia, que pede o corpo de Jesus (15,42), e algumas mulheres presentes na crucifixão e que observam onde o corpo é colocado (15,40).

Uma terceira referência é o drama ou enredo do Evangelho em torno do personagem central, Jesus, e as relações que os outros personagens terão com ele: discípulos (seguidores, os doze, os três, Levi), discípulas, multidão, espíritos impuros, escribas, fariseus, saduceus, o sumo sacerdote, herodianos, Herodes, Pilatos, as crianças... Tudo começa com o anúncio de João Batista, que diz que, depois dele vem alguém mais forte do que ele (1,7), mas o que vemos é Jesus que vem de Nazaré, é batizado por João e recebe uma revelação de ser o Filho amado de Deus (1,11). O/a leitor/a já o sabe, mas os seguidores ainda não. Os espíritos impuros também o sabem, mas são obrigados a se calar e sair (1,25). A multidão se pergunta: “Que é isto”? (1,27) e os discípulos: “Quem é este que até o vento e o mar obedecem?” (4,40). Os escribas o julgam um blasfemo (2,7), os fariseus se articulam com os herodianos para matá-lo (3,6) e Herodes o confunde com João Batista ressuscitado (6,16).

Finalmente, na metade do evangelho, quando alguns ainda o confundem com Elias ou um dos profetas (8,28), Pedro finalmente responde: “Tu és o Cristo” (8,29), mas é proibido de divulgá-lo. Parece que ainda não sabia o que dizia (9,6). Precisava superar as expectativas messiânicas de Israel e ouvir a voz que vem da nuvem: “Este é meu Filho amado; ouvi-o” (9,7). Ouvir de Jesus que não há outro caminho a não ser o seguimento da cruz. E é justamente ao ver o modo de Jesus expirar, que o centurião, um pagão, diz: “Verdadeiramente este homem era filho de Deus!” (15,39). Mas ele usa o verbo no passado: era. A derradeira revelação se dá às mulheres que não temem ir ao túmulo. Um jovem sentado à direita, vestido de túnica branca, lhes diz: “Ressuscitou, não está aqui... Ele vos precede na Galileia” (16,6-7).

O que faríamos nós? O que fazemos? Ficamos também com medo e caladas/os como as mulheres (16,8)? Saímos chorando pesarosamente como Pedro, depois de tê-lo negado (14,66-72)? Ou proclamamos por toda a região o quanto o Senhor fez por nós na sua misericórdia, como o fez o geraseno liberto dos demônios (5,19-20) e o homem curado da lepra (1,45)? Melhor recomeçar do “Início da Boa Nova...” (1,1).

Uma quarta referência é o rompimento definitivo com a fronteira judaica, substituindo a circuncisão e o culto sacrificial pelo batismo e pela eucaristia, ancorados no começo e no fim da vida pública de Jesus. João Batista anunciara que viria alguém mais forte do que ele e “que vos batizará com o Espírito Santo” (1,6-7). Esse alguém mais forte veio e, em vez de batizar, como era de se esperar, se deixa batizar e sobre ele repousa o Espírito Santo (1,10). Como Marcos diz - “Ele vos batizará” - presume-se que está se referindo a todos os cristãos e as cristãs, que serão batizados por meio dele com o Espírito Santo. No relato da eucaristia (14,22-25), embora não apareça, como em Paulo o “fazei isso é minha memória” (1 Cor 11,17), o caráter etiológico da narrativa é evidente.

Nestes dois ganchos – o batismo e a eucaristia narrados no início e no fim da vida pública de Jesus – podemos dependurar, como numa rede, toda narrativa de base do Evangelho, que reconhece Jesus terrestre como humano e divino ao mesmo tempo. Deste modo, os cristãos se distinguem dos judeus e se aproximam dos pagãos em condições de igualdade. Longe do templo, Jesus perdoa pecados (2,1-12), transgride a lei do sábado (2,23-27), multiplica pães e caminha sobre as águas (6,35-52), rompe com a lei da pureza (7,14-23) e reinterpreta os ritos sacrificiais com a primazia da lei do amor (12,28-34).

A abertura aos de origem pagã se deu de forma conflitiva. Havia resistências externas, pois Jesus é expulso da região dos gerasenos depois de um exorcismo bem-sucedido (5,17), e resistências internas, como se pode supor na cena dos discípulos que não conseguem avançar, pois os ventos lhes eram contrários (6,48). Uma mulher siro-fenícia vence Jesus no debate sobre a participação dos pagãos na mesa dos seus seguidores e, deste modo, Marcos convida a comunidade a mudar de opinião e aceitar os pagãos em pé de igualdade. Na ocupação do templo, Jesus recorre a Isaías (Is 56,7) e declara-o como casa de oração para todos os povos (11,17). Com sua morte o véu do templo se rasgou de alto a baixo e o centurião romano reconhece que este homem era filho de Deus (15,38-39).

Uma quinta referência é o resumo que Marcos nos oferece após cada bloco temático2: 1,14-15 – Mudança de paradigma; 3,7-12 – Toques que geram nova vida; 6,7-13 – Passos que muda a história; 8,22-26 – Busca da visão integral; 10,46-52 – Com Jesus rumo ao confronto; 13,33-37 – Vigilância e cuidado contemplam o discípulo; 15,40-41 – Serviço permanente no caminho de Jesus.

Vamos nos guiar por estas pegadas deixadas por Marcos para fazer o nosso estudo, sem deixar de lado os outros enfoques. Assim, pretendemos conhecer melhor quem é Jesus e como fazer para nos assemelhar a Ele em nosso seguimento.

Testemunho do Reino e formação do discipulado (Mc 8,22 – 10,52)

Jesus começa uma nova etapa na realização do tempo que se cumpre e do Reino que se aproxima (1,15). Uma etapa que Marcos assinala geograficamente como um caminho que Jesus começa a percorrer em companhia dos/as discípulos/as desde o extremo norte, Cesareia de Filipe (8,27) até Jerusalém, extremo sul e centro do poder econômico, político e religioso do mundo judaico. Didaticamente, Marcos introduz a seção com a cura de um cego que recupera a vista de modo gradual (8,22-26) e a termina com outro relato de um cego que está à beira do caminho e, graças à sua fé e insistência, recupera a vista e começa a seguir a Jesus no caminho (10,46-52). Estas duas curas são paradigmáticas: a cegueira dos discípulos que gradualmente abrem os olhos para compreenderem quem é Jesus até verem nitidamente para segui-lo no caminho da cruz.

O seguimento dos discípulos e das discípulas é dramatizado pela exigência do seguimento da cruz, anunciado três vezes como algo necessário ou inevitável, e três vezes rejeitado pelos discípulos. Esta estrutura interna é de particular importância, tanto para o entendimento do ensino especial aos discípulos nesta parte (8,22-10,52) quanto para o conjunto do evangelho,3 pois a primeira parte de evangelização que teve lugar na Galileia e arredores (1,14-8,22) remetia à teologia da cruz, desenvolvida a partir de agora. O entendimento desta é fundamental para compreender o enfrentamento da morte de cruz em confronto com as autoridades de Jerusalém (11,1-16,8).

Atentos à ótica do discipulado e à linguagem dramática do evangelista, podemos observar a seguinte estrutura interna4, presente praticamente nos três ciclos, conforme podemos observar no seguinte quadro:



O esquema nos pode ajudar a visualizar uma dinâmica interna presente no texto com uma forma didática de repetir e aprofundar o mesmo assunto com novos enfoques. A divisão não é rígida, nem é a única possível, estruturalmente. Quer apenas destacar melhor os passos metodológicos deste período destinado especialmente ao ensinamento dos discípulos. Não são aulas separadas entre um e outro anúncio da paixão, mas dadas em momentos precisos para marcar a centralidade do ensinamento de Jesus.

O ponto central é responder a pergunta: quem é Jesus? Não a partir do que outros dizem, mas a partir do que Jesus diz de si mesmo sobre seu insistente ensinamento sobre a paixão, morte e ressurreição. Percorramos o caminho e estejamos atentos para perceber os pontos centrais e a progressividade do drama.

Daremos particular atenção ao primeiro ciclo do ensinamento e as duas curas que formam a moldura do ensinamento de Jesus.

Quem é Jesus? O que significa segui-Lo? (Mc 8,22-9,29)

Os discípulos estavam tão confusos no barco, que tinham olhos e não viam, ouvidos e não escutavam (8,14-21). Até o/a leitor/a se sente incomodado/a com tanta cegueira. O cego de Betsaida (8,22-26) representa essa situação dos discípulos que veem algo, mas mal. A esperança é que possam chegar a ver nitidamente e de longe.

O caminho passa a ser o lugar privilegiado para o ensinamento dos/as discípulos/as. No caminho começa o primeiro processo de avaliação dos peregrinos e das peregrinas em torno de sua identidade (8,27-29), a qual segue uma dupla correção não aceita pelo representante do grupo dos doze. Jesus, então, o recrimina duramente, com os olhos voltados aos discípulos (8,29-33), e, publicamente, deixa claro quais são as exigências do seguimento (8,34-9,1).

Essa prática do seguimento da cruz é confirmada na transfiguração, explicada em detalhes para os três do círculo mais íntimo (9,2-13) e pela força da fé alimentada pela prática da oração (9,14-29).

a) A esperança de ver nitidamente (8,22-26)

É notável a mudança de Jesus na forma de realizar a cura: tomando o cego pela mão, levou-o para fora do povoado e, cuspindo-lhe nos olhos e impondo-lhe as mãos, perguntou-lhe: "Percebes alguma coisa?" Antes as curas eram imediatas, graças à fé do pedinte ou de outros que as solicitavam. Aqui há um ritual que se realiza gradualmente e no qual Jesus pergunta ao paciente como vai indo o processo de recuperação. Necessita uma segunda imposição de mãos para que comece a ver nitidamente e de longe.

Chama atenção a passividade do cego. “É levado pelos amigos, é conduzido e tratado por Jesus. Só responde ao que Jesus pergunta e, curado, toma o caminho de casa.

(...) Da cegueira total passa à visão desfocada e finalmente à boa visão. A cura exige tempo e aplicação para reconstruir na pessoa os elementos que vão garantir a libertação da cegueira para sempre”.5

Como o cego é anônimo e as pessoas que rogam para que o toque são indeterminadas, esse "milagre" certamente possui um significado simbólico. Representa a situação dos discípulos,6 com muita dificuldade para entender, mas nos quais Jesus continua depositando toda a sua confiança. Passará a investir mais tempo neles, dedicando-se especialmente à sua formação.

A ação de Jesus com o cego simboliza o que ele fará com os discípulos ora em diante: irá levá-los para fora dos povoados e lhes dedicará um tempo especial de formação pelo caminho. Perguntará a eles o que estão entendendo (8,27-29) e o que estão discutindo (9,16.33), e lhes "cuspirá" duras advertências acerca das práticas equivocadas (8,33ss; 9,19; 9,38ss; 10,13ss).

Cuspir no rosto de alguém, em nossa cultura, significa um ato de máximo desprezo. Este, porém, não é o significado do gesto de Jesus de passar cuspe nos olhos do cego. Na cultura de então, saliva era símbolo de poder, assim como na cultura de alguns povos africanos o cuspe significa bênção.

b) Quem é Jesus e o que significa ser o Cristo (8,27-31)

Na narrativa, o lugar do discipulado é definitivamente retomado, não mais no barco, deixado para trás, mas no caminho anunciado por Isaías por meio de João Batista no deserto (1,3ss.), assumido por Jesus.

A caravana de Jesus, com destino a Jerusalém, se inicia no extremo norte da Palestina, na tetrarquia de Filipe, em Cesareia, uma importante cidade helenista, que Marcos opõe ao caminho inaugurado por Jesus. E é no caminho que Jesus faz a dupla pergunta, dirigida aos discípulos e aos leitores: Quem dizem os homens que eu sou? E vós, quem dizeis que eu sou?

A expressão eu sou recorda-nos o diálogo de YHWH com Moisés, na sarça ardente (Ex 3,3), em que o profeta Moisés recebe a missão do eu sou aquele que é para enfrentar o faraó e exigir-lhe a libertação do povo escravizado.

A resposta à primeira pergunta — João Batista, Elias ou um dos profetas — revela a enorme confusão existente em torno da identidade de Jesus, tanto por parte dos inimigos (2,7; 6,16) como por parte da multidão (1,27) e, inclusive, dos discípulos (4,41). Sur-preendente é a reação de Jesus à resposta de Pedro: Tu és o Cristo. Se Pedro respondeu certo, conforme a informação que Marcos nos antecipara (1,1.11), por que proibiu-os severamente de falar a alguém a seu respeito?7 Faltaria algo à profissão de fé?

Pedro entendia por Messias algo completamente diferente de Jesus. Para Pedro, o Messias não era um simples profeta, mas a figura real que viria restabelecer os objetivos políticos de Israel. Pensava que a revolução estava prestes a acontecer. O primeiro corretivo de Jesus foi pedir silêncio. O segundo foi não aceitar o título de Messias e sim o de Filho do Homem, o Humano, tomado da visão apocalíptica e oposto à brutalidade das bestas. Terceiro, que ele deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar. Não há outro caminho a não ser enfrentar a cruz. É esta a única cristologia aceita pelo evangelho de Marcos. Somente a cruz faz com que Jesus seja o Cristo. Jesus não se assume como o Messias triunfalismo que pretende restabelecer a realeza de Israel, mas como o Humano sofredor, na perspectiva do servo de YHWH, descrito por Isaias.8

Dois novos atores aparecem no enredo de Marcos: os anciãos e os sumos sacerdotes. Integrarão o time dos inimigos de Jesus.

c) Os discípulos erram e recebem dura repreensão (8,32-33)

Jesus assume de fato a cristologia da cruz, pois dizia isso abertamente. Pedro não estava de acordo. Em sua compreensão do Cristo, não cabia cruz. Chamando-o de lado, começou a recriminá-lo. Ele, porém, voltando-se e vendo seus discípulos, recriminou Pedro, dizendo: "Afasta-te de mim, satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens!" Literalmente o texto diz: “para trás de mim, satanás”. Em vez de seguir Jesus estava querendo tomar a dianteira e assessorar Jesus sobre o que convém dizer.

Dois fatos chamam imediatamente a atenção. O primeiro é a recriminação mútua: Pedro recrimina Jesus, e Jesus recrimina Pedro. Estão em debate duas cristologias: a cristologia da cruz, que é de Deus, e a cristologia sem cruz, que é humana e de inspiração satânica.9 As palavras duras de Jesus lembram sua luta contra satanás (1,13), o embate ideológico contra os escribas (3,22ss) e aqueles que estão à beira do caminho: escutam a palavra, mas vem satanás e imediatamente arrebata a palavra neles semeada (4,4.14). Não aceitar a cruz significa não se comprometer com a vida nova que necessariamente implica rupturas com a atual situação e um compromisso de vida. Jesus não quer discípulos que fiquem assistindo ao espetáculo dos que dão testemunho, mas que sejam capazes de lutar sem temer a morte.

O segundo fato que chama a atenção são as atitudes de Pedro e de Jesus. Pedro chama Jesus à parte para “convencê-lo de seu possível erro”. Jesus se volta para os discípulos e recrimina Pedro publicamente. A pedagogia de Pedro consiste em querer resolver as diferenças em conchavos, à parte; a de Jesus, em dizer as coisas abertamente e corrigir o erro imediatamente. Não fecha o olho, nem, adia o conflito, mas o enfrenta e faz com que o outro assuma seus atos. Diz o que deve ser dito, nem que doa. Desta forma possibilita que os companheiros cresçam e se tornem maduros.

Portanto, duas coisas se exigem no seguimento de Jesus: a) opção e opinião própria em relação a Jesus e b) coerência de vida, para que esta opção corresponda a sua própria realidade. Não dá para seguir Jesus e querer ficar somente com o que agrada. Seguir Jesus significa enfrentar e superar os conflitos, e os sofrimentos inerentes de quem entrega a sua vida.

d) As exigências do seguimento de Jesus (8,34-9,1)

Como se não bastasse a repreensão a Pedro, Jesus chama para junto de si a multidão, ou seja, todos/as os/as seguidores/as, e lhes expõe as condições do seguimento: Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.

Trata-se de um segundo chamado dirigido aos/às discípulos/as e aos/às leitores/as. O imperativo é o mesmo — vinde após mim (1,17); segue-me (2,14) —, mas agora é antecedido por outros dois: negue-se a si mesmo e tome a sua cruz. Duas exigências difíceis de cumprir, pois "tomar a cruz" significava ser condenado à morte, enfrentar a vergonha de ter de carregar publicamente a cruz até o lugar da caveira, ser despido e torturado até a morte. Algo nada atraente, mas factível. Se isto sucedeu ao mestre,10 também poderá suceder aos discípulos, como de fato estava acontecendo. Por isso, a primeira condição para o seguimento de Cristo é a autorrenúncia, negar-se a si mesmo, correr o risco de ter de perder a própria vida.

O paradoxo — aquele que quiser salvar a sua vida irá perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim e do evangelho irá salvá-la — se situa no contexto de perseguição em que os discípulos e leitores deverão escolher entre envergonhar-se no julgamento do tribunal do estado e, então, envergonhar-se no tribunal divino, ou ser fiel a Jesus e ao evangelho até a morte e obter a vida por recompensa. Quem vive com terror da morte já está morto, pois não é ele que vive e sim o seu medo. Ser discípulo/a é coisa de vida e morte.11 Tem-se a vida morrendo. Quem quiser controlá-la irá perdê-la. Ela é um dom que pode ir-se a qualquer momento.

e) A voz da nuvem e as escrituras confirmam o projeto de Jesus (9,2-13)

Jesus proporciona aos três companheiros de maior confiança testemunhar a manifestação de YHWH a respeito de seu Filho. Pedro não consegue compreender o momento, propondo construir um memorial de três tendas. Pela segunda vez, distorce as palavras de Jesus e é repreendido, desta feita pela voz da nuvem: Este é o meu Filho amado; ouvi-o. Uma confirmação da voz que se ouvira no batismo do Jordão (1,11) e que agora confirma o projeto de Jesus e sua proposição do caminho para a cruz, com uma recomendação especial: ouvi-o. Deste modo eles são desafiados a crescerem na intimidade com Jesus e de irem além das aparências e do momento presente.

f) A luta pela fé (9,14-29)

Os discípulos que haviam recebido autoridade sobre os espíritos impuros e já haviam expulsado muitos demônios (6,7.13) não puderam expulsar um espírito mudo que atormentava a vida de um menino (9,14-29) por sua falta de fé no Cristo da cruz e no caminho por ele proposto. Ó geração incrédula! — reage Jesus desapontado, mas disposto a fazer algo: Trazei-o a mim. Encoraja a fé do pai, como também o fizera com Jairo na "ressurreição" de sua filha (5,36s): Se tu podes!... Tudo é possível para aquele que crê! Sentindo-se desafiado, o pai expressou sua fé em forma de oração sincera: Eu creio! Ajuda a minha incredulidade!

Há uma relação entre a experiência e instrução que os três discípulos receberam na montanha e a experiência e instrução dada aos discípulos durante o exorcismo. Os primeiros, surdos ao ensinamento de Jesus sobre a necessidade de negar-se a si mesmo, de tomar sua cruz e segui-lo, ouvem uma voz da nuvem e a explicação das Escrituras que confirmam essa opção; os outros, incapazes de expulsar o espírito surdo-mudo que ameaçava a vida da criança, por não acreditarem que tudo é possível àquele que crê, recebem o exemplo do pai do menino que foi encorajado a fortalecer sua fé pela oração.

O significado do seguimento da cruz (9,30-10,16)

Jesus voltou a insistir no mesmo ponto, ensinando-lhes que a cruz era inevitável (9,30s), mas eles não compreendiam, nem aceitavam este caminho. Rejeitaram-no discutindo quem seria o maior (9,32-34). Tendo apontado a contradição da prática dos discípulos com o verdadeiro seguimento, Jesus os corrige ensinando-lhes o que significa ser o primeiro no caminho proposto por ele, com palavras e expressões simbólicas (9,35-37), e como devem ser as relações com outros seguidores e entre os membros da própria comunidade (9,38-50).

Quando a caravana de Jesus chega à região da Judeia, Marcos chama a atenção para o fato de que a multidão não está ausente nesta caminhada e que os inimigos estão vigilantes (10,1-2). No embate com os fariseus, Jesus ensina que tornar-se o último e o servo de todos significa criar relações de igualdade entre homem e mulher (10,3-12) e dar atenção prioritária às crianças (10,13-16).

a) Ensinamento e rejeição do caminho da cruz (9,30-34)

Marcos sinaliza com insistência a caminhada simbólica de Jesus do extremo norte a Jerusalém. Atravessam a Galileia e não queria que ninguém soubesse, pois ensinava com exclusividade aos seus discípulos sobre sua entrega, morte e ressurreição. Para haver ressurreição precisa haver entrega.

Os discípulos não compreendiam e tinham medo de interrogar. Jesus espera o momento oportuno, em casa, na cidade de Cafarnaum, onde havia iniciado sua primeira caminhada evangelizadora (1,21), e arranca deles a causa de sua incompreensão: Pelo caminho vinham discutindo sobre qual era o maior. Enquanto Jesus discute a entrega, eles discutem a apropriação.

b) Fazer-se o último e o servo de todos (9,35-37)

O paradoxo segue a mesma direção do anterior: o que perder a sua vida... irá salvá-la (8,35). Entregar a vida é fazer-se o último, assumir a mentalidade de servo e não de mandante; de empregado que se solidariza e não de mandachuva que dá ordens a subordinados. Para não deixar dúvida tomou uma criança, colocou-a no meio deles e, pegando-a nos braços, explicou-lhes visualmente que quem acolhe uma criança acolhe a ele e realiza a vontade de Deus.

c) Acolhimento aos "de fora" e o cuidado da paz interna (9,38-50)

João apresenta outro problema da prática equivocada do grupo dos doze: impedir um estranho de expulsar demônios. A razão de tê-lo proibido: pois ele não nos seguia, o que até parece uma ironia.

d) Voltar às origens para superar a opressão no sistema familiar (10,1-12)

Coerente com o ensinamento anterior, Jesus toma posição do lado das últimas, as mulheres. O caminho da cruz implica criar novas relações familiares, não mais baseadas no androcentrismo, mas em condições de igualdade e respeito mútuo.

e) O acesso das crianças: confrontação da prática dos discípulos (10,13-16)

Jesus reage energicamente e corrige as atitudes dos discípulos, viciadas pela prática de se considerarem as pessoas mais importantes. Lembra-lhes que as crianças, que ocupam os últimos lugares, são as que devem ser destacadas, pois delas é o Reino de Deus.

Deixar tudo e fazer-se o servo de todos/as (10,17-52)

Cumprir os mandamentos não é suficiente para obter a vida eterna. É preciso deixar tudo, como o fizeram os/as discípulos/as, e partilhar os bens com os/as pobres (10,17-31). Quem o fizer terá o cêntuplo, mas com perseguições. O caminho da cruz é inevitável (10,32-34). Os discípulos continuam rejeitando o seguimento da cruz, pela prática da disputa pelo poder. Jesus lhes mostra como deve ser exercida a liderança no caminho que estavam inaugurando (10,35-45). O cego de Jericó dá o exemplo de verdadeiro discipulado (10,46-52).

a) As implicações econômicas para o seguimento (10,17-31)

Por três vezes Jesus se vale da janela dos olhos (10,21.23.27), para responder a uma questão vital: O que é preciso fazer para herdar vida eterna. A questão é proposta por alguém que guardava piedosamente os mandamentos de Deus e possuía muitos bens, num contexto de retomada do caminho. O texto diz explicitamente: Fitando-o o amou.

Diante da recusa do jovem em deixar os bens, o olhar penetrante de Jesus perpassou os/as discípulos/as que estavam ao seu redor: Como é difícil a quem tem riquezas entrar no Reino de Deus, repete por duas vezes! Diante da perplexidade dos/as discípulos/as Jesus os/as fita de novo com o brilho da esperança do profeta Zacarias: o que parece impossível aos olhos do que resta deste povo, não o é para Deus (Zc 8,6-8). Ele pode mudar a disposição do coração humano amarrado às riquezas. Quem deixar tudo herdará a vida desde agora. Quem deixar tudo... receberá cem vezes mais desde agora com sofrimento...

b) A inevitável consequência de uma vida de entrega (10,32-34)

A descrição detalhada do cenário dramatiza o caminho do seguimento da cruz. Por duas vezes é lembrado que estavam subindo a Jerusalém. Jesus ia à frente, e os discípulos acompanhavam-no com medo. Não era à toa. Iriam confrontar-se com os anciãos, escribas e chefes dos sacerdotes.

Jesus não poderia ser mais realista. Prevê tudo o que vai acontecer: entrega do Filho do Homem por traição, o duplo julgamento, a condenação à morte, a humilhação, tortura e execução. Mas três dias depois ele ressuscitará, termina o refrão, pela terceira vez.

c) O papel da liderança no caminho da cruz (10,35-45)

Os discípulos, porém, ignoravam o que Jesus lhes estava falando. Embora o acompanhassem, faziam seu próprio caminho. As disputas pela liderança na comunidade geraram mal-estar em todo o grupo.

Mostrou-lhes que estavam sendo reincidentes no erro (9,34) e aplicou o mesmo princípio de ser o último (9,35) ao conflito interno do grupo: Aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servo, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o escravo de todos. O exemplo é dado pelo próprio mestre que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.

d) A luta do cego e dos discípulos para recuperar a visão (10,46-52)

O exemplo de como se deve seguir a Jesus é dado por Bartimeu, um mendigo cego que estava sentado à beira do caminho. Ao perceber que era Jesus que estava passando, faz o que lhe é possível: gritar a plenos pulmões para que ele tenha misericórdia. Reprimido por muitos, grita com mais força ainda. Assim que lhe anunciam que Ele o chamava, deixando a sua capa foi até ele. A única coisa que queria era ver.

Cada termo empregado por Marcos está imbuído de significados que recuperam a caminhada realizada até o momento, e a luta dos/as seguidores.

Sua condição social contrasta com a do homem que perguntara sobre o que fazer para possuir a vida eterna (10,17-22). Em ambos os casos, Jesus é interrompido ao retomar o caminho para Jerusalém. Bartimeu, limitado pela falta de visão, reprimido por muitos, não pode correr e ajoelhar-se diante dele, mas também não espera sentado: “perturba” a caminhada gritando. O homem rico queria impressionar a Jesus pelo cumprimento dos mandamentos; Bartimeu, por seu apelo insistente à compaixão. O rico chamou a Jesus de bom mestre, um título bajulador; Bartimeu o chama de Rabbúni, termo aramaico para designar "meu mestre" ou simplesmente "mestre", de coração. O rico estava preocupado com a outra vida; Bartimeu, simplesmente ver novamente! O rico saiu pesaroso porque tinha muitos bens; o cego deixou sua capa, tudo o que tinha antes de recuperar a vista. Assim que a recuperou, seguia-o no caminho.12

A luta do cego para recuperar a visão contrasta também com a cegueira e a resistência dos discípulos em colocar-se realmente no caminho. Em vez de deixarem cair a palavra em terra boa, estavam deixando que as palavras semeadas por Jesus fossem desperdiçadas à beira do caminho, sujeitas a serem arrebatadas por satanás (4,4.15). Por terem rejeitado o Cristo e o caminho da cruz, haviam sido repreendidos duramente por Jesus, porque estavam fazendo o jogo do diabo (8,33).

O tema do exorcismo aparece também nas entrelinhas, à sombra do título — Jesus, o Nazareno. É a segunda vez que ele aparece nesse texto. Na outra ocasião, foi pronunciado pela boca de um homem possuído (1,24) que se sentiu ameaçado com a presença de Jesus. Possivelmente Marcos esteja aludindo implicitamente à luta interna do discipulado para vencer a tentação do triunfalismo messiânico. Bartimeu chamou a Jesus com o título messiânico de Filho de Davi, mas quando se realiza o encontro com Jesus ele o chama de Rabbúni, que revela intimidade e confiança. Para os bons entendedores, isso significa que para seguir na aventura do discipulado é preciso exorcizar os demônios internos que não permitem reconhecer nossa cegueira.

O cego de Jericó, assim como o cego de Betsaida (8,22-26) não nasceram cegos. O que aconteceu para que chegassem a este ponto? O de Betsaida é passivo, é conduzido por outros e responde estritamente o que lhe é perguntado. O de Jericó, pelo contrário, tem nome, Bartimeu, e sobrenome, filho de Timeu, e é altamente ativo. Pergunta, grita, enfrenta a multidão, salta, joga a veste, vai ao encontro de Jesus, recebe a cura e torna-se seu seguidor. O que nos faz perguntar: O que é necessário jogar, abandonar para abrir os olhos e seguir decididamente Jesus? 

A pedagogia da cruz

Se nos oito primeiros capítulos foi narrado o constante movimento de Jesus pelas aldeias, pelo mar da Galileia e pouco ou quase nada sobre o que ele ensinava exceto pelo capítulo quarto, aqui temos uma situação inversa: uma única caminhada, interrompida várias vezes, com ênfase na palavra de Jesus que ensina, explica, corrige e exemplifica a prática do seguimento.

Marcos escreve para sua comunidade em tempo de guerra, marcada pela perseguição, dúvida e insegurança. Responde a suas questões organizando didaticamente os ensinamentos de Jesus. Atualiza o evangelho de Jesus Cristo. Podemos captar traços da pessoa de Jesus e de sua pedagogia, bem como nas correções de rota das atitudes tomadas pelos discípulos.

a) Ensinamento no caminho para a cruz

1. A mudança do cenário e a do modo de organizar o texto revela também uma mudança de Jesus na forma de anunciar o Reino. Não ensina mais prioritariamente à multidão, como o fazia na primeira parte, mas aos/às discípulos/as; realiza poucas curas (8,22-26; 9,14-29; 10,46-52), e estas assinalam o processo educativo para aprender a ver, ouvir, acreditar e segui-lo no caminho; a cruz aparece no horizonte como uma certeza. Compreende, então, sua missão como Messias, segundo a profecia, de Isaías, do servo que triunfa pela resistência (Is 50,4-9; 53,1-12).

2. Jesus fundamenta sua missão em uma releitura do Antigo Testamento. Os discípulos e os fariseus também (9,11; 10,4), mas as conclusões são opostas. A diferença é que Jesus as interpreta sob o critério da maior fidelidade ao projeto de Deus, que se expressa na vida e dignidade das pessoas, na igualdade de condições, no acesso das crianças (os últimos)... A palavra escrita não é letra morta, ainda que seja de Moisés (10,5), mas palavra contextualizada e mesmo suscetível de concessões por causa da dureza dos corações. Também não é mera repetição e cumprimento restrito das leis, e sim um compromisso de solidariedade com o povo (10,21), o que exige o aperfeiçoamento da lei, conforme o acréscimo introduzido na citação dos mandamentos (10,19).

3. Ao iniciar a caminhada, Jesus avalia o pulso do grupo, contrastando o que dizem os outros com o que dizem os discípulos a respeito dele. Sua pergunta — o que dizem, e o que dizeis quem eu sou — evoca a revelação de YHWH a Moisés, na sarça ardente, onde se selou o compromisso de libertar o povo oprimido. Para segui-lo, não basta o que dizem os outros. É necessária uma convicção pessoal, um compromisso efetivo de seguimento até as últimas consequências, na autenticidade de se ser o que se é. Portanto, vamos descobrir quem é Jesus não pelo que dizem os outros ou pelo que Ele faz, mas pelo que Ele diz de si mesmo em seu insistente tríplice anúncio da paixão, morte e ressurreição.

4. A vitória é antecipada no momento místico da transfiguração. Seu ensinamento é confirmado pela Escritura no diálogo com Moisés e Elias e pelo próprio Deus que o nomeia Filho amado que deve ser ouvido em seu ensinamento novo sobre o caminho da cruz. O que, talvez, melhor resume o que Ele diz de si mesmo é: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (10,45).

5. O ensinamento de Jesus é diferenciado. Dedica tempo especial ao ensino dos discípulos, revela-lhes sua identidade, mas exige que mantenha segredo até que seja compreendido o que significa ser o Cristo (8,30). Há outros segredos que só revela a um grupo mais íntimo, e exige o mesmo silêncio até o momento oportuno (9,9). Jesus, portanto, confia seus segredos a seus amigos, mas sabe a quem, quando e como confiá-los.

6. O local de ensinamento não é sentado, como o faziam os rabinos judeus e os gregos, mas andando pelo caminho. A metodologia de Jesus era de ensino através da prática. Para aprender é preciso colocando-se a caminho por inteiro.

7. Jesus não abre mão de seus princípios básicos. Denuncia publicamente a prática das pessoas que querem desviá-lo do verdadeiro caminho, mesmo que seja a maior liderança. Não fecha os olhos, nem ajeita as coisas, mas diz a verdade, mesmo que doa, pois esta liberta. Da mesma forma, convoca todos/as para expor seu projeto e as condições do seguimento (8,34-38). Suas relações são claras; sua proposta, transparente.

8. Os conflitos são o ponto de partida para as instruções, sejam eles de ordem interna (8,32ss; 9,34ss; 10,35ss) ou provocados por outros (9,14ss; 10,1ss; 10,17ss).

9. Jesus é duro na crítica à teimosia dos discípulos que persistiram no erro, mas reconhece os passos e lhes promete a recompensa possível desde agora (10,28-31).

10. O chamado de Jesus é radical, realista, total, coisa de vida e morte. Ele nada esconde, não consola nem passa uma tinta no medo e na tremedeira dos discípulos, enquanto sobem para o confronto derradeiro (10,32). Ele apenas vai à frente deles/as.

11. Jesus toma a atitude de quem sabe o que se passa entre eles e assume uma posição crítica diante dos conflitos. Está atento e não se omite diante do silêncio que esconde problemas sérios a serem resolvidos (9,33).

b) O catecismo do seguimento da cruz

1. Tendo acompanhado cuidadosamente a caminhada de Jesus desde o começo, a primeira coisa que nos chama a atenção é a centralidade da teologia da cruz, anunciada como algo necessário (8,31; 9,12), e como consequência de sua subida a Jerusalém (9,31; 10,33). Em todas as explicações que Jesus dá aos discípulos, a única vez em que Marcos diz explicitamente que ele lhes ensinava (didáskein) é no momento em que Jesus anuncia seu destino político (8,31; 9,31). Em outras ocasiões, sempre emprega o verbo "dizer" (legein). Um sinal de que o objetivo de todo esse catecismo do seguimento era fazer com que os discípulos entendessem o Messias como o Cristo da cruz e não como o rei poderoso esperado.

2. Marcos organiza didaticamente o ensinamento de Jesus sobre o seguimento da cruz, por meio de uma estrutura de repetições que mostram, por um lado, a dificuldade e a resistência dos discípulos para andar nesse caminho e, por outro, a evidência de que esse é o único caminho correto e que precisa afetar todos os níveis das relações humanas. Em diversos momentos e de formas diferentes, são corrigidas tanto as pretensões triunfalistas dos discípulos, imbuídas das malhas satânicas (8,34-38; 9,35-37; 10,45), como sua prática de seguimento equivocada, que fazia vacilar ante a possibilidade de mudança (9,18), abafava o trabalho dos concorrentes (9,38), impedia o acesso dos últimos (10,13) e repetia a mesma estrutura política de dominação (9,34; 10,37). Tinham muita dificuldade em entender a lógica de Jesus que declarava direitos iguais na família (10,10) e desmistificava a riqueza como bênção divina (10,23-27).

3. O ensinamento de Jesus não é somente racional, com argumentos lógicos e frases de efeito, como o são os paradoxos de vida/morte, primeiro/último, maior/servidor, nem somente de correção de atitudes equivocadas e contrárias à dinâmica do caminho do seguimento de Cristo, mas também de expressão mística, simbólica e sensível, como a experiência no alto da montanha (9,2-8) ou o simples gesto de abraçar, abençoar e impor as mãos sobre as crianças (10,16). São expressões simbólicas que, na verdade, confirmam em nível profundo o ensinamento teórico de tomar a cruz e segui-lo, ou de colocar as crianças no centro das atenções (9,36).

4. O caminho do seguimento é o palco do ensino e das instruções. Todo ensinamento é dado no caminho que começa em Cesareia de Felipe, no extremo norte da geografia conhecida pela comunidade de Marcos, rumo a Jerusalém, lugar de confronto definitivo com as autoridades judaicas. Não é um estudo teórico à parte para depois ser aplicado na prática, mas um ensinamento que se dava no caminho do enfrentamento de um conflito de vida ou morte. Só aprende quem se põe a caminho.

O caminho é o lugar privilegiado do ensinamento. O texto faz alusão várias vezes explicitamente (8,27; 9,30; 10,32.52), ou durante a caminhada (9,9), ou ainda ao ser interrompido por alguém (10,1.17.46). No entanto, ao chegarem em casa, são esclarecidas as dúvidas e questionadas as distorções do ensinamento (9,28.33; 10,10). A casa é também uma concretização da promessa de Jesus de receberem o cêntuplo. Em todo lugar a que chegam, chegam em casa.

5. O sofrimento redentor é necessário, e a cruz é inevitável. No primeiro anúncio da paixão, Jesus afirma que deve sofrer muito antes de ser morto (8,31), e o confirma aos três, ao descer da montanha (9,12). Nas outras vezes, apenas diz que será entregue aos inimigos (9,31; 10,33), portanto traído pelos seus, e executado. Do terceiro anúncio se deduz nitidamente que seu grande sofrimento pela traição, rejeição dos judeus e execução política é consequência da entrega de toda a sua vida pelos excluídos, os últimos da socie-dade, por fazer-se o servo de todos. Em ambos os anúncios aparece a figura do Humano, que sofrerá, será morto, mas três dias depois ressuscitará. Marcos, dessa forma, mostra que o Cristo é o servo sofredor anunciado por Isaías (Is 42) e o Humano que triunfa sobre as forças da morte (Dn 7).

6. A dificuldade em aceitar o Cristo da cruz está no problema da aceitação das consequências para o discipulado. A um determinado tipo de profissão de fé em Cristo, segue um determinado tipo de discipulado. A um Cristo glorioso sem cruz segue um discipulado sem entrega de si mesmo, sem autocrítica e sem se diferenciar do velho esquema excludente, discriminador e dominador.

7. O caminho da cruz deve se expressar em todas as relações humanas. Longe de ser ascetismo religioso, consideração piedosa da angústia humana, ou malogro trágico, o caminho da cruz é um exercício da prática da não violência em todas as esferas da vida: na teimosia da fé de poder expulsar as forças do mal (9,22s), na oração e no discernimento (9,28s), nas conversas pelo caminho (9,33s), no respeito aos concorrentes (9,38s), no tratamento criterioso dos conflitos internos (9,42-50), nas relações familiares de igualdade (10,1-10), na atenção aos sem-importância (9,37; 10,13-16), no desapego e na partilha dos bens (10,17-31) e, finalmente, nas relações políticas (10,44).

8. O intento de corrigir a expectativa messiânica dos discípulos, desde o começo da caminhada (8,30), não deu resultado positivo. Eles continuavam cegos, esperando até o fim um golpe messiânico de força (10,35-45). Mesmo assim, não são excluídos ou expulsos do discipulado.

9. Marcos articula dialeticamente os ensinamentos de Jesus entre o ensino exclusivo aos discípulos (9,9-13) e o ensino público (9,14-29; 10,1); entre as instruções dadas no caminho (8,27; 9,30; 10,32) e as explicações específicas em casa (9,33); entre o anúncio de algo novo e a concretização disto na prática. Há momentos em que os confronta teoricamente, ora questionando-os (9,33) ou respondendo a suas perguntas (9,11-13; 10,35-40), ora em público, confrontando a prática deles com a de outras pessoas (10,2-9.17-31), ou ainda com as atitudes que ele mesmo toma (9,29; 10,16). O horizonte teológico do discipulado não se fecha com os discípulos. A multidão, embora introduzida artificialmente em momentos cruciais, serve de contraponto para desmascarar a tendência exclusivista dos discípulos (8,34; 9,14; 10,1). Por outro lado, isso também indica que não se pode seguir o caminho da cruz sem estar relacionada com a problemática existencial da população enganada pelos grupos dirigentes.

10. Além do resgate essencial da vida de seguimento, Marcos expõe os problemas de sua comunidade à luz do caminho da cruz, tais como o da apostasia e traições, que se agravavam por estarem em guerra e ameaçavam a unidade dos grupos ou das comunidades (9,42-50). Marcos reconhece que há "filhos das trevas" dentro das comunidades e "filhos da luz" fora delas (9,38s.).

11. E qual teria sido o interesse de Marcos em deixar tão mal os discípulos que rejeitam sistematicamente o ensinamento de passar pela cruz? Os que mais decepcionam são justamente os três líderes que recebem instruções privilegiadas: Pedro, Tiago e João. Na época da redação, Tiago e João estavam dirigindo a Igreja de Jerusalém. Ao apresentá-los desta forma, Marcos está estimulando a responsabilidade crítica tanto dos que assumem a direção da comunidade como dos demais integrantes. Dos dirigentes, para que assumam esse cargo de fato como um serviço, e dos membros das comunidades, para que tenham suficiente distância crítica e se preparem para possíveis decepções que podem ocorrer em todos os grupos, devido ao exercício do poder.

12. As mulheres estão presentes no ensinamento de Jesus. Elas são as que ocupam o último lugar em nível de importância na escala de valores, num contexto patriarcal da cultura judaica. Não se pode continuar a caminhada se não se enfrenta o problema da dominação que perpassa todas as relações humanas. Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos (9,15). E, até o momento, a única pessoa que apareceu assumindo esse papel de serva (diakonia) foi uma mulher no começo da narrativa, curada de sua febre (1,31).

2 Reproduzimos aqui os sumários, que ligam as sete unidades do evangelho, proposto pela Equipe de Reflexão Bíblica da CRB: Reconstruir relações num mundo ferido. Uma leitura de Marcos em perspectiva de relações novas. Publicações CRB, 2006.

3 "A seção 8,27-10,50 constitui o centro hermenêutico do evangelho segundo são Marcos" (MURDOCK, s/d, p. 101).

4 C. Myers apresenta o ciclo tríplice desta forma: Local: Cesareia de Felipe, da Galileia para a Judeia; previsões: 8,31; 9,31; 10,32-34; cegueira: 8,32ss.; 9,35ss; 10,35-39; ensinamento: 8,34-37; 9,45ss.; 10,40-45; paradoxo: salvar a vida/perder a vida; primeiro/último; grande/menor (MURDOCK, s/d, p. 289). W Murdock apresenta algo semelhante: a) a proclamação da cristologia da cruz por Jesus, b) o rechaço dessa cristologia pelos discípulos e c) o ensinamento de Jesus sobre o discipulado da cruz (MURDOCK, s/d, p. 102).

5 CRB Nacional. Reconstruir relações num mundo ferido. Uma Leitura de Marcos em perspectiva de relações novas. Publicações CRB/2006, p. 105.

6 Segundo o evangelho de João, três dos discípulos são nomeadamente de Betsaida: André, Pedro e Filipe.

7 "Marcos usa a mesma ordem enérgica (epetimesen) com que Jesus anteriormente silenciara os demônios (1,25; 3,12) e o vento (4,39), preparando-nos para a sombria acusação de 8,33" (MYERS, 1992, p. 295).

8 Isaías 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12.

9 "Se anteriormente os discípulos não entenderam que Jesus era o Cristo, agora o entendem, mas o entendem mal, porque não reconhecem que a cruz é constitutiva de seu ser Cristo" (MURDOCK, s/d, p. 103).

10 Tenhamos presente que Marcos escreve no contexto da guerra judaica contra o império romano.

11 As condições do discipulado estão imbuídas da visão apocalíptica do julgamento do Filho do Homem. São contrapostos os tribunais do estado romano e o tribunal “descrito em Daniel". “Marcos, porém, não incentiva os discípulos a pôr em prática o heroísmo militar; ele introduz o paradoxo central do evangelho. A ameaça de punir com a morte é o ponto máximo do poder do Estado. O medo diante dessa ameaça conserva intacta a ordem dominante. Resistindo a esse medo e buscando a prática do Reino, ainda que a custa da morte, o discípulo contribui para destruir o reinado da morte imposto pelos poderes na história. Aceitar a soberania do Estado sobre a morte equivale a recuperar sua autoridade sobre a vida" (MYERS, 1992, p. 300).

12 "0 significado da composição social, econômica e política da narrativa do cego Bartimeu, inserida às vésperas da campanha de Jerusalém, deveria ser claro. Os pobres se unem no ataque final contra a ordem ideológica dominante, e os ricos se afastam abatidos. Os primeiros se tornaram os últimos, e os últimos os primeiros" (MYERS, 1992, p. 341).


FONTES:

BALANCIN, Euclides Martins. Como ler o Evangelho de Marcos — Quem é Jesus?. São Paulo: Paulinas, 1992.

BATTAGLIA, O; URICCHIO, F; LANCELLOTFI, A. Comentário ao evangelho de são Marcos. Petrópolis: Vozes, 1978.

BOHN GASS, Ildo (Org). As comunidades da segunda e terceira geração cristã. São Leopoldo: CEBI/Paulus, 2005. [Uma Introdução à Bíblia, Volume 8]

GAMELEIRA SOARES, Sebastião A.; CORREIA JÚNIOR, João Luiz. Evangelho de Marcos, Vol. I: 1-8, Refazer a Casa. Coleção Comentário Bíblico. Vozes, 2002.


Fernando Vanini de Maria.


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