A REVELAÇÃO DIVINA

 


Teologia da Revelação e Teologia Fundamental.

Para entendermos nosso tópico, será necessário iniciar a reflexão com um cunho antropológico. Por quê? No questionamento humano, muito se faz presente a pergunta: Quem é Deus? E também, quem é o homem? As angústias que esta pergunta gera em nós e em nossos antepassados, fizeram com que muitas correntes filosóficas e teológicas fossem sendo criadas ao longo da história. Desde o fato religioso primitivo de enterrar os mortos, até a religião sistematizada e organizada, vemos o questionar do homem, as perguntas florescerem no intelecto humano.

Qual o sentido da vida? Há vida após a morte? De onde viemos? Para onde iremos?

Assim, “a questão de Deus surge da experiência que o homem tem de si, ou seja, desde o momento que se pergunta que sentido tem sua vida, por que está no mundo e para que existe” (ARENAS, 2001, p. 17). É preciso que fixemos um ponto fundante para a reflexão da Teologia, as questões teológicas não podem e não devem surgir das coisas abstratas e puramente especulativas, o pensar teológico é fruto da experiência da vida, do cotidiano, do sentir a realidade do homem. Sendo assim, uma teologia que não leva em consideração uma boa antropologia, será destituída de qualquer fundamento real. Por isso, a disciplina de antropologia teológica é tão importante quanto as disciplinas diretas sobre Deus, pois como nos lembra Arenas, mencionando as palavras do Papa Paulo VI na alocução de encerramento do Vaticano II: 

“para conhecer a Deus é necessário conhecer o homem” (ARENAS, 2001, p. 18).

Fizemos esta introdução para deixarmos bem claro que o pensar Teologia não implica somente o pensar Deus, mas pensar Deus através de sua criação principalmente, pois, podemos chegar a Ele através de sua criação, e de modo muito particular através da criação do homem. Na natureza humana, criada a imagem e semelhança do seu Criador, somos levados a descobrir a grandiosidade da vida humana e sua importância para a Revelação. Ao Deus se comunicar com o homem e revelar seu projeto de amor para com a humanidade ,toda a criação ganha sentido ,e passa a ser um meio por excelência de se chegar a Deus. Prova disto são as cinco vias de Santo Tomás.

Sendo a Teologia uma reflexão sistematizada sobre Deus, o que seria a Teologia Fundamental? Vejamos!

A Teologia Fundamental, para início de conversa, nasceu da apologética clássica, principalmente da reflexão que a mesma realizava sobre si mesma sob pena de desaparecer, podemos dizer que a Teologia Fundamental é a saída para que os conteúdos da fé, defendidos pela apologética clássica, não se perdessem em meio ao mundo moderno e mais racionalista. Em palavras mais metafóricas podemos recorrer à linguagem da biologia que fala da adaptação da espécie ao meio para a continuação da vida. Digamos que algo semelhante aconteça com a apologética clássica e a Teologia Fundamental. Vejamos por quê?

A apologética durante muito tempo na história da Igreja foi a forma de defesa e de instrução da fé Católica. De forma resumida podemos dizer que a apologética foi tendo como maiores críticas a questão da doutrinação, isto é, levava uma doutrina pronta e acabada para as pessoas e era acusada de não considerar a realidade das pessoas, mas trazia verdades universais que não levavam em conta cada contexto. Como a apologética foi responsável pela defesa da Igreja ante os protestantes na reforma, deístas e racionalistas, falar de apologética no século XX podia cheirar a coisas retrógradas e uma metodologia arcaica e inútil para a nova realidade eclesial e social que a Igreja estava vivendo.

Justamente na tentativa de mudar o foco das reflexões teológicas e o diálogo com o mundo moderno, surge a terminologia de Teologia Fundamental, não mais agora apologética, para não dar a entender uma batalha, uma defesa em meio a uma guerra, mas uma Teologia, isto é, um estudo, uma reflexão. Esta fase da Teologia Fundamental inicia-se no pós-guerra por volta dos anos 60 e culmina com a promulgação da Dei Verbum. Depois de haver exorcizado o fantasma da antiga apologética e ter-se dissociado do termo com o qual se identificava, a apologética de “estilo novo” conhece a exultação de uma segunda primavera. Multiplicam-se as obras e os artigos sobre a revelação. O que caracteriza este período é um fenômeno de ampliação da disciplina, que se manifesta em todos os níveis: ampliação de sua tarefa, enriquecimento de seus temas privilegiados, diálogo com os novos parceiros. Tudo isto concretizado pela adoção definitiva do termo fundamental para designar sua nova imagem e sua nova identidade. Pode-se dizer que, justamente partindo destes dois termos privilegiados, isto é, a revelação e sua credibilidade, a Teologia Fundamental enriqueceu-se e aprofundou-se. (LATOURELLE, 1994, p. 951).

 Nova Orientação da Teologia Fundamental 

Quando o assunto é a Nova orientação da Teologia Fundamental, os escritos do teólogo Arenas nos ajudam muito na sistematização deste assunto. Parafraseando suas ideias, conseguimos de modo mais claro e distinto compreender o significado da Teologia Fundamental nos estudos teológicos (ARENAS, 2001). Para início de reflexão neste tópico é de fundamental importância percebermos que a característica teológica hodierna não está somente na compreensão da fé, isto é, não é somente um estudo de transmissão de verdades acreditadas por um grupo religioso, mas antes está fortemente marcada pelo questionamento da mesma. Quando dizemos questionamento da fé, não estamos querendo dizer de uma forma duvidosa, de menosprezo ou de ateísmo, mas sim de uma reflexão teológica que reflete, estuda, promove e progride, assim, através de seus questionamentos, os estudos teológicos.

Quando paramos para pensar neste questionamento da fé, temos como um paradigma excelente para o assunto, Maria. Dizemos isto, pois, no ato da Anunciação, diante da proposta do Anjo, Maria não disse somente: Faça-se, bem pelo contrário, quando o Anjo explica o que aconteceria, Maria antes de compreender, questiona: “Como é que vai ser isto, se eu não conheço homem algum?” (Lc 1,34).

Na pessoa de Maria, encontramos o modelo de uma teologia atual, o questionamento da fé, como parte fundante de uma teologia sadia, produtiva e eficaz. Sendo assim, nas próximas linhas deste tópico, estudaremos de modo muito breve o desenvolvimento da teologia fundamental, seus principais temas e sua evolução histórica.

 A Teologia Fundamental no Conjunto Teológico

Dividimos, de maneira clássica, a teologia em: Teologia positiva e Teologia especulativa. A Teologia positiva seria a teologia mais tida como ciência propriamente dita, pois servindo-se do que a Sagrada Tradição, Sagrada Escritura e o Magistério oferecem, manifesta o que deve ser crido pela fé, já a especulativa seria a reflexão, o questionamento, deste conteúdo recebido da Teologia positiva. Mesmo a teologia sendo dividida nestas duas formas e em diversas disciplinas, não é a Teologia um saber fragmentado, muito pelo contrário, toda esta divisão quer ressaltar a unidade do corpo teológico. Cada disciplina teológica contribui para a unidade da Teologia. A Teologia Fundamental: “é a disciplina que tem por objetivo o fato e mistério da palavra de Deus no mundo, o qual constitui a realidade primeira e fundamental do cristianismo” (ARENAS, 2001, p. 30). Desta forma, a Teologia fundamental é a parte da Teologia que se ocupa da revelação divina, isto é, da manifestação divina à humanidade. É na Teologia Fundamental que estudamos os mistérios de um Deus que se comunica com a humanidade, revela seu projeto de salvação e atua na história humana. Outro aspecto muito pertinente é o estudo e a reflexão do conjunto de sinais que permite ao ser humano afirmar de maneira racional a verdade de fé que a Igreja acredita e professa. 

Então a nova orientação da Teologia Fundamental começa a partir da publicação da  Dei Verbum. Não podemos deixar de lembrar, que mesmo a apologética sendo superada pela nova forma que é a Teologia Fundamental, não se deixou de levar em conta elementos importantes da apologética que serviam para ajudar a compreender a fé. Os dois pilares importantes da Teologia Fundamental serão a revelação e a credibilidade, isto tudo para mostrar ao mundo que a mensagem cristã, isto é, o Evangelho, responde às questões mais profundas da existência humana. O que é específico na fundamental é um tema que se discute amplamente na atualidade. Latourrelle, ao falar da especificidade da teologia fundamental, ou seja, do problema que somente ela considera e que não é tratado como tal pela dogmática, diz que é um único bloco e que não pode ser dividido: a-credibilidade-da-revelação-de-Deus-em-Jesus-Cristo. (ARENAS, 2001, p. 40).

O que podemos concluir disto é que a teologia fundamental luta por mostrar que a revelação é um ato crível, é possível acreditar a partir dos sinais que a revelação deu para a humanidade. O “carro chefe” da teologia fundamental está na proclamação da certeza que Deus está no meio do seu povo, que se comunica na pessoa de Jesus Cristo, isto é constatável, logo crível. É esta a lógica e o esforço reflexível da Teologia Fundamental. Logo não nos detemos somente no que nós cremos, como era o caso da apologética, mas também e sobretudo em por que cremos. 

Acompanhemos assim de modo geral os principais aspectos da Nova Orientação da Teologia Fundamental:

a) O estudo sobre a revelação

Quando o assunto é revelação, a Teologia Fundamental aborda o fato através da intervenção livre, amorosa da manifestação divina dada em Jesus Cristo. Esta manifestação em Jesus é o dado exclusivamente do cristianismo e que marca a fé dos cristãos. Desde a comunicação de Deus no Antigo Testamento, até sua plenitude em Jesus Cristo e a condução da Igreja pelo Espírito Santo até a consumação dos tempos é que a Teologia Fundamental vai se debruçar.

b) O estudo sobre a credibilidade

Quando o assunto é credibilidade, podemos nos perguntar: O que entendemos por credibilidade em Teologia Fundamental? Pois bem, a credibilidade é a decisão de fé através de uma opção racional e sensata do próprio homem, isto é, é através da temática da credibilidade que a Teologia Fundamental reflete a viabilidade, e a necessidade da razão humana aceitar de maneira racional e lógica a revelação divina, por isso a centralidade do discurso da Teologia Fundamental não está somente no discurso da apologética que seriam os sinais históricos da revelação (milagres, profecias, mensagem, ressurreição), mas a centralidade do tema está na pessoa de Jesus Cristo, na sua ação no meio do povo e da sua manifestação para o mundo. É um fato real, constatável e crível. 

c) O estudo sobre a fé

Na concepção da Teologia Fundamental a fé será a grande resposta que o ser humano pode dar diante da revelação divina.

d) Destinatários

Outro ponto muito importante de contribuição da Teologia Fundamental é o diálogo com as demais religiões. A temática da fé, a incredulidade religiosa, a pobreza, a distinção de culturas, a opressão, e tantos temas da sociedade hodierna e a forma como as religiões têm se colocado diante destas realidades, também fazem parte do discurso da Teologia Fundamental, que será uma força motora muito grande para o possível diálogo ecumênico e inter-religioso.

 Significado da Revelação

Tendo mencionado alguns aspectos da Teologia Fundamental, podemos analisar de modo mais etimológico e teológico o significado da Revelação, pois, o estudo da Revelação é o conteúdo da Teologia Fundamental, já que a Revelação é a etapa essencial para a realização de uma Teologia. Afirmamos isto porque, se Deus não se der a conhecer, inútil seria qualquer palavra do homem em relação ao Criador. É graças a esta iniciativa amorosa e generosa de Deus, que o homem pode ter uma palavra em relação a Deus, e aí o fulcro da teologia é encontrado. Logo, estamos afirmando que, se não fosse a Revelação poderíamos nem ter uma teologia, ou se houvesse, seria apenas palavras sem sentido. É justamente porque Deus se revela, é que, podemos ter uma palavra acerca de Deus.

Agora cabe a nós delimitarmos que tipo de “Palavra” é esta. O que a “Palavra Revelada” pretende ser. Na tradição bíblica esta Palavra que queremos definir, foi denominada de “oráculo do Senhor”, ou até mesmo como “Palavra de Deus”. Como já é muito difundido nos meios acadêmicos, e nos estudos bíblicos, o termo hebraico que era utilizado para definir palavra é dabar, este termo é traduzido pelos Setenta (LXX) por logos. Com esta realidade, precisamos compreender de forma mais específica o conceito de Palavra no mundo grego e no mundo judaico. Há diferença? Vejamos!

Na concepção do logos, do mundo grego, a Palavra ganha um caráter mais cognoscitivo, isto é, ele tem uma concepção mais objetiva, quando recorremos à Palavra, estamos recebendo uma informação de modo direto. Se podemos resumir, diríamos que a Palavra seria um meio de informação. Há um emissor e um receptor, o receptor compreende objetivamente o discurso dito e aceita ou não o mesmo.

Já na concepção hebraica, temos uma mudança muito grande, pois, quando se pensa no conceito de Dabar, o mundo hebraico não vê a Palavra somente com cunho informativo, que também está presente, mas tem também um cunho interpelador. Esta Palavra, então, ganha um caráter interpelativo, e assim, exige do ouvinte uma resposta, um diálogo, uma ação. Dizemos que a Dabar ganha um caráter relacional. Assim, a Palavra gera uma resposta de fé.

É com esta concepção hebraica, que poderemos melhor compreender a dinâmica da revelação divina, pois a Dabar tem uma força dinâmica, eficaz, criadora. Segundo Mackenzie: Os hebreus, como a maior parte do antigo mundo semítico e povos de outras grandes culturas, acreditavam que a palavra falada era uma realidade especial, como entidade dinâmica. [...] A palavra falada assume mais importância ainda numa cultura onde se escreve pouco ou nada; a permanência que a escrita dá à palavra é completada pela crença na continuação da realidade da palavra falada. [...] A realidade e o poder da palavra são enraizados na personalidade que a pronuncia: a palavra libera uma energia psíquica, e quando pronunciada com poder, gera a realidade que significa. Isaac não pode revogar a bênção que conferiu a Jacó (Gn 27) (MACKENZIE, 1984, p. 682).

Podemos nos questionar: Por que falar do conceito da Palavra para estudarmos a Revelação? Aqui temos uma fundamental e intrínseca ligação entre a Palavra e a Revelação, pois, a Palavra de Deus, o encontro com a Revelação dá-se através deste contato, desta relação com a Palavra interpeladora. Logo, quando pensamos o significado da Palavra, pensamos o meio pela qual a Revelação é iniciada. Por isso, sabendo do conceito de Palavra, podemos compreender melhor o significado da Revelação.

Num conceito geral de Revelação, recorrendo à etimologia da Palavra: Revelação etimologicamente é uma palavra derivada de dois termos latinos, revelare e revelatio, que precisamente significa a remoção de um véu que oculta alguma coisa de nossas vistas. No contexto teológico, ao qual para nós é o verdadeiro sentido de ser nesta síntese, estes termos indicam a epifania Divina, isto é, a manifestação Divina, e de seus mandamentos, escondidos até então à razão humana. “Como atividade pessoal de Deus e de sua livre iniciativa, a revelação é um gesto de amor por meio do qual o Senhor vem ao encontro dos homens e entra em contato conosco para dialogar e nos chamar à obediência da fé, tendo em vista uma comunhão de vida” (ARENAS, 2001, p. 45).

Sabendo da etimologia da palavra revelação, é impossível não associarmos o termo latino ao termo grego, isto é, apocalipsis. Assim, Revelação e Apocalipse são termos sinônimos e que são ricos em significados para o desenvolvimento teológico deste artigo.

 A Revelação na Patrística, na Teologia e no Magistério

Como acontece com vários estudos que já realizamos em outras disciplinas, recorrer a uma visão histórica de um determinado assunto contribui largamente para o conhecimento e aprofundamento do assunto estudado. Sendo assim, queremos também aprofundar a temática da Revelação. Para isto, queremos perceber as peculiaridades da Revelação no período patrístico, na Teologia e no Magistério, assim teremos uma visão global e uma pertinente concepção da Revelação.

 A Revelação Segundo os Padres da Igreja

Ao lermos os escritos dos Santos Padres, vamos perceber que logo cedo a Igreja já teve consciência da centralidade de Jesus Cristo para a Revelação, sendo que já é visto como a plenitude, que termina e culmina nele todo o processo da Revelação. Vejamos como o período patrístico abordou a temática da revelação (LATOURELLE, 1985):

a) Os padres apostólicos

Tidos como ecos diretos do evangelho, isto porque são os mais próximos cronologicamente falando dos ensinamentos dos apóstolos, os ensinamentos deste período são ricos de detalhes sobre a forma de ver a Revelação na Igreja primitiva. Na Didaché se tem a recomendação para que ninguém se distancie dos mandamentos do Senhor, e que todos sem exceção sigam as regras do evangelho. Já Clemente de Roma atesta a fé recebida por intermédio dos apóstolos, esta fé constitui a centralidade da mensagem salvífica, isto é, da mensagem da Revelação. Policarpo chama para a fidelidade ao serviço a Deus e o abandono de toda falsa doutrina que impeça de viver a mensagem Revelada por Jesus Cristo. 

Inácio de Antioquia por sua vez, será rico na mensagem cristológica, e colabora largamente na concepção da revelação, pois apresenta Cristo como o conjunto da verdade e da vida, Inácio deixa claro que Cristo é o Mediador da revelação e da salvação. 

b) Os apologetas

O contexto dos padres apologetas é um contexto helênico e rico de pensar filosófico, a forma de escrever e as correntes combatidas serão fortemente cheias deste conteúdo heleno-filosófico. A centralidade da teologia deste período é a teologia do Logos, tema fortemente explorado pelo evangelho joanino. São Justino apresenta o Pai como aquele totalmente transcendente, incognoscível, invisível, porém que se torna atuante e visível no Logos. É por meio do Logos que o mundo foi criado, que o Pai deu-se a conhecer e que é operada a salvação dos homens. Justino deixa muito claro a questão religiosa do Logos como revelador e salvador. Atenágoras vai ao encontro dos ensinamentos de Justino, afirmando a invisibilidade de Deus e a incompreensibilidade do mesmo, assim, afirma que somente Deus pode ensinar algo sobre Deus e logicamente apresenta Jesus Cristo como aquele que faz esta função. Em Atenágoras encontramos também uma grande explicação sobre o que mais tarde denominaríamos de Revelação natural, pois para ele, podemos chegar a Deus através das obras criadas, e a razão humana pode conhecer o Criador a partir de suas obras. Porém, “ante a revelação, esse conhecimento é débil, incompleto e passível de erro” (LATORELLE, 1985, p. 98).

Santo Irineu tem grandes escritos sobre a Revelação, e cabe a nós em pesquisas posteriores aprofundarmos esta temática muito significativa. Podemos ressaltar como pontos pertinentes dos escritos de Santo Irineu sua defesa da unidade bíblica contra o marcionismo que nega o Antigo Testamento. Irineu fala que uno é Deus e uno também é a economia da revelação. O Deus único preside tanto a história de salvação no Antigo como no Novo Testamento. Para Irineu a primeira etapa da revelação acontece com a criação e culmina com a encarnação do Verbo em Maria. A Igreja é quem transmite o depósito da fé sem nada mudar e o Espírito Santo garante esta fidelidade ao depósito. Pois, onde está a Igreja, lá está o Espírito de Deus. Irineu fala da clara distinção da revelação ante uma doutrina humana, primeiro porque é uma obra da graça, depois porque a revelação é uma obra de salvação. Na antítese proposta, Irineu diz que “a revelação ao mesmo tempo revela e vela, descobre e encobre Deus” (LATORELLE, 1985, p. 112).

c) Os Alexandrinos

Para Clemente de Alexandria, “o Logos é o criador e ordenador do mundo. É o único autor da manifestação divina na Lei, nos profetas, na filosofia dos gregos, na encarnação” (LATORELLE, 1985, p. 115). Na teologia de Clemente, faz parte da essência do Logos revelar o Pai, sendo ele a Face e a Imagem de Deus Pai. Também Clemente vai insistir na unidade dos dois Testamentos, a Lei, os Profetas e o Evangelho constituem uma única obra de salvação de um único Deus. Deixa muito claro que é a porta e a chave para mergulharmos nos mistérios do Pai.

Segundo Orígenes, “O Verbo pode ser chamado Filho porque anuncia os segredos do Pai, sendo este a Inteligência como o Filho é chamado Palavra” (LATORELLE, 1985, p. 123). A doutrina de Cristo, segundo Orígenes, chega até nós através da pregação dos apóstolos, e pelo magistério (ensino) da Igreja. Desta forma, a regra da fé está na pregação eclesial, que seria a forma mais segura e integral de recebermos os ensinamentos vivos dos apóstolos, este ensinamento será de grande importância para o desenvolvimento da teologia da transmissão da revelação.  

Santo Atanásio por sua vez, irá escrever sobre as duas fontes do conhecimento de Deus, uma que seria direta e interior e a outra que provém do testemunho da criação. Assim, para Atanásio, tanto o homem com seu interior, por ser imagem do Criador, conhece a Deus, como por meio da contemplação da criação.

Cirilo de Alexandria ressalta a necessidade do Verbo para o conhecimento do Pai e denomina a revelação de iluminação.

d) Os Capadócios

O tema principal da teologia dos Capadócios não chega a ser a revelação propriamente dita, e sim a trindade e a cristologia, porém, para rebater a heresia de Eumônio, que pregava o pleno conhecimento da essência divina uma vez que a mesma já havia sido revelada, os capadócios: Gregório de Nanzianzo, Basílio e Gregório de Nissa vão continuar acentuando a incompreensibilidade da essência divina, que continua misteriosa para o intelecto humano, mesmo depois da revelação. São Basílio ensina que somente o Filho e o Espírito conhecem intimamente o Pai, e mesmo quando o Senhor se revela, continua mesmo assim inacessível a essência divina. São Gregório de Nissa permanece na mesma linha da inacessibilidade à essência divina, e afirma que Deus não só se deixa conhecer pela proclamação de sua existência através do universo, mas também Deus vem ao encontro do ser humano e estabelece uma comunicação pessoal com ele.

e) Os Padres Latinos

Para Tertuliano, o conhecimento de Deus acontece por dois caminhos: “afirmamos que Deus deve ser primeiramente conhecido pela natureza, em suas obras; por ensinamento, pela pregação. Deus se faz nosso Mestre, seja pela criação, seja pela revelação” (LATORELLE, 1985, p. 146). Outro ponto muito significativo na doutrina de Tertuliano é a identificação da doutrina revelada e transmitida com as Sagradas Escrituras.

São Cipriano por sua vez denomina tradição, a ação reveladora e dá ao termo tradição o sentido ativo e forte de primeira comunicação de verdade, isto é, revelação. 

Santo Agostinho volta a afirmar a impossibilidade de conhecer a essência divina na revelação, o que se conhece na revelação seriam sinais figurativos, como é o caso de Moisés e a sarça ardente. Para o bispo de Hipona a revelação não é a comunicação aos seres humanos de uma verdade abstrata, pelo contrário, a revelação insere-se na vida do ser humano, entra no tempo e torna-se história.

 Noção de Revelação na Tradição Teológica

Neste tópico queremos perceber a forma como os teólogos concebem a revelação a partir dos dados da Escritura, da Tradição e dos ensinamentos da Igreja. Iniciamos nossa reflexão a partir da Escolástica do século XIII.

a) São Boaventura

Em seus escritos Boaventura afirma que a revelação é a luz para o espírito, pois, quando Deus se revela, quando fala ao coração humano, ilumina o seu espírito, assim para o Santo, a revelação, a palavra e a iluminação são termos que convergem entre si. Assim, para São Boaventura, Deus fala ao homem de três maneiras: “por sinais que atingem seus sentidos externos, por sinais que atingem seus sentidos internos e a imaginação, e finalmente por uma palavra que inspira diretamente ao espírito” (LATORELLE, 1985, p. 170).

b) Santo Tomás de Aquino

Como princípio básico, Santo Tomás fala da revelação como uma ação soteriológica, isto é, uma operação livre e amorosa de Deus em vista da salvação. A revelação é assim, a forma misericordiosa de Deus conduzir o ser humano ao conhecimento da verdade e do verdadeiro caminho. Desta forma, a revelação ganha um enfoque muito importante nos escritos do Aquinate, a revelação é um evento histórico, o eterno entra no tempo e a revelação passa a gerar a economia de salvação da humanidade. Esta revelação não acontece de forma aleatória e por acaso, mas como uma obra muito bem pensada por Deus, acontece de forma gradativa e pedagógica, para que o ser humano possa ir percebendo a ação divina na história do homem. Assim, Tomás diz que “a revelação feita a Abraão, iniciada pela revelação do Deus único; a revelação mosaica iniciada pela revelação da essência divina; a revelação do Cristo iniciada pela revelação do mistério da Trindade” (LATORELLE, 1985, p. 179).

Santo Tomás também fala sobre a revelação como palavra. Para ele, a ação de comunicação de Deus com a humanidade é através de sua palavra, duas audições podem ser percebidas: uma que ele chama de exterior, na qual Deus fala à humanidade por intermédio dos pregadores; a outra é interior, que acontece por meio da inspiração interna. Tomás também trilha o caminho da pedagogia divina, explica que primeiro vem a revelação, depois a fé, e deixa bem claro que a fé e a revelação não existem em si mesmas, mas é um meio, para que um dia possamos contemplar Deus face a face. Por enquanto a revelação mostra uma visão imperfeita, ou melhor, parcial de Deus, seria como que uma iniciação à visão. “A Encarnação de Cristo marca a plenitude e a consumação da revelação. O Antigo Testamento, até o último profeta, orienta-se para o Cristo” (LATORELLE, 1985, p. 198).

c) Duns Scoto

Para ele, a revelação pode ser resumida nos seguintes pontos: “necessidade e economia da revelação, relacionamento da revelação com a Escritura e com a tradição, e em particular, a revelação aos profetas” (LATORELLE, 1985, p. 200). Scoto fala ainda da revelação como uma obra sobrenatural, não por causa do conhecimento humano, que é natural, mas antes pela fonte que é Deus e o modo como Ele se comunica. Outro aspecto muito relevante é a importância da Sagrada Escritura para a revelação, pois todo conhecimento sobrenatural necessário para o homem está contido na Escritura.

 Noção de Revelação e o Magistério

Ao longo da história da Igreja, muitas foram as vezes que o Magistério eclesiástico se pronunciou de modo muito eficaz a respeito da revelação, porém, o período entre os séculos XVIII e XIX foi o período que mais se começou a questionar ou colocar dúvidas na questão de uma revelação natural. Portanto, é neste período que queremos nos deter enquanto pronunciamento magisterial.

Podemos distinguir cinco importantes períodos. “1o o concílio de Trento que se opõe ao protestantismo;

  2o o do primeiro concílio Vaticano que se opõe ao racionalismo;

 3o o do decreto Lamentabili, da encíclica Pascendi e do Moto próprio Sacrorum antistitum que se opõe ao modernismo;

 4o o período contemporâneo até o segundo concílio Vaticano;

 5o o do segundo concílio Vaticano” (LATORELLE, 1985, p. 287).

O Concílio de Trento está num contexto de protestantismo, a primeira questão muito importante que o Concílio terá que combater é a ideia de Calvino que nega qualquer revelação que não esteja na Sagrada Escritura, fazendo com que a forma natural da revelação, que seriam as obras criadas, fosse descartada. Cabe em primeiro lugar ao Concílio de Trento ressaltar a validade das duas formas do conhecimento de Deus, e salvaguardar o que desde os santos padres já se tinha como princípio de revelação natural. Para isto o Concílio tridentino fala sobre a importância da Escritura, mas também da sagrada Tradição, assim tenta superar o biblicismo protestante. 

O Concílio não fala de revelação, o termo que sobressai nos escritos conciliares de Trento é Evangelho. O Evangelho coincide com o termo revelação em seu significado no decreto de 8 de abril de 1546 (LATORELLE, 1985, p. 291). Assim, o Evangelho é a mesma mensagem de salvação que fora prometida pelos profetas, inaugurada em Cristo, anunciada pelos apóstolos e transmitida e conservada  pela Igreja. O Concílio Vaticano I, por sua vez, tem o contexto do racionalismo. Muitos veem o racionalismo como consequência direta do protestantismo, se isto é verdade absoluta não podemos afirmar com toda certeza, mas sabemos que de fato há uma grande influência. 

Porém, a filosofia cartesiana, o panteísmo de Spinoza, a confusão entre teologia e filosofia junto com a coincidência da moral de Cristo com a ética natural de Kant são só alguns dos muitos outros fatores que fazem emergir o racionalismo na sociedade. E como fruto deste racionalismo, o Concílio Vaticano I diz que os frutos do racionalismo serão o panteísmo, materialismo e ateísmo. Como estamos no âmbito destes três perigos para a fé, o Concílio começa a refutá-los para manter viva a revelação divina.

“Contra o panteísmo e o deísmo, o I Conc. Vat. Afirmará solenemente o fato de uma revelação sobrenatural, sua possibilidade, sua conveniência, sua finalidade, sua discernibilidade, e seu objeto” (LATORELLE, 1985, p. 298). A constituição do Concílio Dei Filius abordará a temática da revelação, da fé e de sua relação com a razão. Nesta constituição fala-se de duas vias do conhecimento de Deus, uma denominada via ascendente, e a outra via descendente, a primeira seria de conhecimento natural, das coisas criadas até o Criador, e a segunda seria a via da revelação, do Criador sem a revelação para o ser humano, assim, em tempos de racionalismo, o Concílio atesta a capacidade racional de chegar a Deus através das coisas criadas, das obras da criação. Por outro lado, defende a revelação sobrenatural, fala da iniciativa divina de revelar-se ao mundo de forma sobrenatural, todo o gênero humano é beneficiado pela revelação, a revelação é tão universal quanto a salvação. A doutrina revelada é imutável e não pode frutificar se não for por uma assídua assimilação de seu conteúdo. 

Em três de julho de 1907 o Santo Ofício publica o decreto Lamentabili, este decreto tem como principal objetivo refutar todo pensamento modernista contrário à revelação sobrenatural e impedir que um racionalismo moderno entre na concepção bíblica e dogmática. O decreto mantém vigorosamente a posição de defesa da revelação de modo objetivo, isto é, uma doutrina recebida de Deus tendo como principal depósito as Sagradas Escrituras, e a Igreja tem a missão de salvaguardar este depósito. É neste documento que a Igreja diz: ”A revelação, que constitui o objeto da fé católica ... ficou terminada com os apóstolos” (LATORELLE, 1985, p. 335).

Dois meses depois do decreto, mais precisamente oito de setembro de 1907, era publicada a encíclica Pascendi, que continua a linha de pensamento do decreto anterior, ganhando assim um peso pontifício contrário ao pensamento modernista racionalista, que queria reduzir a religião no limite da razão.

Entendemos por período contemporâneo o tempo entre o Vaticano I até os dias atuais, porém, podemos e devemos dividir este período em antes e depois do Concílio Vaticano II.

O período anterior ao Concílio, no que diz respeito à revelação será marcado pelo pontificado de Pio XI, Pio XII e Paulo VI. Pio XI em sua encíclica de 6 de janeiro de 1928 terá como foco principal o combate ao pancristianismo. Por que este assunto é importante para a revelação? Porque a Igreja como é o instrumento que Cristo fundou para manter no caminho seguro toda a humanidade, quando a visão eclesiológica é rompida, temos sérios prejuízos também para a revelação. Pois como a Igreja é a guardiã da sã doutrina, da revelação, qualquer prejuízo ao que de fato é a Igreja, a mensagem revelada também corre perigo. Por isto, a encíclica afirma veemente que a única verdade revelada está na única Igreja de Cristo. É com esta encíclica que a função do magistério e da Tradição em relação à revelação será cada vez mais definida e delimitada.

Pio XII com a sua encíclica Humani Generis mesmo não tratando de forma direta sobre a revelação, elenca pontos essenciais na teologia da revelação como a questão do desenvolvimento teológico, o motivo da credibilidade, que anteriormente já falamos, a função Os pancristãos julgam que todas as igrejas têm o mesmo valor e  pretenderiam estabelecer entre todas uma espécie de ‘federação universal’ (LATOURELLE, 1984, p.B349) do magistério ante a verdade revelada. Também Pio XII volta a afirmar a missão da Igreja de cuidar do depósito da fé (verdades reveladas), sua bula dogmática Munificentissimus Deus ressalta de forma muito mais categórica esta função da Igreja e de seu Magistério na transmissão da revelação.

Paulo VI, com sua encíclica Ecclesiam suam de 6 de agosto de 1964, fala da revelação de forma mais direta. Esta encíclica é um dos textos mais interessante para o nosso assunto. Duas expressões são fundamentais para a teologia da revelação e também para a ação eclesial: fidelidade e aggiornamento. O que isto significa? Paulo VI fala das duas dimensões da Igreja, a fidelidade que remete ao apego seguro e fiel à verdade revelada; o aggiornamento seria a adequação desta verdade revelada, mas no contexto da atualidade, seria como que a atualização da verdade revelada de maneira fiel. Esta temática já é umainicial tentativa de diálogo com o mundo moderno, pois a Igreja deve estar atenta aos sinais dos tempos de cada época. Na encíclica, Paulo VI não só apresenta a revelação como uma palavra, também e sobre tudo como diálogo (colloquium) (LATOURELLE, 1985, p. 359).

Já o período do Concílio Vaticano II será marcado fortemente na teologia da revelação pela constituição dogmática Dei Verbum. Ela será o “carro chefe” do conteúdo de teologia da revelação após o Concílio Vaticano II. Não aprofundaremos mais o texto da constituição aqui, pois, teremos oportunidade de fazermos este contato com o texto em uma das atividades propostas mais adiante.


O ACONTECIMENTO DA REVELAÇÃO

Quando falamos de revelação, não podemos jamais esquecer que a revelação é uma ação contínua, que vai acontecendo gradativamente na vida dos homens seguindo uma “pedagogia” divina. Sendo assim, a revelação inicia-se com a criação do homem, e desde então, Deus não parou mais de revelar-se para a humanidade.

O Antigo Testamento é o palco inicial deste amor tão grandioso de Deus por nós, que culminará em Jesus Cristo, que por sua vez, é a plenitude da revelação. Se podemos conhecer de modo muito mais profundo a Deus é porque Nosso Senhor Jesus Cristo nos revelou. É esta trajetória, ou melhor, esta história do Deus da História, que queremos iniciar.

 A Revelação de Deus no Antigo Testamento

Quando olhamos para o Antigo Testamento e vemos um Deus que cria o ser humano a sua imagem e semelhança, depois tenta salvar seu povo por intermédio de Noé, convoca Abraão, conduz o povo com Moisés, fala pelos profetas, vemos um Deus que se importa com seu povo. Estas são só algumas das incontáveis manifestações de amor de Deus para com os homens. Levando em conta toda esta economia de salvação podemos elencar algumas características desta revelação (ARENAS, 2002, p. 97).

Primeiro, a revelação é essencialmente relação interpessoal, isto é, é uma relação entre pessoas, mais especificamente falando, é a relação das pessoas divinas (Trindade) com a humanidade. Desta forma podemos dizer que Deus é o objeto e o sujeito da revelação, pois, é Deus que revela e se revela.

Uma segunda característica muito marcante da revelação no Antigo Testamento é a iniciativa divina da revelação. A ação de Deus deixar-se conhecer é uma ação livre de sua vontade, é uma iniciativa pessoal divina. 

Terceira característica é a primazia da palavra. Como assim? Como já sabemos, a palavra para o mundo judaico tem extrema importância, é ela que torna todo o texto veterotestamentário uma unidade. Através dela é que Deus interpela o ser humano, e por ela também que Deus respeita a liberdade humana, pois, diante da palavra o homem é livre de responder ao apelo do Senhor ou não. 

Outro aspecto muito interessante da revelação no Antigo Testamento é que a palavra exige do ser humano um ato de fé e a realização dos desígnios divinos. E por fim, podemos dizer que a revelação no Antigo Testamento está perfeitamente enquadrada na esperança que Israel tem em uma salvação vindoura, isto é, o que Israel já passou ou está passando não tem nem comparação com que está por vir, a promessa que o Senhor prometera irá se cumprir. “A ‘economia’ do Antigo Testamento destinava-se, sobretudo a preparar, a anunciar profeticamente e a significar com várias figuras o advento do Reino messiânico” (DV 15).

Nos próximos tópicos queremos ressaltar alguns pontos fundamentais para a revelação no Antigo Testamento, pois a revelação de um Deus pessoal, único, e sua revelação como parte da história, são alguns dos principais temas da revelação no Antigo Testamento.

O Antigo Testamento: a revelação de um Deus pessoal

Ele é um Deus pessoal e próximo dos homens; na presença de um Deus atraente e misterioso e ao mesmo tempo pessoal, o homem descobre sua pequenez. Diante da sarça ardente, Moisés tira as sandálias e cobre o rosto em face da Santidade Divina (cf. Ex 3,5-7).

Após esta manifestação na sarça ardente, Deus revela-se mais pessoal e próximo de seu povo quando diz: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa dos seus opressores, pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel” (Ex 3,7-8).

 O Deus Único

A proclamação de fé em um Deus único é muito forte no povo de Israel. Não é por menos que ainda hoje para o judeu o Shemá é de grande importância. “Ouve, ó Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Dt 6,4).

Esta passagem marcará fortemente o desejo de Israel em professar a fé em um Deus único. “Esta expressão, contudo, parece ser afirmação de monoteísmo. Ela se tornará o início da oração chamada Shemá (‘ouve’) que continua a ser uma das mais caras à religião judaica.

Ao longo da história de Israel esta fé num Deus único não deixou de se destacar” (BIBLIA DE JERUSALÉM, p. 109).

Esta força da fé em um Deus único é tão marcante que Jesus retoma em Mc 12,29, este mesmo ensinamento do livro do Deuteronômio que acabamos de ler. 

 A Historicidade da Revelação Divina no Antigo Testamento

Todo o processo da Revelação de Deus no Antigo Testamento acontece de forma gradual, este dar-Se a conhecer é realizado na história, isto já afirmamos também no Tratado de Revelação, mas é muito significativo que seja reafirmado, pois, juntamente com a profissão de fé em um Deus único no Antigo Testamento, testemunha também “que este Deus saiu de si, que estabeleceu uma aliança com os homens e, que toma partido pelos oprimidos e quer sua libertação” (BOFF, 1988 p. 58). Deus inicia sua revelação aos patriarcas, passa por Abraão, Isaac e Jacó. Manifesta-se a Moisés que recebe de Deus a missão de libertar o povo escolhido que se encontrava sobre a escravidão do Egito. Eu sou o Deus de teus pais. “Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou até vós... este é o meu nome para sempre, e esta será a minha lembrança de geração em geração” (Ex 3,13-15).

A Paternidade de Deus no Antigo Testamento

A questão da paternidade de Deus no Antigo Testamento não é vista com a mesma visão que temos no Novo Testamento. “Deve-se constatar antes de tudo que o Antigo Testamento utiliza relativamente pouco a ideia de paternidade para referir-se a Deus” (LADARIA, p. 58), mas as vezes que a utiliza está fortemente ligada a Deus Pai, como criador das coisas, “Não é Ele teu pai, teu criador?” (Dt 32,6). Ou como o que faz a Aliança e chama Israel de filho primogênito (cf. Ex 4,22).

Esta paternidade veterotestamentária fica bem expressa no Catecismo que diz: “Em Israel, Deus é chamado de Pai enquanto criador do mundo. Deus é Pai, mais ainda, em razão da Aliança e do dom da Lei a Israel, seu ‘filho primogênito’. É também chamado de Pai do rei de Israel (cf. CAT, 238). Assim, no segundo livro de Samuel vemos a afirmação: “Eu serei para ele pai e ele será para mim filho” (2 Sm 7,14). Desta forma, podemos concluir que a paternidade de Deus está baseada no fato de que Ele escolheu de forma livre o seu povo e com este povo estabeleceu uma Aliança.

 Cristo, Revelador e Revelação do Pai

“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Com esta certeza do prólogo de São João, podemos perceber a realidade profunda de um Deus que faz morada no meio do seu povo. Com este evento soteriológico, Cristo é com toda propriedade a plenitude da Revelação. Agora, Deus não manda patriarcas, profetas, reis, agora é o próprio Filho, isto é, o próprio Deus, que Se encarna e manifesta para a humanidade. Não há nada maior para se revelar do que o próprio Deus.

Por isso, o Magistério da Igreja nos afirma que “Cristo, o Filho de Deus feito homem, é a Palavra única, perfeita e insuperável do Pai. Nele o Pai disse tudo, e não haverá outra palavra senão esta” (CAT, 65). Isto não significa que, com a encarnação de Cristo, toda a Revelação já foi conhecida, assimilada pela humanidade, pois, diante de tão grande mistério, a razão humana não consegue compreender toda a Revelação de Cristo de uma única vez, por isso, ao longo dos séculos vamos despertando nossa consciência para pontos até então não perceptíveis da plenitude da Revelação e isto não quer dizer que Cristo não os tenha revelado.

Sendo esta a grande importância de Cristo para a revelação e a humanidade, é inaceitável dentro da fé católica que haja mais alguma revelação que não seja a já revelada em Cristo Jesus. Quando vemos em algumas religiões ou comunidades eclesiais separadas doutrinas que complementam os ensinos de Jesus, pois é dado a um fundador ou a uma pessoa mensagens que ainda não foram dadas por Jesus, estamos diante da ineficiência da revelação de Cristo, isto é, crer em mais mensagens reveladas que complementam a de Cristo, consecutivamente significa negar Cristo como a plenitude da revelação.

Resposta do Homem à Revelação

Como podemos perceber até aqui, a Revelação é uma iniciativa livre e exclusiva de Deus. Quando Ele fala ao homem, o homem deve escutar. Não é por acaso que a tradição judaica enfatiza tanto o Shemá! (escuta). Como afirma Latourelle: Não se recebe a revelação bíblica numa contemplação da divindade, como nos mistérios gregos e na gnose oriental, mas escutando a palavra. Nesta terra ninguém pode ver a Deus (Ex 33,20). Deus dá testemunho de si mesmo, pela palavra comunica-se ao homem, mas foge à visão. Em sua realidade profunda é sempre o Deus insondável, o Totalmente Outro: esquiva-se o seu mistério. Samuel responde a Deus que o interpela: “Fala, Senhor, que o teu servo escuta” (1 Sm 3,10). Escutar indica a primeira atitude do homem ante a revelação: não de modo material e passivo, mas em disponibilidade totalmente ativa. (LATOURELLE, 1985, p. 36) .

A chave da resposta do homem ante a revelação é a escuta. Esta palavra comunicada por Deus e ouvida pelo ser humano deve ser assimilada, entendida e refletida. Esta assimilação da palavra deve gerar no ser humano uma submissão, uma entrega livre e consciente de todo o seu ser. O paradigma para nós nesta ação de escuta e resposta positiva à palavra é Abraão. Veja em Gênesis: “Abraão creu no Senhor, e lhe foi tido em conta de justiça” (Gn 15,6). Ora, esta passagem confirma nitidamente o que acabamos de afirmar. A fé de Abraão é uma fé que demonstra extrema confiança numa promessa humanamente irrealizável. É nesta dimensão do irrealizável que Abraão demostra que escutou, assimilou e realizou a obra de Deus na sua vida e na vida da comunidade que ele conduziu. A escuta, assimilação e realização da palavra de Deus é antes a tríade que corresponde à resposta humana diante da revelação divina.

O povo de Deus, isto é, Israel, conheceu o Senhor através da revelação, este conhecimento gerou no coração dos israelitas uma comunhão profunda de pensamento e de vontade com o Senhor. Esta revelação que o Senhor realiza em Israel não é um privilégio somente, antes, muito mais que isto, é uma missão: quem ouve o Senhor deve seguir os seus mandamentos, deve cumprir a Aliança.

Quando Israel desvia-se do caminho, surgem os profetas para lembrar o sentido da revelação divina e a exigência de uma vida transformada e não da realização de legalismos puramente ritualistas. Acompanhe o que dizem os profetas. “Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom, e o que o Senhor exige de ti: nada mais do que praticar a justiça, amar a bondade e te sujeitares a caminhar com teu Deus!” (Mq 6,8). Já Oseias em 6,6 diz: “porque é amor que eu quero e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos”. Ou a resposta do homem ante a revelação é uma resposta de mudança de vida e de conversão radical, ou a experiência da revelação não passa de uma ilusão sem sentido. A revelação só faz sentido para a vida do homem, quando a mesma é aceita e assimilada na vida, e não só no intelecto. O conhecimento de Deus nunca foi e nunca será uma mera aceitação de verdades, mais do que isto, é um relacionar-se com Deus, a tal ponto de deixar-se modelar e conduzir por sua vontade.

Sendo isto verdade, então a revelação e fé são correlativas, isto é, a fé é conditio sine qua non da revelação. Numa perspectiva veterotestamentária, podemos dizer que a revelação seria na sua essência lei e promessa; a fé, por sua vez, é principalmente obediência e confiança. Mais uma vez encontramos estas afirmações na vida do pai da fé, Abraão. Lendo Gn 12,1-3; 15,5-6 veremos o pedido de Deus a Abraão para que saia de sua terra, prometendo a ele uma numerosa posteridade.

Seria uma loucura aos olhos humanos aceitar esta proposta, há quem diga que seria irracional, mas o ser humano que faz uma experiência do Deus que se revela, não deixa de acreditar e de se lançar em seus projetos, mesmo que para isto precise realizar coisas aparentemente impossíveis. A resposta humana à revelação exige não só crer no que é difícil de se realizar, mas também exige um desapego de vontades e sair do comodismo, não tem como viver a revelação divina, estagnado no mesmo estilo de vida, num “mundinho” em que vivo tranquilo. Nenhum contato com o Deus vivo deixou as pessoas paradas, ou na mesma situação que estavam antes, há sempre uma mudança radical. Desde então, para um hebreu, acreditar é obedecer e confiar; é reconhecer Javé como o único Deus Salvador de Israel, e que lhe deu a lei e prometeu a salvação; é aceitar a sua vontade e fiar-se em suas promessas. A fé em Maria, a flor do Antigo Testamento, é pura obediência e pura confiança: obediência da serva do Senhor (Lc 1,38), confiança que exalta o Deus fiel a suas promessas (LATOURELLE, 1985, p. 37).

Não podemos esquecer de forma alguma, então, que a confiança faz parte integral da resposta do homem à revelação, esta confiança gera a fé. É impossível o homem responder a revelação divina sem a fé, parece lógico e óbvio, porém, faz-se mister deixar esta afirmação ressaltada, para que não caiamos em um mero intelectualismo racionalista e percamos o foco principal da resposta do homem a Deus. Neste sentido, também o Catecismo da Igreja Católica pode nos ajudar: 

Por sua Revelação, ‘o Deus invisível, levado por seu grande amor, fala aos homens como a amigos, e com eles se entretém para os convidar à comunhão consigo e nela os receber’. A resposta adequada a este convite é a fé. Pela fé, o homem submete completamente sua inteligência e sua vontade a Deus. Com todo o seu ser, o homem dá seu assentimento a Deus revelador. A Sagrada Escritura denomina “obediência da fé” esta resposta do homem ao Deus que revela (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 142-143).


Sugestão de leitura


TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO

A transmissão da revelação exige fidelidade e integridade, precisa ser transmitida por meios eficazes e que leve em consideração a universalidade da Revelação, universalidade esta, que acontece de forma sincrônica e diacrônica (BENTO XVI, p. 31), pois a Revelação acontece num determinado tempo da história e continua a pertencer a toda a humanidade pelos séculos. Por isso a Dei Verbum nos diz que: “Deus dispôs amorosamente que permanecesse íntegro e fosse transmitido a todas as gerações tudo quanto tinha revelado para a salvação de todos os povos” (DV, 7).

Percebe-se que a revelação vem a ser a manifestação da verdade. Da verdade de Deus que revela quem Ele é para o ser humano e quem é o ser humano para Ele. A revelação, então, nos chama a reconhecer nossa própria verdade e a reconhecer Deus como fundamento de nossa existência. A revelação nos interpela a reconhecer nossa inconsistência, a renunciar à nossa vã ilusão de “autonomia” e a nos converter no pensamento de que somos criaturas fundamentadas em Deus e não por si próprios.

Diante do exposto, na sequência abaixo, veremos como a Revelação nos é transmitida pela Tradição da Igreja, Tradição que torna eficaz a certeza da manifestação de Deus por meio da história humana. Um Deus que se fez homem no meio dos homens e que reconhecemos em Jesus humanamente histórico. E também como o Magistério e a Teologia tratam esta manifestação e trazem suas definições a partir da fé propriamente eclesial.

A Tradição na Igreja

O termo tradição etimologicamente provém do latim traditio (de tradere), que significa “entrega”. O termo grego correspondente é “parádosis”. Na relação objeto e sujeito, o conceito de tradição tem um significado mais rico que o etimológico. Tradição indica, seja o objeto constitutivo da tradição – aquilo que se transmite, seja o fato mesmo da transmissão, isto é, o processo de transmitir algo. Este processo está constituído por pessoas agentes da tradição, que podem ser considerados o sujeito da tradição. Portanto, entende-se por tradição passar adiante o que se recebe (Revelação). Ou seja, a tradição é objeto daquilo que se recebe, mas também é sujeito dinâmico na transmissão. A tradição é, pois, a transmissão da essência verdadeira e perene de um grupo humano. O objeto da tradição, na perspectiva teológica, é a revelação, entendida a revelação como o que Deus quis dizer ao ser humano, para que este possa ser salvo e cuja constância se encontra explícita ou implicitamente na Escritura.

O que temos por Revelação é o que ouvimos falar de outros que também ouviram. A Tradição, então, seria esta transmissão da verdade revelada por Jesus através da comunicação oral da experiência de alguns com o próprio Jesus. Falo dos seus seguidores, os Apóstolos e discípulos que escutaram Jesus, e não só, mas também conviveram com o Próprio. Estes foram os que por meio de interpretações e reinterpretações, práticas testemunhais a partir da fé (confiança) individual e comunitária, constituíram a Escritura propriamente. É através da Palavra escrita (a Sagrada Escritura) que a revelação chega até nós e vemos que, por meio da Escritura, a fé não se separa da comunhão com a Igreja, ou seja, com a comunidade cristã.

A Tradição é assim, o ensinamento “que vem dos apóstolos e transmite o que estes receberam do ensinamento e do exemplo de Jesus e o que receberam por meio do Espírito Santo” (CAT 83). A Tradição é a garantia da Igreja de caminhar seguramente nos passos do Divino Mestre. Pela Tradição, a Igreja consegue peregrinar pelos séculos, sem medo de perder-se em ideologias, culturas e modismos. A Tradição é, como nos diz o Papa Bento XVI, a “comunhão no tempo, e esta comunhão que chamamos ‘Igreja’, não se estende apenas a todos os crentes de um período histórico específico, mas abraça também todas as épocas e todas as gerações” (BENTO XVI, p. 32). Assim, podemos dizer que “a Tradição é a fé vivida pela Igreja, que jamais se esgota na formulação explícita, pois é o próprio Cristo que age nessa fé” (ARENAS, 2001, p. 165).

Diante disto, a tradição recebe e atualiza aquilo que se recebe na sua transmissão. O que não se transmite, perde a identidade, a raiz. Vejamos abaixo a constituição desta transmissão a partir da Sagrada Escritura.

A Revelação pela Escritura

A Escritura traz em si a marca da experiência vivida de um povo, o povo de Israel. Conta-nos a história de vida, um fenômeno humano, fazendo nascer da necessidade e fixando termos de uma linguagem oral, que passa e que reúne elementos orais dispersos. Para se fazer chegar até nós, foram diversas recopilações escritas consideradas sagradas ou “reveladas” e transmite-nos por meio de Palavra como história: a história da Salvação.

Esta história fora realizada por Deus no seio do povo de Israel, e nada mais é que a própria história profana de um povo (humanamente) vista à luz da fé (espiritualmente) na presença salvadora de Javé. Em outras palavras, a interpretação que Israel faz de sua história profana à luz da fé, constitui o fundamental da Escritura e o que converte a história profana de Israel numa história de salvação. A Bíblia é uma história lida e interpretada por um povo de fé, em que Deus faz sua revelação por meio da interpretação que o povo faz de sua própria história (LIBÂNIO, 1990, p. 23).

O que Deus quer revelar não é tanto uns fatos objetivos como a interpretação desses fatos. Por isso, Deus suscita acontecimentos e Ele está aí presente, mas, sobretudo suscita uma fé que os lê. A história bíblica é, pois, esta confissão que Israel faz da salvação que vem de Deus (Dt 26,5-9; Js 24,2ss), através de sua interpretação por meio de fatos concretos. Em resumo, a revelação, portanto, é um ato processual de tradição oral, pelo qual o povo de Israel do Antigo Testamento põe por escrito, sob a inspiração do Espírito Santo, uma interpretação de sua história profana a partir da fé. O mesmo processo se deu na formação do Novo Testamento.

Assim a Escritura está intimamente vinculada à tradição oral do povo. Ela é o ponto de chegada de toda uma tradição oral, ao mesmo tempo em que é o ponto de partida de uma nova tradição que reinterpreta a Escritura anterior. Vemos aqui a relação entre Escritura-Tradição que é dinâmica, a compreensão é que pode variar segundo a situação do povo.

Tanto no AT como no NT vemos um mesmo processo: há primeiro um processo de tradição oral e que depois se fixa em escritos, os quais se reinterpretam ou se matizam, de acordo com determinadas circunstâncias. Veremos na sequência as duas dimensões de tradição oral que se distinguem entre si, desembocando na Escritura do N.T: a tradição evangélica e a tradição Kerigmática. 

A tradição evangélica tem como ponto de partida o que Jesus disse e fez, ou seja, as memórias sobre os fatos e as palavras de Jesus serão finalmente as que constituirão os evangelhos.

A tradição kerigmática, por sua vez, tem como ponto de partida a pregação apostólica, ou seja, o kerigma. Será igualmente fixada por escrito através de diversas fórmulas de fé e de desdobramentos pastorais feitos, às vezes pelos próprios apóstolos (epístolas) ou por seus discípulos. Ambas as tradições, não são independentes, como se não houvesse relação entre o que Jesus disse e fez por um lado, e o que os apóstolos pregaram dele, por outro. As comunidades é que interpretaram a mensagem (testemunho) por vias de inspiração divina. A Escritura é como um código que continua nos revelando Deus no meio do povo. A mensagem traduzida na história pela história é que já vem inculturada (LIBÂNIO, p. 35).

Entendemos, hoje ainda, que o objeto da tradição evangélica, no catolicismo, é, pois, o ensinamento dos apóstolos, consignado no Novo Testamento e o ensinamento da Igreja, consignado na vida da comunidade eclesial ao longo dos séculos, sob a direção dos pastores autênticos (o papa e os bispos). E que o sujeito da tradição está constituído pelos próprios apóstolos e pela própria comunidade eclesial, que vive e transmite a fé dos apóstolos. Os apóstolos são sujeitos primordiais da tradição da fé; os papas (sucessores de Pedro) e os bispos (sucessores dos apóstolos) são sujeitos privilegiados, mas não exclusivos da tradição eclesial. O sujeito da tradição eclesial é toda a Igreja, ou seja, o papa, os bispos e todo o povo fiel.

Na sequência veremos esta fidelidade firmada na transmissão do Magistério e da teologia que mantém viva a Revelação, uma tradição atualizada como tradição dada, passada adiante. 

Função do Magistério e da Teologia na Transmissão da Revelação

O conceito teológico de “magistério” é próximo ao de “padres”, que são os guias da fé, tanto que nos primeiros séculos se confundia com eles. Depois da época patrística, o magistério foi se constituindo mais claramente como instância teológica específica da tradição eclesial. A pergunta que pede um esclarecimento: qual a necessidade de um magistério eclesial? Vejamos, pois a este respeito.

Entendemos que a Palavra de Deus não está comunicada à margem dos condicionamentos culturais e que implica a necessidade de uma interpretação ou explicitação de seu sentido. Ora, quem assegura que a interpretação de alguém é plausível, ou seja, que provém da “voz do Espírito”, indicando o sentido concreto da fé e não simplesmente interpretação condicionada por seu próprio contexto ou suas ideias?

É preciso evitar que caiamos num fixismo objetivo (fundamentalismo) e num relativismo subjetivo (liberalismo) como modo interpretativo. Ora, o Magistério, então, representa na Igreja Católica uma instância assistida pelo Espírito Santo, de modo que, diante das múltiplas hermenêuticas possíveis da Palavra, os pastores tenham a última responsabilidade na condução do rebanho, com vistas a assegurar a unidade da fé. Sustentam que a Palavra revelada necessita da mediação do Magistério que evite tanto o “fundamentalismo” como o “relativismo”; uma instância objetiva suficiente amplamente para não cair nestes extremos. Neste ínterim, o Magistério na Igreja vem constituir um “lugar teológico”, não arbitrário ou de simples poder, mas precisamente garante da “racionalidade” na interpretação de uma Palavra, salvaguardar sua força interpeladora e salvífica, tanto com respeito aos fundamentalistas ingênuos, como aos relativistas subjetivos. 

Não há dúvidas de que o pastor, ainda com a assistência do Espírito Santo, pode cair em tentações de arbitrariedades, que podem ser evitadas auscultando sua comunidade e buscando uma assessoria competente. Já a teologia, na pessoa do teólogo, não possui na Igreja o papel de condução. Esta tarefa corresponde, em exclusivo, aos pastores, que têm para isso a garantia hierarquizada do Espírito, ainda que esta esteja vinculada à indefectibilidade de toda a Igreja. Tanto que, em caso de conflito insuperável entre a conclusão acadêmica do teólogo e a orientação magistral do pastor, a fé descobre na obediência ao pastor a verdade salvífica. Com isto percebe-se que a missão do teólogo não é tanto conservar e explicitar o “depósito” revelado (também), que é missão específica do Magistério, quanto refletir sobre este “depósito”, servindo-se de instrumentos científicos que pareçam mais adequados para explicitar a “inteligência da fé” à comunidade humana de cada época. Em outras palavras, a vocação do teólogo é refletir a Palavra de Deus e suas explicitações feitas ao longo da tradição pelos Padres, o Magistério e os teólogos anteriores, em constante diálogo com a cultura de seu tempo.

O teólogo procura, contudo, compreender de modo profundo e responder honesta e adequadamente, à luz do “depósito” da fé e de novos aspectos explicitados pela Tradição, os desafios da cultura dirigidos à Igreja. Implica, ainda, em levar a sério os interrogantes culturais e confrontá-los com a Tradição, para descobrir que significado implica para hoje, ou seja, qual é a hermenêutica que a Tradição atual deve fazer da Palavra para que esta responda aos interrogantes das pessoas de hoje e possa ser acolhida como Palavra salvífica. 

Não podemos deixar de fazer menção que, o povo fiel, que vive a fé professada pela Igreja, também é colaborador direto da Tradição. Por povo entendemos aqueles que não têm nenhum carisma magisterial e nem de teólogo dentro da Igreja. Mas têm suas maneiras de compreenderem e de viverem a fé em um ponto de referência fundamental para captar o sentido da mensagem revelada. Pelo batismo e os demais sacramentos este povo fiel participa também do “sacerdócio real” próprio do povo escolhido e o mesmo Espírito que inspirou a Escritura está presente em seu meio. Diante disto, o povo fiel tem sido em muitos momentos da Igreja, importante “lugar teológico” na elaboração dogmática e deve ser tomado seriamente em conta, tanto por parte do Magistério como pelos teólogos. É preciso entender o que quer se dizer por dogmática e o que o mesmo traz de enriquecedor nas vias da revelação. Neste sentido, abre-se um subtítulo que nos deixa claro a esse respeito.

O Dogma

A conceituação propriamente se constituiu na Igreja primitiva onde o processo mesmo de formação das Escrituras, nem sempre havia clareza sobre o que Jesus havia dito e feito. Um exemplo é a questão da circuncisão como condição ou não para ser cristão (At 15). Temos aí o desenlace: os apóstolos se reuniram no que se denominou o “primeiro concílio de Jerusalém” e após aberta discussão, por consenso, tomaram uma decisão com a fórmula: “É o parecer do Espírito Santo e nosso“ (At 15, 28). “Parecer” é o termo grego édoksen, de onde deriva a palavra dogma.

A palavra dogma, entretanto, não foi usada nos primeiros séculos da Igreja para indicar conclusões doutrinais. Para isso se usava o termo pistis (= fé). A palavra dogma usava-se para indicar decretos disciplinares (cf. DS, 127). Foi só a partir de Trento, não diretamente no próprio Concílio, que se começou a utilizar de modo claro a palavra “dogma” em seu significado atual, com caráter confessional e com caráter muito fixista e estreito. 

De todos os modos, é mister apresentar o sentido real da palavra dogma: uma proclamação solene por parte do Magistério da Igreja, guiado pelo Espírito Santo, para assegurar a unidade de fé desta comunidade. O dogma sempre tem que estar em função da verdade salvadora (veritas salutaris) do Evangelho. Esta referência faz com que a fidelidade ao dogma não se converta em dogmatismo. E o fixismo como maneira estreita (estrita) na compreensão dos dogmas é que deu origem, desde o século passado, ao conceito de “evolução dogmática”. Vejamos abaixo o que se entende por isso.

Dogma e Revelação

Já vimos que a revelação foi concluída e fixada na época apostólica. Depois disso, já não há nova revelação. A elaboração dogmática, a partir da Escritura revelada não é, pois, um acréscimo à revelação. O dogma não diz nada de novo em relação à revelação escrita. O que o dogma faz é simplesmente mostrar a única revelação, dando-lhe uma melhor compreensão à palavra revelada.

Entendendo melhor, vemos que o papel do dogma é explicitar a partir da Escrituras a A diferença, portanto, entre revelação e dogma está na diferença entre inspiração e assistência do Espírito Santo. A Escritura é inspirada, já o processo de elaboração dogmática se dá sob a assistência do espírito, inclusive a infalibilidade papal. 

Sujeito e Objeto da Formulação Dogmática

O sujeito da formulação dogmática é o mesmo da tradição: a própria Igreja, assistida pelo Espírito, conformada por todos os fiéis. O objeto é a revelação ou o próprio Deus em sua realidade transcendente. Por que evolução nas formulações dogmáticas? Porque o conhecimento humano tem sua própria forma de conhecer. Como dizia Tomás de Aquino: nossa fé em Deus necessariamente toma a forma limitada própria de nosso conhecimento, dado que “as coisas conhecidas estão no sujeito que conhece, segundo seu próprio modo de conhecer - cognita sunt in cognoscente secundum modum cognoscentis.” (SANTO TOMÁS, disponível in: http://permanencia.org.br/drupal/node/242) Por isso, as formulações dogmáticas progridem na medida em que o discurso humano vai ampliando seus recursos e instrumentais de conhecimento. 

Ora, os enunciados ficam sempre curtos com relação à realidade que cremos. Deus é sempre muito mais do que podemos dizer dele. Nossa fé não termina nos enunciados, mas na realidade inefável de Deus. Isso faz com que o significado do dogma não seja estático, mas dinâmico. Nunca teremos o significado último e adequado da verdade revelada. Dando sequência veremos a revelação firmada e continuada pela dimensão da fé na Igreja hodierna.

As Definições de Fé na Igreja

Sabe-se que a dimensão da fé é uma resposta de cada indivíduo pelo que se experiência no cotidiano. E nisto, sabemos que a Revelação é fruto de uma experiência bem vivida por Jesus. Ele nos mostrou o valor dessa dimensão propriamente. Ou seja: “o dilema entre crer a partir da acolhida da palavra e crer de uma experiência é um dilema falacioso” (SCHILLEBEECKX, apud LIBÂNIO, 2000, p. 41).

Para entendermos melhor, faz-se necessário explicitar um pouco sobre a palavra experiência. Como o próprio termo já bem se mostra, a experiência nada mais é que uma forma de conhecimento e este percorreu longo périplo teórico. Por detrás da concepção de experiência estão em questão relações fundamentais, como pensamento e mundo, sujeito e objeto. Isto é, a experiência é vista como o que o ser humano consegue refletir a partir do mundo em que vive, e como ele se relaciona com as coisas ao seu redor, aí a dimensão do sujeito e do objeto. A filosofia pode oferecer ao termo, elementos para captar mais profundamente o que é a experiência humana e como ela se relaciona com a revelação. Hoje se fala demais de experiência. Este termo tem histórias e recebeu significações diferentes em momentos diversos. Certos elementos podem ajudar a torná-lo inteligível. Uma primeira aproximativa de Rombach a este respeito pode oferecer coordenadas iniciais. 

A experiência é uma forma de conhecimento que se refere a fatos e conteúdos dados e que os representa como pertencentes a um conjunto, a partir do qual aparecem (objetivamente). Baseia-se numa percepção sensível (conhecimento imediato), mas não se limita a ela: tira conclusões, deduz leis, remonta-se a causas e interpreta dados que previamente foram objeto de outras interpretações (LIBÂNIO, 1992, p. 199).

A experiência exprime, no seu sentido mais geral, um contato direto com uma realidade, que não é simples fenômeno transitório, mas alarga e enriquece o modo de pensar, de ver a realidade. É a consciência imediata da realidade, isto é, de tudo o que existe: coisas, pessoas, acontecimentos, um sentimento, um querer, uma ação, um pensamento. Caracteriza-se, portanto, por ser uma apreensão imediata. Nunca uma pessoa pode fazer  experiência em lugar de outra. Nem a experiência pode ser resultado de pesquisas, mas supõe contato direto com algo ou com alguém.

Cada experiência amplia o horizonte do conhecimento da realidade, modifica-se, aperfeiçoa-a (LIBÂNIO, 1992, p. 199). E ainda implica a presença de um objeto, de uma realidade diante do sujeito, seu espírito. Não nasce de um exercício da memória, nem da imaginação criativa, nem de operações internas de suas faculdades. Mencionam-se nos meios acadêmicos de filosofia que “é sobre a experiência que nosso conhecimento se funda. É dela que ele deriva definitivamente”. Ou seja, experiência não é autoprojeção, nem pura criação da subjetividade, nem ilusão subjetivista. É, sim, defrontar-se com o objeto presente. Contudo, nada se experimenta, sem ser, de algum modo, entendido. Nada se entende, sem ser, de certa maneira, experimentado. Os campos da experiência espraiam-se pelas ciências: estética, sociológica, moral, religiosa, etc. 

Percebemos, então, o valor dessa palavra “experiência” e que não foge do campo racional humano. Partindo da experiência entenderemos propriamente a dimensão da fé. Como já foi exposto, a experiência concretiza a vida de um sujeito. Em consequência, a fé na Sagrada Escritura, não é uma formulação abstrata, mas se fundamenta em atitudes concretas de um povo fiel. A caracterização da fé pelas Escrituras dá-nos os elementos essenciais de uma atitude de confiança e que está referida às promessas de Deus e à sua gratuidade. E que tal atitude de fé é vivida não como uma adesão mental, mas como uma resposta que compromete toda a nossa existência. Daí que tal resposta tem o dinamismo próprio da vida e que não é estática.

“Nós cremos” eis aí a primeira experiência que a maioria de nós faz, antes mesmo de dizer “eu creio”. Cremos na Igreja e como Igreja. Cremos dentro de uma Igreja que historicamente viveu momentos diferentes, afetando assim a vivência de fé. Enfim, a experiência de fé eclesial diverge de outras experiências de fé. Para que não fiquemos em dúvida diante desta questão diferencial aprofundaremos ainda mais o sentido da fé como peso eclesial.

Natureza da Dimensão Eclesial da Fé

O ato de acreditar (“nós cremos”) implica duas dimensões fundamentais de nossa fé.

Recebemos e transmitimos, de certo modo, a fé por uma corrente maravilhosa de graça e fidelidade a Deus ao longo dos milênios de fé monoteísta e trinitária. É a fé da Igreja. Mas também não cremos sozinhos, na solidão triste de nosso individualismo, e sim em comunidade. Cremos “em Igreja” de acordo com Libânio (2000, p. 250).

Na sequência, entendendo fé recebida e transmitida, percebemos que não somos o Abraão da fé judaica. Ele iniciou uma cadeia de fé; é nosso pai na fé (Rm 4; Gl 3,6ss). Não somos a primeira geração de cristãos que beberam a fé cristológica e trinitária na fonte primigênia de Jesus. Estamos já inseridos em maravilhosa cadeia de gerações que foram recebendo e transmitindo a fé monoteísta de Abraão, a fé cristológica e trinitária da comunidade primitiva. Uma crença transmitida e recebida, vivenciada experiencialmente no âmbito da fé numa cadeia de gerações, como bem citamos acima.

Nessa fé nós fomos batizados. No início como um rito de iniciação adulta, posteriormente na infância, se concretiza a iniciação ao cristianismo. Vejamos o processo de acordo com Libânio.

No rito da iniciação cristã dos adultos, o celebrante interpela o catecúmeno: “Que pedes à Igreja de Deus?” O candidato responde: “A fé”. Prossegue o celebrante: “E essa fé, que te dará?” O candidato responde: “A vida eterna”. No ritual de batismo de crianças, depois da profissão de fé dos pais, dos padrinhos e da comunidade em nome da criança, o celebrante acrescenta: “Esta é a nossa fé, que da Igreja recebemos e sinceramente professamos, razão de nossa alegria em Cristo nosso Senhor!” (SACRAMENTÁRIO, 2005, p. 30). E mais adiante, a profissão de fé proclamada na citação acima, antes de a criança ser batizada, o celebrante dirá o nome, perguntando aos pais e padrinhos: “Quereis que N... seja batizado(a) na mesma fé da Igreja que acabamos de professar?” (SACRAMENTÁRIO, 2005, p. 30). Tamanha é a dimensão da fé que não só cremos como também professamos o que cremos na e com a Igreja.

Os dois ritos explicitam de modo claro a ligação da fé com a Igreja pela via do sacramento do batismo. Sabemos pela teologia tradicional, sancionada no concílio de Trento, que “na própria justificação com a remissão dos pecados o homem recebe todas essas coisas, que ao mesmo tempo se lhe infundem, por Jesus Cristo: a fé, a esperança e a caridade” (DS, 1530). Essas três são virtudes infusas, isto é, uma “entidade criada, permanente e interna à pessoa, que Deus lhe dá gratuitamente e que a torna capaz de produzir atos salvíficos”

(LIBÂNIO, 2000, p. 250). Na criança, essa capacidade ainda não pode passar ao ato, mas nela já existe essa fé da Igreja. Quando na fase adulta corresponderá com o ato de fé.

Essa fé na Igreja vai desenvolver-se e traduzir-se em atos ao longo da vida da pessoa. As condições humanas e sociológicas não lhe são a última causa da fé, mas possibilitam que tal capacidade se atualize de modo concreto nos conteúdos, gestos, práticas. A vivência da fé entra no processo de inserção psicossocial do indivíduo numa comunidade. Todo processo comunitário passa pelo tríplice momento da socialização. A fé é, antes de tudo, socialização por meio da internalização que se faz dentro de uma comunidade. Nesse sentido, a fé da comunidade precede à do indivíduo. Este somente pode internalizar aquilo que já existe nele. Assim fazemos com a cultura, com a linguagem, com as tradições, com os costumes. A fé comunitária, sob o aspecto sociológico, é uma cultura, uma tradição, que o indivíduo assimila, interioriza, vivendo-a em seu seio. Os indivíduos vivem a fé à medida que a interiorizam (LIBÂNIO, 2000, p. 251). No entanto, a fé só pode continuar existindo se é exteriorizada. A exteriorização é condição necessária para a continuidade das experiências dos indivíduos. Se todos conservassem sua fé numa pura interioridade, conforme fossem morrendo, a fé desapareceria. Assim, as pessoas criam mecanismos sociais de comunicação, de exteriorização de sua cultura. Os mais importantes são a catequese-testemunho familiar, a catequese paroquial em seus diversos níveis e formas, a participação nas celebrações, os ritos, os símbolos, os cursos com estudos e leituras, as práticas religiosas comunitárias, etc. 

Nesse sentido, a fé se faz religião (cf. LIBÂNIO, 2000, p. 252). A objetivação da fé passa por este crivo de interiorização e exteriorização da mesma. Possibilita assim que as pessoas salvaguardem os elementos existentes. Todo processo social prossegue sempre por meio da interiorização, exteriorização e objetivação. Falhando um dos momentos, cessa de existir a realidade social (cf.LIBÂNIO, 2000, p. 255).

Todas essas formas de socialização comunicam elementos objetivos da fé sob a forma de conteúdos doutrinais, de sinais simbólicos sacramentais, de práticas de vida cristã, tanto no campo do agir moral como no da espiritualidade. Temos assim os elementos objetivos mais importantes da fé que são o dogma, a liturgia, a moral, a oração. Aliás, são as quatro partes, quer do Catecismo Romano de Trento, quer do Catecismo da Igreja Católica, editadosob o pontificado de João Paulo II (CAT, 1993). A fé da Igreja pode ser entendida como dado objetivado em suas expressões visíveis ou como processo vivo da produção social pelo tríplice momento acima explicitado. Se se acentua o primeiro aspecto, essa fé se identifica com a tradição. Entende-se então por que o Concílio Vaticano II define a Tradição como “tudo o que ela (Igreja) é, tudo o que crê” (DEI VERBUM, n. 8). A fé da Igreja constitui-se da tradição bíblica veterotestamentária e de tudo  o que nos vinte séculos de vida a Igreja foi crendo, vivendo, rezando, praticando. A cada momento, esse “depósito”, esse arsenal se torna disponível em sua objetividade. Num sentido mais profundo, porém, a fé da Igreja é o processo vital dos fiéis em comunidade.

Em suma, viver a fé da igreja é participar de toda essa trajetória viva, dessa cadeia ininterrupta daqueles que receberam, viveram e transmitiram a fé apostólica. Ao sair desse círculo de fé, mesmo tendo acesso ao “depósito da fé” em sua objetividade escrita, visibilizada nos sinais externos, não se tem a garantia de viver da fé da Igreja. Por isso, crer implica necessariamente esses dois momentos, de acolhida da Tradição, mas dentro do espaço hermenêutico vital da comunidade (LIBÂNIO, 2000, p. 251).

A INSPIRAÇÃO DIVINA E A INTERPRETAÇÃO DAS SAGRADAS ESCRITURAS

 Revelação e Inspiração

A interpretação tem uma relevância subjetiva que corresponde a atingir uma objetividade. Deus se revela no cotidiano da vida, vem na contemplação da contradição, ou seja, na contramão da história. Nesta perspectiva, a verdade teológica das Escrituras Sagradas aponta para certo caráter “revelador” ou inspirado em toda dimensão religiosa. Esta certeza não diminui em nada a validade da afirmação teológica de que a Bíblia é a única revelação dada “objetivamente” por Deus, pois, é certo que há uma interpretação de fé “objetivamente” inspirada, dando por válido assim, também, todas as interpretações religiosas.  Em virtude desta perspectiva, é relevante desenvolver uma leitura em vista da interpretação dada pela inspiração, entendendo, assim, a validade das Sagradas Escrituras. Vejamos na sequência.

Revelação e Inspiração

Etimologicamente: in-spirar = ter dentro o espírito. A Escritura Sagrada nos revela o que propriamente Deus quis que nela fosse redigido. De modo que se pode também dizer com propriedade que Deus é o autor principal da Escritura e o Espírito Santo era quem inspirava os redatores bíblicos. Tal afirmação de que Deus é o autor da Bíblia se encontra na própria Escritura: 1Cr 14,40; de que o Espírito Santo era quem inspirava: 2 Pd 1,20; 2Tm 3,14 17. A inspiração divina veterotestamentária é também atribuída ao Novo Testamento: “Muitas vezes e de muitas maneiras falou Deus... ultimamente, nestes dias, nos falou por seu Filho” (Hb 1,1); Nesta tarefa, o autor humano é respeitado por sua integridade com todos os seus condicionamentos culturais e pessoais. Sendo assim, podemos destacar que a Bíblia é um livro vivo, que contém e expressa a experiência de Israel, pois é um livro que foi escrito para a nossa salvação. A garantia ou inspiração da fé de Israel não é unicamente para Israel, é também para nós. Israel fora eleito como povo intérprete de sua própria história a partir da fé, de modo que essa interpretação continua sendo constituída no paradigma avalizado para interpretar nossa própria história.

A Bíblia é o meio para encontrar-se com Deus. A Igreja tem a assistência do Espírito Santo. E a inspiração vem a ser mais que a presença do Espírito Santo. Por isso, a Igreja qualifica como inerrância (que não há erros) das Escrituras. A Bíblia é um livro, escrito numa cultura de ontem. Só conseguimos distinguir esta inerrância a partir da vivência. A inspiração está na mensagem interpretada por ações do homem.

Vamos entender esta mensagem descrevendo em profundidade a própria palavra “inerrância”. Como já mencionado acima, a Bíblia recolhe a história profana do homem (Israel) interpretada desde sua fé. Como já vimos esta interpretação é por inspiração, isto é, o Espírito assegura que corresponde com fidelidade à realidade da presença salvadora no povo. Eis aqui a justificativa, uma vez inspirada por Deus a Bíblia é inerrante, ou seja, não pode nela conter erros, pois seria negar a validade desta garantia divina que denominamos inspiração. Com o surgimento das ciências de modo geral, a inerrância se viu ameaçada diante de certas concepções presentes na Escritura. Em cima disso percebemos o diálogo da Igreja com as ciências. De um lado, a reação espontânea foi de rechaçar como falsas as descobertas científicas, em nome da inerrância da Bíblia; do outro lado, a reação era a de rejeitar a Bíblia em nome da evidência das conclusões científicas. Isso deu origem à chamada “questão bíblica”. Vejamos como se procedeu. No catolicismo, somente em 1943, com a publicação da encíclica Divino Afflante Spiritu por Pio XII se liberou em definitivo a pesquisa honesta do texto bíblico e a reflexão sobre seu significado. Estes estudos constataram com maior clareza que a inerrância bíblica está relacionada com a verdade da salvação, pois a bíblia contém na sua essência a mensagem religiosa. A Escritura não pretende ensinar ciências. Sua mensagem deve essencialmente ser interpretada à luz da fé. É a partir da Escritura que o povo, transmite suas próprias visões culturais que, muitas vezes, são pré-científicas e que a ciência contradiz. Pois bem, reconhecer tais erros na Bíblia não vai em nada contra a inerrância da mensagem da salvação. Afirmar, como o faz o Vaticano II (DEI VERBUM 11), que “a Bíblia é inspirada em toda sua extensão e, portanto, é também verdadeira em todas as suas partes”, uma vez que nela toda se encontra presente o Deus que inspirava e quer salvar o homem, não significa, entretanto, que todas as afirmações bíblicas tenham valida de normativa. O que é verdade é que tudo o que diz a Bíblia corresponde à realidade antropológica de Israel e à sua maneira de ver e de dizer as coisas. E essa visão é integralmente assumida por Deus como mediação concreta na transmissão concreta de sua verdade salvífica, válida e normativa para as pessoas de todas as culturas e épocas. Para firmar ainda tamanha veracidade bíblica de sua inerrância inspiradora veremos também a mesma ser firmada num Cânon, ou seja a verdade inspirada e firmada como dogma da Igreja.

Canonicidade e Interpretação

O conceito teológico de cânon, ou canonicidade bíblica significa que a revelação já está dada por Deus, de forma definitiva e completa nos livros que compõem a bíblia e que, portanto, a revelação está aí concluída. Tal afirmação esconde duas questões: como se estabelece o cânon da Escritura e qual é seu significado teológico? 

Como se procede a canonicidade das escrituras

De acordo com a Igreja e teólogos da mesma, a maioria dos livros da Bíblia nunca ofereceu dificuldade em relação à sua canonicidade, seja porque já estavam consagrados pela tradição judaica canônica, no caso dos livros do AT, seja porque já haviam sido recebidos dos apóstolos, no caso dos livros NT. Os livros do AT aceitos pela Igreja e que coincidem com o cânon judaico são chamados de protocanônicos. Eles são em número 39 livros: Gn, Ex, Lv, Nm, Dt, Js, Jz, 1 e 2 Sm, 1 e 2 Rs, Is, Ez, Dn, Os, Jl, Am, Ab, Jn, Mq, Na, Hab, Sf, Ag, Zc, Ml, Sl, Jô, Pr, Rt, Ct, Ecl, Lm, Est, Esd, Ne, 1 e 2 Cr.

Há ainda sete livros completos do AT e mais fragmentos de outros dois de nossa Bíblia atual, que são deuterocanônicos, isto é, que nem sempre a Igreja os considerou unânimes como canônicos. São eles: Tb, Jt, Br, Sb, Eclo, 1 e 2 Mc e mais os fragmentos Capítulo 3, 24-90 e Cap 13 e 14 de Dn e fragmentos de Ester (que a Vulgata os põe em apêndice). Os deuterocanônicos não são considerados justamente porque os judeus também não os incluíram em seu cânon, definido no sínodo dos rabinos de Yabné, no final do primeiro século de nossa era. E se lhes incluiu junto aos canônicos justamente porque já havia uma compilação bíblica consagrada, conhecida como a Bíblia dos LXX, dos séculos II-I a.C., que incluía os chamados deuterocanônicos e haviam sido aceitos pelos Padres da Igreja. 

Quanto ao NT, não se pode falar propriamente de escritos protocanônicos e deuterocanônicos porque não há referência com o cânon judeu. Temos assim os livros que  foram reconhecidos sempre como normativos para a Igreja: os quatro evangelhos, atos dos Apóstolos e as treze cartas de Paulo; os escritos que foram incorporados com menos segurança: Epístola aos Hebreus, 1 e 2 Epístolas de Pedro, 1,2,3 Epístolas de João e a Epístola de Judas. E o Apocalipse, que devido a uma dúvida apresentada por Dionísio de Alexandria, a meados do século III, sobre a autenticidade de sua origem apostólica, só foi reconhecido um século mais tarde por toda a Igreja, graças a Santo Atanásio e depois a São Jerônimo e Santo Agostinho.

Como se deu a canonicidade do NT

As primeiras testemunhas do uso do NT como “escritura” igual à do AT são as cartas de Barnabé e São Clemente que citam textos de Mateus com a cláusula “como está escrito”, fórmula usada para introduzir um texto bíblico. Depois Justino (165) fala das “memórias dos apóstolos” (os evangelhos), ao lado de outros escritos proféticos bíblicos. No final do séc. II, se consignam como “escritura” também as 13 Epístolas de Paulo (exceto Hebreus) em mais as Epístolas de Judas e 1 e 2 de João. Em meados do séc. IV, com Santo Atanásio, o NT é reconhecido em sua forma atual. Santo Agostinho confirmará esse cânon definitivo, que em 397 o Terceiro Concílio de Cartago assumirá como seu.

O cânon do AT e do NT são consagrados pela Igreja Universal no Concílio de Florença de 1441 e ratificado por Trento, diante da tentativa de redução do cânon por parte dos protestantes. E na sequência temos o significado teológico do cânon. Vê-se a necessidade de uma fixação do cânon bíblico. Para Israel, a Palavra de Deus é salvadora e, então, reconhecer esta Palavra é fundamental, pois nela está em jogo a nossa salvação. A Bíblia, portanto, constitui o paradigma para ler a presença de Deus na história

humana. História que já está concluída, isto é, a revelação já está completa e não há por que esperar mais revelações. De agora em diante, só resta explicitar progressivamente e até o final dos tempos o significado incomensurável desta palavra de Deus. Isso constitui a vida e a tarefa da Igreja, animada pelo Espírito do próprio Cristo que a “guiará até o pleno significado da verdade” (1 Jo 16,13).

O Processo Revelatório: a formação das Escrituras

Como já bem explícito, a revelação é um processo de tradição que fora transmitida oralmente e posteriormente por escrito sob a inspiração do Espírito Santo e sua interpretação perpassou a história humana pelo viés da fé daqueles/as que acreditaram e daqueles/as que darão continuidade do processo revelador. Isso se deu desde o povo de Israel na transmissão do AT tanto quanto, em igual modo, no processo de formação do NT.

Pois bem, os textos veterotestamentários se dividiram em três blocos, tanto no cânon cristão da bíblia como no judaico: Livros históricos (Torá), livros proféticos (Nebiin) e livros sapienciais (Ketubin). Cada um destes blocos é o resultado de um longo processo prévio de tradição oral.

Na questão histórica, a passagem da tradição oral para a escrita se desenvolveu da seguinte maneira: o povo de Israel, provavelmente, não teve Escrituras Sagradas até a época de Davi e Salomão, exceto alguns pequenos textos de uso litúrgico que podiam se remontar à época de Josué (cf. Dt 6,20-24; Js 24,2-13), seguramente as confissões de fé mais antigas de Israel. Assim, sobre Abraão, Isaac e Jacó houve oito séculos de tradição oral, antes de serem fixadas por escrito. Neste período de tradição oral, os diversos clãs ou tribos de Israel teriam mantido suas próprias “memórias” sobre os fatos antigos, as quais foram finalmente compiladas por escrito, quando se formou o Reino. Assim, a Escritura passou a se vincular à tradição oral do povo. Ela é o ponto de chegada de toda uma tradição oral, ao mesmo tempo que é o ponto de partida de uma nova tradição que procurou reinterpretá-la desde as gerações. A relação Escritura-tradição tornou- se tão dinâmica que a partir daí seguiu-se a sua compreensão.


REFERÊNCIAS

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SACRAMENTÁRIO. Liturgia Sacramental. São Paulo: Paulus, 2005.

Fernando Vanini de Maria


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